Cooperação para o Desenvolvimento: 7 questões para 2024

_ 2024: O ano das eleições em contexto de múltiplos riscos e ameaças

Este ano haverá um recorde de eleições, com mais de 40 actos eleitorais a ocorrer e que poderão mudar a democracia no mundo, em países como os EUA, a Índia, Taiwan, bem como na União Europeia, incluindo em Portugal. A progressiva ascensão de ideias e movimentos populistas, individualistas e xenófobos, o recurso à guerra e à violência de Estado contra os direitos dos povos a viver em paz e em segurança tornam este ciclo eleitoral no mundo um enorme risco. Mas este momento é também uma oportunidade de afirmação dos princípios da solidariedade e da igualdade, como bases de sistemas políticos mais democráticos e a Cooperação para o Desenvolvimento como expressão da empatia com o Outro e da interdependência à escala global. Portugal não está imune àqueles riscos e esta será a oportunidade de confrontar os partidos políticos sobre o papel da Cooperação para o Desenvolvimento portuguesa e europeia neste contexto.

_ Espaço cívico – preservar a acção cívica, perante os desafios globais

As ameaças à liberdade, à paz e à segurança humana no mundo podem ser travadas por movimentos cívicos fortes, interligados e consequentes. No entanto, de acordo com o Índice de Sociedade Civil promovido anualmente pela rede mundial CIVICUS, em 2023, um terço da população mundial vive em países com um espaço cívico fechado, isto significa, sem direito à livre organização, livre expressão ou reunião. A pandemia serviu de pretexto para afunilar ainda mais o espaço de actuação dos cidadãos e cidadãs, situação que em muitos países se mantem mesmo após o alívio das medidas sanitárias. O reforço da colaboração entre organizações e redes das sociedades civis a nível local e global torna-se uma necessidade ainda maior e a cooperação para o desenvolvimento é um campo de acção privilegiado para tal.

_ Manter o foco no combate às desigualdades e à erosão do Estado de direito

As situações acima referidas em muitos países e no mundo têm muitas vezes origens na pobreza, na desigualdade de oportunidades, na erosão do estado e na ausência de serviços públicos de qualidade. Assumir o combate às desigualdades, a promoção dos direitos humanos e do Estado de direito implica o centramento da Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD) nessa agenda. Simultaneamente, a aposta na utilização de APD para alavancar fundos privados tem conduzido a um desvio de recursos de países de rendimento baixo para países de rendimento médio, e de sectores sociais para sectores como a finança e as infraestruturas. Também a canalização de recursos públicos internacionais para zonas de conflito não pode colocar em causa a disponibilidade dos fundos destinados aos países e aos sectores onde é preciso continuar o combate às desigualdades e a aposta na construção de instituições democráticas e de serviço público.

_ A recusa da lógica privada na Ajuda Pública ao Desenvolvimento

Contraditoriamente, a Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD) tem desaparecido do discurso público, englobado (e diluído) na grande narrativa dos “fluxos de financiamento para o Desenvolvimento”. Realçamos o papel da APD enquanto instrumento único, incomparável a outros, para o financiamento de determinados programas e processos. A APD está, no entanto, em risco de ser capturada pelo sector privado, nomeadamente o sector privado com fins lucrativos e pelas lógicas que lhe são intrínsecas. Tal está a ser facilitado por políticas nacionais e internacionais ditas “pragmáticas”, que transformam a APD num espaço de grandes contratos, alimentando o surgimento e/ou crescimento de agências executoras privadas dos fundos públicos da cooperação. Esta opção é feita em detrimento de formas de financiamento à medida das prioridades e capacidades das entidades e instituições dos chamados países em desenvolvimento, em contradição com uma estratégia de sustentabilidade do desenvolvimento e do seu financiamento.

_ Dar passos no sentido da localização da cooperação

Nos últimos anos, a ACEP tem vindo a suscitar um debate sobre a necessidade de uma maior localização da Cooperação para o Desenvolvimento, assente na reflexão sobre as relações de poder entre países, entre instituições e organizações envolvidas na Cooperação para o Desenvolvimento e, em particular, entre as diferentes geografias do desenvolvimento. Já o tínhamos sublinhado no nosso documento de posicionamento Futuro(s) da Cooperação: Continuidades e Rupturas (https://bit.ly/acep_futuroscoop_acep) e em espaços públicos de debate, como o do Fórum da Cooperação para o Desenvolvimento. É uma discussão ainda ausente no sector da Cooperação Portuguesa, muito auto-centrado na “criação de escala” das suas instituições e organizações, procurando justificações para a preservação de um papel (e um poder) que deveria ser cada vez mais das instituições e organizações dos chamados países em desenvolvimento. O ano de 2024 poderia vir a registar os primeiros passos na mudança, por exemplo com o financiamento directo às organizações africanas, e segundo mecanismos apropriados.

_ Estratégia da Cooperação e acção (da) política

A Estratégia da Cooperação Portuguesa 2030 (ECP 2030), que se afirma como base de uma nova centralidade da Cooperação para o Desenvolvimento e de reforço da sua capacidade de intervenção, servirá de guia para a implementação desta política nos próximos sete anos. O ano de 2024 será crucial para finalizar um plano de acção que auxilie a sua monitorização e avaliação continuada. A nova direcção do Camões – Instituto da Cooperação e da Língua, selecionada, pela primeira vez, por concurso público, inaugura um novo período para reafirmar o papel do instituto enquanto instituição pública de referência na coordenação, execução e avaliação da política, dos programas e projectos da Cooperação Portuguesa. A tradução da ECP 2030 num plano de acção coordenada terá neste ano também o grande desafio de promover uma cultura colaborativa entre actores (e nomeadamente dos ministérios sectoriais), contribuindo para o reconhecimento mútuo entre actores públicos e privados, assente no respeito pelos princípios da cooperação e nos fins que ela deve prosseguir.

_ A urgência de discutir o financiamento do Desenvolvimento

Na última década, assistimos de forma muito acelerada a alterações no financiamento para o Desenvolvimento, com tendência crescente para a financeirização da Ajuda ao Desenvolvimento. As múltiplas crises que enfrentamos actualmente reforçam a urgência de reunir a comunidade internacional em torno de um novo compromisso financeiro para o Desenvolvimento internacional (o último aconteceu em 2015, em Adis Abeba, Etiópia) e mudando da abordagem da “gestão da pobreza” para uma de promoção do desenvolvimento. A 4.ª Conferência das Nações Unidas sobre Financiamento do Desenvolvimento pode ser o espaço político para pensar e concertar a abordagem ao financiamento, as reformas na arquitectura do sistema financeiro e económico a nível global (ler mais em https://mundocritico.org/…/por-que-e-urgente-uma…/) e criar mecanismos de resolução da dívida e de combate à evasão fiscal. Perante os desafios globais, é igualmente imperativo reafirmar o compromisso assinado pelos países ricos de alocar 0,7% do RNB a Ajuda Pública ao Desenvolvimento. Este debate precisa de ser valorizado também pelo parlamento nacional, numa abordagem de co-responsabilização colectiva e interinstitucional pela Cooperação para o Desenvolvimento e os recursos que a viabilizam. Depende também de nós que 2024 possa vir a ser esse ano.