Naquele dia, um animal pertencente a um criador choa muçulmano escorregou e caiu no charco que um agricultor mogum tinha escavado para conter a água e afogou-se. Os pastores pegaram em armas para vingar a morte da preciosa cabeça de gado e a guerra desencadeada terminou nove dias depois com 32 mortos, 19 aldeias queimadas e 11 mil pessoas em fuga para o Chade.
A tensão em torno da água é permanente naquela zona do rio Logone, um afluente do rio Chari que faz parte da bacia do cada vez mais reduzido lago Chade. As alterações climáticas têm aumentado os períodos de seca e, numa zona já pobre por si só, vieram aumentar as escaramuças entre os pastores de origem árabe e os agricultores e pescadores de origem afro-asiática.
Aquela guerra de Agosto de 2021 voltou meses mais tarde, em Dezembro, quando uma manada propriedade de um choa atravessou um terreno cultivado e destruiu algumas colheitas de um agricultor mogum. Mais duas semanas de guerra aberta redundaram em 44 mortos, 111 feridos, 122 aldeias destruídas e mais de 85 mil refugiados no Chade e 15 mil deslocados internos.
Com 2,2 mil milhões de pessoas no mundo sem acesso a água potável e 3,5 mil milhões sem acesso a saneamento gerido de forma segura, de acordo com o último relatório das Nações Unidas (UN World Water Develoment Report 2024), no meio de um planeta cujos eventos climáticos extremos não param de aumentar e em que a água se vai tornando bem escasso em algumas regiões, não estranha que a tensão em redor da questão da água tenha aumentado nos últimos anos.
Nos últimos 60 anos registaram-se 1800 disputas internacionais relacionadas com recurso hídricos, número que tem vindo a aumentar nas últimas décadas: entre 2014 e 2023 foram 1060 casos, 671 de 2019 a 2023, de acordo com números divulgados no final do ano passado pelo Pacific Institute. Oito em cada dez incidentes registaram-se na Ásia e em África.
Muitas fontes de água potável transcendem fronteiras internacionais, a maior parte delas geridas por cooperação entre governos. Desde 1948, foram assinados cerca de três centenas de acordos para gestão de recursos hídricos. Mesmo assim, há zonas onde as águas transfronteiriças são fonte de conflito, como a bacia do Nilo, na África Oriental, de onde o Nilo Branco e o Nilo Azul correm para o Mediterrâneo. O Egipto reclama o direito à maioria da água do Nilo com base em tratados antigos, ainda do tempo colonial, que outros Estados ribeirinhos se recusam a aceitar por não terem sido parte nos mesmos.
Desde que os etíopes começaram a construir a Barragem do Renascimento da Grande Etiópia em 2011 que Adis Abeba tenta negociar com os governos de Egipto e Sudão o uso das águas do Nilo, sem sucesso. A última ronda falhada de negociações, realizada este ano, terminou com o Cairo a afirmar que se reserva o direito a “defender a sua segurança nacional”, tendo em conta a importância do rio para o país, contava o site Climate Diplomacy.
“A escassez de água não só alimenta as tensões geopolíticas, como também constitui uma ameaça para os direitos fundamentais no seu conjunto, por exemplo, ao prejudicar consideravelmente a posição das raparigas e das mulheres”, dizia em Março Audrey Azoular, directora da UNESCO, a agência da ONU encarregada de elaborar o relatório sobre a água.
O ano passado, a UNICEF falava em 190 milhões de crianças em dez países africanos em perigo por causa da convergência de três ameaças relacionadas com a água, o chamado ASH: falta de acesso a água potável, a saneamento básico e higiene desadequada. Entre os dez, figura os Camarões. Os outros são Benim, Burkina Faso, Chade, Costa do Marfim, Guiné-Conacri, Mali, Níger, Nigéria e Somália. Muitos deles, sobretudo na região do Sahel, enfrentam também a instabilidade relacionada com a presença activa de grupos jihadistas.
“África enfrenta uma catástrofe hídrica. Embora os choques relacionados com o clima e a água tenham aumentado a nível global, em nenhum outro lugar do mundo os riscos se agravam de maneira tão grave para as crianças”, dizia Sanjay Wijesekera, então director de Programas da UNICEF e hoje director regional da agência para o Sudoeste Asiático.
No longo historial de conflito entre a Índia e o Paquistão desde a emergência das duas nações do fim do Império Britânico em 1947, os 720 quilómetros do rio Ravi, fronteira natural entre os eternos inimigos, tem sido usado pela Índia “como arma política para provocar problemas hidrológicos no Paquistão, mais especificamente, em Lahore”, escrevia no mês passado na Eurasia Review a paquistanesa Muskan Muazzam.
A gestão das águas está regulamentada pelo Tratado Sobre a Água do Indo, assinado pelos dois países com mediação do Banco Mundial em 1960, mas quando mais vozes do nacionalismo hindu indiano reclamam a retirada unilateral do tratado, aumentando a possibilidade de nova refrega entre as duas potências nucleares, uma delegação de 40 especialistas deslocou-se ao território indiano de Jamu e Caxemira com o objectivo de inspeccionar projectos de centrais hidroeléctricas no Ravi (Pakal Dur e Baixo Kalnai e Kishenganga e Ratle no vale do Chenab).
Para os paquistaneses, que punham os pés na região pela primeira vez desde 2019, era uma oportunidade para comprovar se os projectos de exploração do rio para produção de energia eléctrica estavam em conformidade com o tratado.
Islamabad levanta objecções aos projectos desde 2016 e pediu a intervenção do Tribunal Arbitral, a Índia quer resolver a questão através de um especialista neutral. Em Outubro de 2022, o Banco Mundial nomeou Michael Lino como especialista neutral e Sean Murphy para liderar o Tribunal Arbitral que já se reuniu duas vezes, sem que a Índia tenha mudado a sua posição.
No entanto, como escreve o site The Diplomat, esta visita “sublinha a importância da cooperação regional para enfrentar os desafios colocados pelas alterações climáticas”, nomeadamente numa zona do planeta onde vivem mais de mil milhões de pessoas e que “é uma das regiões mais vulneráveis aos impactos das alterações climáticas”. O rio Ravi pode ser um exemplo, positivo ou negativo, dependendo de como evolui a situação dos dois países habituados a explorar o ódio ao inimigo como argumento de política interna: mas a visita é um bom sinal de apaziguar do conflito.