Desigualdades, risco e precariedade: o trabalho das mulheres no Brasil e o contexto da pandemia de COVID-19

Luana Pinheiro

Doutora e mestre em Sociologia pela Universidade de Brasília, graduada em Economia pela mesma instituição. É investigadora do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) desde 2004, actualmente na Coordenação de Igualdade de Género, Raça e Estudos Geracionais. Coordenou a área de planeamento e gestão da informação da Secretaria de Políticas para as Mulheres, da Presidência da República (2007/11).

“A pandemia  foi capaz de revelar, de forma cruel, as nossas entranhas, exibindo ao mundo as nossas desigualdades e a nossa incapacidade de, em pleno século XXI, ser capaz de as transformar.”

A inserção feminina no mercado de trabalho no Brasil foi, historicamente, marcada por profundas desigualdades não apenas entre homens e mulheres, mas também entre as próprias mulheres. É facto que a existência e a persistência histórica de valores patriarcais e de normas tradicionais de género mantiveram boa parte das mulheres distante do mercado de trabalho até a década de 1970. No entanto, a existência de práticas e valores racistas – inicialmente abertos nos contextos de escravidão e paulatinamente escamoteados até chegarmos à construção do mito da democracia racial – e também classistas/ elitistas lançaram muito mais cedo ao mundo do trabalho um conjunto significativo de mulheres, particularmente negras e pobres. Para estas mulheres, a busca por renda não era uma opção (ou uma revolução de género), mas uma necessidade imposta pelas suas condições de vida e pelas suas identidades sociais, que as relegavam a espaços muito específicos e desprestigiados da sociedade.

Existem elementos, contudo, que marcam, de forma geral, a vida das mulheres no mundo do trabalho. Um primeiro deles é a inserção feminina mais precária no mercado de trabalho quando comparada à masculina. Os indicadores tradicionalmente utilizados para acompanhar o comportamento da dita “esfera da produção” são invariável e permanentemente piores para as mulheres em comparação aos homens. E, claro, são invariável e permanentemente piores para mulheres negras do que para brancas, por exemplo (Ipea, 2020).

Foto: Dário Pequeno Paraíso

Um segundo elemento que marca a vida das mulheres no mundo do trabalho diz respeito à quase exclusiva responsabilização feminina pelo trabalho doméstico e de cuidados não remunerado, realizado diariamente como forma de garantir a reprodução da força de trabalho e da sociedade de forma mais ampla. Os poucos dados disponíveis sobre esta questão no Brasil apontam que as mulheres não apenas se envolvem mais com o trabalho reprodutivo, como alocam o dobro de horas que os homens nestas actividades e se dedicam a um tipo de trabalho mais específico, indicando haver, mesmo no campo do trabalho reprodutivo, uma divisão sexual das tarefas. Neste contexto, as mulheres acabam sendo responsáveis por aquelas actividades que poderiam ser identificadas como rotineiras e menos discricionárias, com menor controle do tempo, tais como lavar roupas e vasilhas, passar roupas, limpar a casa, cuidar dos filhos, cozinhar. Já aos homens caberiam as actividades mais ocasionais e flexíveis, como, por exemplo, a realização de pequenos reparos nas residências, os cuidados com o jardim e os carros ou o pagamento de contas (Pinheiro, 2018).

A desigual distribuição do trabalho reprodutivo entre homens e mulheres e a existência de uma desigualdade estrutural no mercado de trabalho indicam que, mesmo em pleno século XXI, permanecem válidos os princípios de uma divisão sexual do trabalho baseada em normas e valores tradicionais de género. É importante destacar que a divisão sexual do trabalho é plástica e flexível, adaptando-se e manifestando-se de formas distintas em diferentes contextos sociais ou momentos históricos. No entanto, será sempre possível encontrar – em maior ou menor grau – separação e hierarquização das tarefas desempenhadas por homens e mulheres. Como dizem Hirata & Kergoat (2007, p.597): “sempre que se tenta fazer um balanço da divisão sexual do trabalho em nossas sociedades, se chega à mesma constatação: nessa matéria, tudo muda, mas nada muda”. As relações estabelecidas entre homens e mulheres no âmbito da divisão sexual do trabalho, portanto, parecem ser caracterizadas pela permanência, podendo-se verificar mais deslocamentos da fronteira entre o masculino e o feminino do que de facto a supressão dessa diferenciação (Pinheiro, 2018).

As desigualdades estruturais que marcam a vida das mulheres no mundo do trabalho são potencializadas em contextos extremos, como o que estamos a viver desde que a pandemia da COVID-19 se instaurou ao redor de todo o mundo. Este texto procura conferir alguma luz também a este momento e aos seus impactos sobre a vida das mulheres e às desigualdades de género, em particular no que diz respeito às suas vivências e experiências no mundo do trabalho. Para tanto, além desta introdução, esse texto está organizado em mais duas secções: a primeira que apresenta as condições estruturais do trabalho das mulheres no Brasil, tanto no que se refere ao trabalho pago, quanto ao não pago, e segunda, que mostra como a pandemia da COVID-19 afectou as condições de trabalho das mulheres e as desigualdades de género no Brasil.

“A desigual distribuição do trabalho reprodutivo entre homens e mulheres e a existência de uma desigualdade estrutural no mercado de trabalho indicam que, mesmo em pleno século XXI, permanecem válidos os princípios de uma divisão sexual do trabalho baseada em normas e valores tradicionais de género.”

1. Desigualdades de género estruturais no mundo do trabalho brasileiro

​Existe, no Brasil, uma vasta literatura que trata das condições históricas de maior precariedade e vulnerabilidade da inserção das mulheres no mercado de trabalho. De modo geral, o que este conjunto de pesquisas aponta é para a permanência de desigualdades de género nesta esfera, ainda que ao longo da década de 2000, estas diferenças se tenham reduzido de forma importante. O facto de serem estruturais, contudo, faz com que elementos conjunturais não sejam capazes de alterar as condições de inserção feminina no mercado de forma definitiva e, assim, conjunturas desfavoráveis podem reavivar e reforçar as desigualdades estruturais, tal como se pode ver na pandemia da COVID-19.

De maneira geral, no que se refere ao mercado de trabalho, as desigualdades de género são ainda muito significativas. A tabela 1 apresenta um resumo dos principais indicadores de trabalho para homens e mulheres dos anos de 1995 e a 2018, de forma a que seja possível perceber como, apesar de uma melhora na participação feminina neste espaço, ainda persistem importantes desigualdades de género e de raça.

Um primeiro indicador importante a ser analisado refere-se à taxa de participação de homens e mulheres no mercado de trabalho. Desde os anos 1970 tornou-se comum falar de um fenómeno que ficou conhecido como “feminização do mercado de trabalho”. De facto, houve, a partir deste período histórico, uma entrada significativa no mercado de trabalho de grupos de mulheres que até ali estavam ausentes. Se em 1970, apenas 18,5% das mulheres brasileiras participavam do mercado de trabalho (Pinheiro et. al., 2016), 25 anos depois este valor já alcançava mais de metade da população feminina em idade activa. É importante notar, contudo, que de 1995 a 2018, ou seja, em um período de mais de 20 anos, a taxa de participação feminina manteve-se praticamente a mesma, fenómeno que algumas pesquisadoras têm começado a chamar de um novo “tecto de vidro” na experiência feminina no mercado, que se soma ao já conhecido “tecto de vidro” relacionado com a pouca presença de mulheres em cargos de poder e direcção.

Dentre os principais elementos levantados para explicar as maiores dificuldades das mulheres para participarem no mercado de trabalho estão, obviamente, aqueles relacionados à desigual distribuição de género do trabalho doméstico e de cuidados não remunerado, bem como a ausência do compartilhamento deste trabalho com Estado (via oferta de serviços, como creches, por exemplo) e com o mercado (ver, por exemplo, Costa, 2007).

Os dados da tabela 1 permitem, neste sentido, perceber como as mulheres ainda carregam a responsabilidade primária pelo trabalho de reprodução social, realizado de forma não remunerada no espaço domiciliar. Em 2018, as mulheres ainda realizavam o dobro das horas de trabalho reprodutivo que os homens (21,7 contra 11,0), sendo muito interessante notar que no período de 18 anos para os quais o IBGE colecta estas informações, os homens permaneceram realizando exactamente as mesmas 11 horas de trabalho reprodutivo, enquanto as mulheres reduziram suas jornadas em cerca de 7 horas semanais.

Este fenómeno – chamado de convergência de género por Gershuny (2003) – vem- -se a verificar em todo o mundo, sendo, contudo, diferente na sua composição e magnitude. Embora em boa parte dos países a convergência se dê por uma redução nas jornadas femininas e uma ampliação nas jornadas masculinas em trabalho reprodutivo, no Brasil essa convergência é resultado de um movimento que se verifica apenas em função Saber e circunstâncias do comportamento feminino. As mulheres adaptaram-se à sua maior presença no mercado de trabalho, mas os homens brasileiros seguem o mesmo padrão de comportamento no espaço privado. Não existem, portanto, pelo menos no caso das jornadas, evidências que permitam falar numa redistribuição do trabalho reprodutivo entre os sexos.

Importante destacar que a persistência de um padrão de desigualdade de género nas jornadas dedicadas ao trabalho doméstico não remunerado não é exclusividade de países como o Brasil. De facto, mesmo nos países escandinavos, tão conhecidos pelas suas políticas em prol da igualdade de género e pela cultura mais igualitária neste campo, ainda persistem desigualdades relevantes. Na Suécia, por exemplo, entre as décadas de 1970 e 2000, as mulheres reduziram significativamente as suas jornadas reprodutivas, enquanto os homens, apesar de ampliarem as suas jornadas, o fizeram em velocidade muito inferior, e, em 2000, as mulheres suecas ainda eram responsáveis por mais de 70% do total de trabalho reprodutivo (Evertson e Nermo, 2004). Neste caso particular, é importante considerar a forma como as políticas de bem-estar são desenhadas e impactam, de forma diferenciada, homens e mulheres. Em boa medida, as iniciativas públicas tendem a aliviar o peso do trabalho das mulheres, mas pouco se direccionam para estimular o comportamento dos homens de forma a torná-los corresponsáveis pelo trabalho doméstico (Hook, 2010).

A responsabilidade feminina pelo trabalho reprodutivo e a persistência de valores tradicionais de género que mantêm as mulheres como responsáveis por este trabalho, impacta, portanto, em todos os aspectos da inserção e participação feminina no mercado de trabalho. Para além de reduzir as suas possibilidades de participar do mercado de trabalho, a divisão de género desigual do trabalho reprodutivo, impacta a forma como as mulheres conseguem ocupar espaços no mercado de trabalho, as suas possibilidades de construção de carreiras e a própria “escolha” das carreiras que irão seguir. Assim, ainda que consigam colocar-se à disposição do mercado de trabalho, a ocupação de postos de trabalho é mais difícil para as mulheres do que para os homens e para os negros do que para os brancos. Temos, assim, na intersecção destes dois marcadores sociais, uma situação que, em 2018, apontava para taxas de desemprego da ordem de 8% entre homens brancos e de 16% entre mulheres negras. Em 2018, em função da grave crise económica brasileira, não apenas o desemprego se encontrava em patamares bastante elevados – muito superiores aos verificados em 1995 – como as desigualdades de género e raça seguiam em patamares muito significativos. Se em 1995, as mulheres tinham taxa de desemprego 40% maior que a dos homens, mais de duas décadas depois, ela ainda era 30% superior à masculina. As desigualdades inclusive aumentaram nesse período quando se consideram as mulheres negras em comparação aos homens brancos, os dois pólos nessa relação no mercado de trabalho. Em 1995, a taxa de desemprego das negras era 71% superior à dos brancos, valor que sobe para 96%, em 2018.

Este é apenas um indicador que evidencia a importância de que as mulheres sejam consideradas não como um grupo homogéneo, com experiências semelhantes no mercado de trabalho, mas como um universo de diferentes mulheres, que vivenciam este espaço social a partir de condições muito distintas, sejam elas negras ou brancas, do sudeste ou nordeste, com ou sem alguma deficiência, entre outros marcadores sociais importantes. O que os indicadores sociais mostram de forma geral (Ipea, 2020) – e não apenas para o mundo do trabalho – é que as mulheres negras tendem a localizar-se na base da pirâmide social brasileira, ao passo que homens brancos se mantêm sempre no topo dessa hierarquia, evidenciando uma condição estrutural de desigualdade.

O mercado de trabalho brasileiro também é marcado por elevados níveis de precariedade e desprotecção social. Tal condição, porém, é superior para mulheres e para negros. Considerando como ocupações precárias apenas as categorias de “empregados/ as sem carteira de trabalho assinada”, “trabalhadoras/es domésticas/os” e “trabalhadores auxiliares” (que, em geral, são trabalhadores / as que actuam em suporte a algum membro familiar sem remuneração), tem-se, em 2018, que pouco mais de ¼ das mulheres ocupadas estava em alguma destas actividades, valor que era dez pontos percentuais menor para os homens. Entre as mulheres brancas, essa proporção era de 21%, valor que, na mesma direção, era dez pontos inferior ao das mulheres negras. Ou seja, quase 1/3 de todas as mulheres negras ocupadas no mercado trabalham em condições de desprotecção social, vulnerabilidade e maior exploração. Interessante pontuar que, ao mesmo tempo em que grande parte da população feminina ocupada se encontra em postos precários de trabalho, ao longo dos anos, cada vez mais mulheres conseguiram ascender a profissões de maior valor e prestígio social e económico, o que poderia ser chamado de bipolaridade das ocupações femininas. Saber e circunstâncias

Dentre as ocupações precárias cabe destacar, aqui, o trabalho doméstico remunerado. Esta é uma ocupação que ainda emprega quase 6 milhões de mulheres, o que equivale a 14,6% das mulheres ocupadas, sendo 10% entre as brancas e 18,6% entre as negras (Pinheiro et. al., 2019). O trabalho doméstico e de cuidados remunerado ancora-se num tripé de desigualdades – género, raça e classe – e mantém-se historicamente como um nicho feminino e negro, de mulheres oriundas de camadas de mais baixa renda, que trabalham sem protecção social (menos de 30% possuem carteira de trabalho assinada), com altos índices de exploração e abusos, incluindo sexuais (Mori et. al, 2011).

O trabalho doméstico remunerado é uma das expressões de uma categoria mais ampla de trabalho, à qual podemos chamar de trabalho de cuidados. Paradoxalmente, além de ser um limitador da presença feminina no mercado de trabalho, os cuidados também são a principal porta de entrada das mulheres nesta esfera. A permanência de concepções tradicionais de género, que ainda associam às mulheres – como inatas – as habilidades de cuidar, de comunicar, de acolher (ao mesmo tempo que as desassociam dos homens), faz com que no mercado de trabalho sejam ocupações relacionadas aos cuidados aquelas que estejam mais abertas à presença feminina. Podemos falar aqui em corredores de vidro que limitam a experiência das mulheres na esfera pública e as “confinam” a determinados espaços.

No caso brasileiro, 76% das mulheres ocupadas – e apenas 24% dos homens – trabalham no que poderíamos chamar de sector de cuidados1. Tal sector engloba tanto as actividades que demandam um contato face a face entre quem oferece e quem recebe o cuidado e que se relacionam à recomposição do bem-estar ou ao desenvolvimento de capacidades físicas, sociais ou emocionais (como trabalhadores que realizam atendimento na área de saúde, educação ou assistência social), quanto também actividades que não necessariamente demandam uma relação interpessoal e que não desenvolvem capacidades, mas que fazem parte do trabalho de reprodução social, a exemplo dos trabalhadores/ as que cuidam da limpeza das casas e das áreas comuns, cozinheiros/as, zeladores/as, lavadeiras, passadeiras, etc.

​O trabalho de cuidados – também chamado de care – é um trabalho de múltiplas dimensões, indo além de um simples fazer. É um trabalho não apenas material, mas também relacional e emocional, envolvendo dinâmicas diversas, interacções, sentimentos como amor, carinho, raiva, frustração, cansaço (Molinier et. al, 2009). Estes são elementos importantes a ter em conta, especialmente quando se trata do caso da pandemia de COVID-19, quando não apenas a exigência de trabalho se amplia em termos físicos, mas também em termos emocionais, por conta de todas as incertezas, inseguranças, perdas e medos que envolvem o momento, tal como se verá na próxima secção.

2. A pandemia de COVID-19 e os impactos sobre o trabalho das mulheres

O primeiro caso de COVID-19 no Brasil foi oficialmente a 25 de Fevereiro, na cidade de São Paulo, e a primeira morte deu-se algumas semanas depois, a 17 de Março, na mesma cidade. Desde então, o Brasil teve um crescimento exponencial no número de casos e mortes, tendo alcançando, em meados de Junho, às impressionantes marcas de mais de 2 milhões de casos confirmados e quase 80 mil mortes (média de pouco mais de mil por dia nos últimos 30 dias).

Os impactos da doença sobre homens e mulheres são inúmeros e envolvem não apenas aqueles relacionados ao adoecimento e morte consequente, mas também se expandem para a organização da sociedade, do sistema de saúde, do sistema educacional e a sua organização, do emprego, do acesso a renda, do trabalho de cuidados remunerado e não remunerado, da violência, entre muitos outros aspectos2 . Muitas abordagens poderiam ser adoptadas para uma discussão que envolva impactos sobre as mulheres. Neste texto, porém, optou-se por elencar alguns pontos importantes relacionados ao trabalho das mulheres, seja ele remunerado ou não.

​Um dos impactos mais imediata e directamente sentidos pelas mulheres neste contexto refere-se ao facto de que elas são maioria nas actividades de cuidados – remunerados ou não – e/ou actividades que foram consideradas essenciais e, portanto, são a maior parte dos trabalhadores que estão na linha de frente do enfrentamento da pandemia. Elas são, por exemplo, 74% dos profissionais de saúde no atendimento directo aos pacientes (médicos, enfermeiras, técnicas e assistentes de enfermagem, fisioterapeutas, entre outros), 93% das trabalhadoras domésticas e de cuidados remunerados, 79% dos trabalhadores na assistência social, 54% dos trabalhadores de mercados ou quaisquer actividades relacionadas à alimentação, 63% dos trabalhadores essenciais de limpeza, entre outros. São as mulheres, portanto, as trabalhadoras mais expostas ao contágio e aos impactos físicos e emocionais que o trabalho nas condições em que tem sido realizado no Brasil acarreta.

“Tanto homens, quanto mulheres têm vivenciado um aumento na sua carga de trabalho doméstico e de cuidados não remunerado, mas, como já se poderia esperar, este aumento foi maior para elas do que para eles.”

Em muitos estados, as UTIs estão superlotadas, faltam medicamentos, equipamentos de protecção individual, respiradores e muitos médicos/as, por exemplo, acabam tendo que realizar escolhas sobre quem pode ter acesso a um respirador e, portanto, a uma chance de sobreviver à doença (Suarez, 2020). São condições de muita exigência física e de grande stresse mental e emocional para esse conjunto de trabalhadoras.

As mulheres são também as maiores responsáveis pelo cuidado ofertado de forma não remunerada no espaço domiciliar, como demonstrado na secção anterior. No contexto da pandemia, esta sobrecarga aprofunda-se por uma série de motivos dentre os quais, cabe destacar: 1) o facto de que para garantir o isolamento social, as escolas, creches e actividades de contra-turno foram fechadas e muitas trabalhadoras domésticas e/ou cuidadoras acabaram por ser dispensadas pelos seus empregadores; 2) os arranjos informais de cuidado das crianças também sofreram forte impacto, uma vez que não se recomenda que crianças, por exemplo, fiquem com os seus avós, por serem, estes, grupo de maior risco para a infecção provocada pela COVID-19; 3) a sobrecarga sobre os sistemas de saúde, aliada ao medo das pessoas se contaminarem nas emergências, faz com que muitos doentes (de COVID-19 ou de outras enfermidades) acabem por ficar nas suas casas e vários procedimentos que antes seriam realizados em instituições de saúde sejam tratados no âmbito domiciliar; e 4) o fechamento de boa parte do comércio reduziu a possibilidade de partilha do trabalho reprodutivo com o mercado, por meio das lavandarias ou restaurantes, por exemplo. Restaram, então, às mulheres o cuidado ainda mais extenso de crianças, idosos e doentes, que passaram a permanecer mais tempo em casa, com menos suporte externo. Há, portanto, maior demanda por cuidados num momento em que a oferta destes cuidados – formal ou informal – se reduziu, devido às medidas de prevenção da COVID-19 (Staab, 2020). O Brasil ainda não possui dados que permitam medir a intensidade deste aumento do trabalho reprodutivo, mas a ONU Mulheres tem conduzido estudos rápidos em alguns países que mostram que tanto homens, quanto mulheres têm vivenciado um aumento na sua carga de trabalho doméstico e de cuidados não remunerado, mas, como já se poderia esperar, este aumento foi maior para elas do que para eles (UN Women, 2020).

Como já mencionado, uma das primeiras estratégias para o combate à pandemia da COVID-19, uma vez que ainda não foram identificados remédios efectivos para debelar o vírus ou vacinas, é o distanciamento social. Adoptado em maior ou menor nível em diferentes cidades do Brasil, o distanciamento pressupõe que todos os serviços não essenciais durante o período da pandemia devem ser suspensos ou realizados de forma remota. Neste contexto, muitos trabalhadores e trabalhadoras – em especial os informais – tiveram, de repente, os seus empregos e rendas comprometidos, com aumentos nas taxas de desemprego, especialmente em actividades consideradas não essenciais no período da pandemia. Como as mulheres se encontram estruturalmente inseridas no mercado de trabalho em ocupações mais precárias e informais, bem como em ocupações tradicionalmente associadas ao feminino, a capacidade das mulheres de garantir seus meios de subsistência é altamente afectada pela pandemia. A experiência demonstrou que as quarentenas reduzem consideravelmente as actividades económicas e de subsistência e afectam sectores altamente geradores de empregos para as mulheres, como comércio ou turismo (ONU Mulheres, 2020, p.1).

Um exemplo dessa situação, muito relevante para as mulheres brasileiras, diz respeito às condições das trabalhadoras domésticas3 , em que a informalidade responde por 70%. Ou seja, 7 de cada 10 trabalhadoras domésticas não têm acesso ao seguro-desemprego, caso sejam demitidas no contexto da pandemia ou ao auxílio-doença, caso sejam infectadas pelo vírus. Por não terem contratos de trabalho formalizados, a dispensa pode ser rápida e sem qualquer tipo de protecção social para estas mulheres, o que é ainda mais comum para o caso das diaristas, que são trabalhadoras que actuam menos de 3 vezes por semana na casa dos empregadores e para as quais a legislação não garante vínculo trabalhista. Além de estarem fortemente expostas ao vírus, uma vez que trabalham no espaço doméstico e em permanente contacto com outros corpos e seus pertences, a vulnerabilidade das trabalhadoras domésticas frente à pandemia também se concretiza com a perda de renda e da ocupação. Assim como essas trabalhadoras, milhares de outras mulheres ocupadas no comércio, no sector de beleza, em pequenos empreendimentos de alimentação, perderam os seus empregos e os seus rendimentos com o processo de isolamento social.

Mesmo para aquelas trabalhadoras que não perderam os seus empregos, um importante – e pouco abordado – impacto da COVID-19 refere-se à redução da produtividade feminina, causada, em boa medida, pelo aumento das suas actividades reprodutivas (cuidado de filhos, idosos, doentes e da própria casa). Pesquisa conduzida pela revista Dados tem sido capaz de mostrar como a produção académica de mulheres pesquisadoras se reduziu significativamente no segundo trimestre de 2020, momento em que a pandemia se instalou e se espalhou pelo país (Candido e Campos, 2020). É um primeiro indicador a ser considerado, especialmente importante porque, não apenas para pesquisadoras, como para boa parte de trabalhadores e trabalhadoras, a remuneração mensal é resultado também de sua produtividade, medida em termos bastante objectivos, não levando em conta os processos de desigualdade na divisão sexual do trabalho doméstico e de cuidados não remunerado.

Apesar de tantas questões, o governo brasileiro tem dado respostas insuficientes e confusas para socorrer estes trabalhadores que passaram a enfrentar não apenas as incertezas e sofrimentos relacionados à COVID-19, mas também à sua própria subsistência. Sem uma coordenação central, o isolamento social nunca se efectivou verdadeiramente e, quatro meses após as primeiras medidas de afastamento social, as taxas de contágio e letalidade seguem elevadas, mas a reabertura de todos os sectores está em processo, uma vez que as empresas – e os trabalhadores – já não podem suportar mais um fechamento tão longo. Voltaram ao trabalho, sem a garantia de qualquer tipo de protecção nos transportes públicos ou nos seus ambientes de trabalho, milhões de trabalhadores, levando o vírus das regiões mais abastadas (por onde ele chegou) para as regiões periféricas, onde o acesso aos serviços de saúde é bastante precário e onde as taxas de letalidade do vírus já se mostram também mais elevadas (COVID, 2020). A renda básica emergencial4 , criada para repor a renda dos trabalhadores desempregados, informais, microempreendedores individuais (MEI) ou contribuintes individuais ou facultativos do Regime Geral de Previdência Social, não apenas foi instituída com prazo de apenas 3 meses – no valor de R$600 (máximo de 2 benefícios por família ) ou R$1200 para mulheres chefes de família com filhos – como enfrentou inúmeros problemas burocráticos que impediram ou atrasaram sua concessão aos beneficiários.

Os desafios impostos pela COVID-19 aos brasileiros são inúmeros e muito significativos. Não apenas teremos que lidar por muito tempo com os efeitos económicos que a pandemia provocou, como também com efeitos sociais, psicológicos e mentais que afectam e afectarão todos nós. Para as mulheres, contudo, como sempre se verifica, os impactos serão ainda maiores, não apenas no que se refere ao mundo do trabalho, mas também no que diz respeito ao aumento dos casos de violência doméstica no contexto do confinamento5 e dos maiores índices de adoecimento mental. A pandemia, contudo, não criou nenhuma dessas questões. As desigualdades de género são, como mostradas no começo desse texto, estruturantes da sociedade brasileira. A pandemia, além de as aprofundar em boa medida, foi capaz de revelar, de forma cruel, as nossas entranhas, exibindo ao mundo as nossas desigualdades e a nossa incapacidade de, em pleno século XXI, ser capaz de as transformar e de garantir às mulheres uma vida de igualdade e de menos exploração.

 

Referências

CANDIDO, Marcia Rangel e CAMPOS, Luiz Augusto. Pandemia reduz submissões de artigos acadêmicos assinados por mulheres. Blog DADOS, 2020, 14 de maio de 2020. Disponível em <http://dados.iesp.uerj.br/
pandemia-reduz-submissoes-de-mulheres/>.

COSTA, Joana. Determinantes da participação feminina no mercado de trabalho brasileiro. 2007. 60 p. Dissertação de mestrado – Departamento de Economia, Universidade de Brasília, Brasília, 2007.

EVERTSSON, Marie e NERMO, Magnus. Dependence within families and the division of labor: comparing Sweden and the United States. Journal of Marriage and Family, Columbus, v. 66, n. 5, p. 1272–1286, 2004.

GERSHUNY, Jonathan. Changing times: work and leisure in postindustrial society. New York: Oxford University Press, 2003.

HOOK, Jennifer. Gender inequality in the welfare state: sex segregation in housework, 1965–20031. American Journal of Sociology, Chicago, v. 115, n. 5, p. 1480–1523, 2010.

IPEA. Retrato das desigualdades de gênero e raça. Brasília, 2020. Disponível em: <www.
ipea.gov.br/retrato>. Acesso em: 20 jul. 2020.

MOLINIER, Pascale et. al. Qu’est-ce que le care? Souci des autres, sensibilité, responsabilité, Paris: Payot & Rivages, Petite Bibliothèque Payot, 2009.

MORI, Natalia et. al (orgs). Tensões e experiências: um retrato das trabalhadoras domésticas de Brasília e Salvador. Brasília: Cfemea, 2011.

O Globo (2020), COVID-19 é mais letal em regiões de periferia no Brasil. O Globo, Rio de Janeiro, 03 de maio de 2020.

ONU Mulheres. Gênero e Covid-19 na América Latina e no Caribe: dimensões de gênero na resposta. ONU Mulheres, 2020. Disponível em <http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2020/03/
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PINHEIRO, Luana et al. Mulheres e trabalho: breve análise do período 2004-2014. Brasília: Ipea, 2016. (Nota técnica – Disoc, n. 24).

PINHEIRO, Luana. O trabalho nosso de cada dia: determinantes do trabalho doméstico de homens e mulheres no Brasil. Tese (Doutorado em Sociologia)—Universidade de Brasília, Brasília, 2018.

_______________ et. al. Os desafios do passado no trabalho doméstico do Século XXI: reflexões para o caso brasileiro a partir de dados da PNAD Contínua. Brasília: IPEA, 2019

_________________. Vulnerabilidade das trabalhadoras domésticas no contexto da pandemia de Covid-19 no Brasil. Brasília: Ipea, 2020. (Nota técnica – Disoc, n.75)

STAAB, Silke. COVID-19 sends the care economy deeper into crisis mode. UN Women, 2020. Disponível em .

SUAREZ, Joana. A carga pesada dos médicos da linha de frente: escolher quem morre e quem vive. Carta Capital, Saúde. São Paulo, 22 de abril de 2020.

UN WOMEN. Surveys show that COVID-19 has gendered effects in Asia and the Pacific. Un Women, 2020. Disponível em <https://data.unwomen.org/resources/surveys-show-covid-19-has–gendered-effects-asia-and-pacific>.

 

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1 Utilizou-se como parâmetro para definição do sector de cuidados os trabalhos de Mignon Duffy, em especial o artigo DUFFY, Mignon. Reproducing Labor Inequalities: Challenges for Feminists Conceptualizing Care at the Intersections of Gender, Race, and Class. Gender and Society, v.19, n.1, 2005, pp. 66-82. As estimativas produzidas para o Brasil foram produzidas a partir da PNAD continua/IBGE para o ano de 2018.

2 Para o caso brasileiro, sugere-se acessar o hotsite www.ipea.gov.br/coronavirus, que traz importantes análises sobre os diferentes impactos da pandemia de Covid-19, incluindo estudos sobre os impactos da pandemia sobre a violência contra as mulheres e sobre o trabalho doméstico remunerado.

3 Para uma análise detalhada sobre os impactos da Covid-19 sobre as trabalhadoras domésticas, ver Pinheiro et. al, 2020.

4 Para maiores detalhes, ver https://auxilio.caixa.gov.br/#/inicio. Acesso em 20/07/2020.

5 Para maiores informações sobre os impactos da pandemia da COVID-19 sobre a violência de género no Brasil, ver ALENCAR, Joana et. al. Políticas publicas e violência baseada em gênero durante a pandemia da Covid-19: ações presentes, ausentes e recomendadas. Brasília: Ipea, 2020. (Nota técnica – Disoc, n.78)