Kriolofunia: um festival para falar (do) “Kriol”

António Spencer Embaló

Sociólogo e investigador guineense especializado em políticas públicas, género, comunicação e desenvolvimento comunitário. Fazedor da Kultura e apaixonado pelo Kriol, é membro fundador da Corubal. Activista e ambientalista, é membro fundador da Organização Guineense de Desenvolvimento (OGD) e coordenador do sector da Produção, Rendimento e Emprego.

Já na sua terceira edição, a Bienal do Kriol surgiu da ideia de um grupo de pensantes guineenses fortemente estimulados pelo então director do Centro Cultural Franco Bissau Guineense (CCFBG), Guillaume Thieriot, para criar espaço livre de preconceitos e promiscuidades técnica-intelectual para a reflexão, debate e apresentação de propostas descomplexadas e concretas sobre a multidimensionalidade e multifuncionalidade do Kriol.

A primeira edição da Sumana di Kriolofunia acontece, em 2013, em plena ressaca do Golpe de Estado de Abril de 2012, de uma iniciativa conjunta entre o CCFBG, a Universidade Amílcar Cabral (UAC) e a Cooperativa de Produção e Divulgação Cultural e Científica (Corubal), sob o lema Nô papia (“vamos falar [do Kriol]”). Além de se falar do “perfume” do kriol no cinema, no teatro, na música e na literatura, organizaram-se três sessões de reflexão e debate sobre a importância do reconhecimento do Kriol como ferramenta fundamental de comunicação e ensino para os seus falantes – sobretudo para o povo guineense.

Volvidos dois anos, em 2015, a segunda edição foi mais ambiciosa, assumindo três desafios: manter e aprofundar as reflexões da primeira edição e apresentar propostas concretas que envolvam estratégias e estímulos à normalização e ensino do Kriol; alargar a parceria a outras entidades importantes no quadro de dinamização da vida kultural de Bissau; e, por último, chegar a outros campos culturais onde também o Kriol se empola e brota, como a pintura, por exemplo.

Já a terceira edição, que aconteceu recenemente, em 2017, teve como lema Kontrada di aonti ku aôs; di Amílcar Cabral ku José Carlos Schwarz; di garandesa ku mininesa (“Encontro de gerações: do passado e presente; de Amílcar Cabral e José Carlos Schwarz; dos mais experientes com os mais jovens e inexperientes”) que procurou elevar o debate sobre os empecilhos (reais e virtuais) de normalização do Kriol através de contributos dos últimos estudiosos. Curiosamente – ou não! – tratam-se de dois europeus de origem, duas gerações muito distantes, mas com uma paixão e intensidade de vivenciar o Kriol e de contribuir para a sua normalização muito acentuada.

Nesta terceira edição, falou-se ainda das experiências multilingues dos “surdos-mudos e invisuais” guineenses (tendo ferramentas de aprendizagem e ensino essencialmente em línguas europeias como o inglês, francês e alguma em português) e das experiências dos jornalistas guineenses que “jornam” sobretudo nas rádios e em kriol. O kriol padronizou-se – isso sim! – em todas as emissoras do país, comunitárias e/ou com amplitude nacional, com horários específicos para noticiários e comunicados (os famosíssimos rekadus ku nô ten pa konta), para além de toda a animação radiofónica, em kriol – o que contrasta, claramente, com os primeiros 20 anos da independência do país onde o domínio do português na rádio era avassalador.

Foto: António Valente

 

Um debate necessário e actual

 

A aparição do Kriol dá-se nos finais do século XV, vindo-se a massificar enquanto ferramenta comunicacional por excelência no século XIX. A sua longevidade, dimensão social, abrangência territorial (cerca de 91% da população guineense fala Kriol e em todo o território nacional), valor kultural e económico, político e simbólico confere-lhe uma legitimidade e um lugar na história que ainda hoje está por cumprir.

Por que espera tanto este povo e os seus representantes para oficializarem o seu património nacional como sua língua oficial a par da portuguesa?

O que esperam os legítimos representantes do povo para se criar reais condições para a elaboração de estratégias, realização de estudos que elucidem caminhos, produção de materiais e ferramentas que facilitem o ensino e aprendizagem do Kriol a par do português?

Se não há discussões e divergências em torno do valor e valências do Kriol para o povo guineense, então o que espera o referido povo e seus digníssimos representantes para o consagrarem como O Património Kultural Nacional – quiçá, mundial?

Não seria uma excelente oportunidade de promoção da Justiça Social para todo um povo e, principalmente, para as suas crianças que nascem e são socializados num contexto multilingue (Kriol e uma língua materna, português ou francês), criando-lhe as condições para que o ensino e aprendizagem sejam feitas, também, na sua maior língua de sociabilidade?

Estas são apenas algumas questões que se têm vindo a colocar e a discutir ao longo da Semana da Kriolofunia, num debate que se pretende cada vez mais alargado e multidisciplinar, tendo como objectivo primordial a efectiva normatização desta língua na Guiné-Bissau.