Políticas da inimizade

Achille Mbembe
Antígona, Lisboa, 2017

Mamadou Ba

Licenciado em Língua e Cultura Portuguesas pela Universidade de Cheikh Anta Diop (Dacar) e com curso de tradutor pela Universidade de Lisboa, é activista anti-racista, dedicando-se à luta pelos direitos humanos dos migrantes e das minorias étnicas desde a década de 90. Integra o Movimento SOS Racismo, sendo membro da Direcção Nacional, como de várias outras plataformas. Tem vários livros e artigos publicados

Achille Mbembe, historiador, filósofo, professor de Ciência Política é, seguramente, dos mais proeminentes intelectuais de momento, de uma prodigiosa capacidade de pôr em diálogo quase todas as disciplinas teóricas na produção e reprodução de saberes, num quadro de uma disputa epistemológica que procura recentrar e redefinir o lugar e o papel do processo histórico colonial na contemporaneidade das sociedades colonizadas e colonizadoras. Este esforço clama por uma ruptura definitiva com a continuidade histórica que ainda impregna a relação imperialista do ocidente com o resto do mundo, nomeadamente África.

Neste ensaio, Mbembe não segue por atalhos para dizer ao que vai e, apesar da complexidade do(s) tema(s) e da cadência entrelaçada do ensaio, deixa evidente, logo no primeiro parágrafo, que “o objeto deste livro é de contribuir, a partir de África, […] para uma crítica do nosso tempo – um tempo de repovoamento e de globalização do mundo sob a égide do militarismo e do capital e, como derradeira consequência, um tempo que promove a saída da democracia”. Este ensaio enquadra-se numa perspectiva de pensar o mundo a partir do continente africano, mas em que África tem de ser o motor da sua própria mudança.

O autor refuta a ideia segundo a qual a modernidade de que são herdeiras as democracias ocidentais seja “o momento de triunfo da razão sobre a tradição e o arbitrário”, como defendeu Alain Touraine e considera mesmo que a subjugação da razão e sua capitulação à ideia da estratificação humana pela cor da pele – que sustentou a desumanização pela força da guerra e da dominação – foi um dos fundamentos do racismo ideológico, âncora do capitalismo, e que marcará indelevelmente a “estrutura negra do mundo” que vai da raça à condição social de pertença até à categoria de indesejáveis.

Lembra como, historicamente, a ordem democrática liberal está inscrita num logro porque se ancora na ordem da plantação (escravatura) e da colónia (o imperialismo) e, como, no seu próprio seio, se cimentou a ideia de que se pode exercer uma violência política ilimitada contra os “não semelhantes”.

No seu entender, a biopolítica que caracteriza a globalização militarizada neoliberal no xadrez da geopolítica desemboca numa depredação das forças vivas do planeta, aquilo a que Mbembe chama de necropolítica. A erecção de fronteiras físicas e simbólicas nas relações políticas e humanas funciona como forma de biopoder para manter uma ordem política de inimizade, instrumento e fundamento da vontade e da possibilidade de dominação, cujo expoente máximo se traduz numa pulsão segregacionista e numa vontade de apartheid.

Para Mbembe, num contexto em que outros actores, nomeadamente a China, ocupam cada vez mais centralidade geopolítica, em que a Europa já não é o centro de gravidade do mundo, em que as democracias liberais estão sob ameaça de forças ideológicas nocturnas, como prova a ascensão dos populismos um pouco por toda a parte, em que a preservação de todas as espécies vivas e ecossistemas em risco é único garante da preservação da própria humanidade, em que a economia da predação e a política da dominação parecem os recursos últimos da ordem neoliberal, Mbembe defende uma democracia dos vivos e uma ética do passante. Nesta era do Antropeceno, caracterizada pela molecularização do racismo em nanoracismo, pela guerra e a predação económica e ecológica, é preciso romper com a herança colonial e reinventar a política para salvar o mundo e todos os seres vivos que nele habitam.

Porque o nosso tempo tem de ser o da abertura, da travessia e da circulação para se constituir como um remédio contra a irrupção da fronteira enquanto mecanismo poderoso de saída da ideia de democracia. E, neste quadro, a África, para se erguer à altura destes desafios e ser dona do seu próprio destino, deverá constituir-se “como a sua própria força.”