RAPensando novos mapeamentos culturais e territórios de emancipação cívica na Guiné-Bissau e em Cabo Verde

Miguel de Barros

Sociólogo, editor e investigador guineense. É co-fundador do Centro de Estudos Sociais Amílcar Cabral (CESAC) e membro do Conselho de Pesquisa para as Ciências Sociais em África (CODESRIA). Desde 2012, é director executivo da ONG guineense Tiniguena – Esta Terra é Nossa!, uma das mais antigas e importantes do país. Recentemente foi distinguido com o prémio panafricano humanitário em “Leadership in Research & social impact”.

Redy Wilson Lima

É formado em Sociologia e doutorado em Estudos Urbanos. É investigador não-doutorado no Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa. É ainda professor assistente convidado no Instituto Superior de Ciências Jurídicas e Sociais. Desenvolve pesquisas etnográficas no contexto cabo-verdiano nos campos da sociologia urbana, sociologia da violência e do crime, sociologia da juventude e movimentos sociais.

Mantenha! Rua como espaço de livre criação

A estratificação dos espaços e territórios como lugares de produção das identidades e de afinidades não foi capaz de superar as possibilidades de construção da integração sócio-espacial, que na transição para o estatuto das urbes atribuíram ao papel dos seus protagonistas a ideia de “cidadãos”, gerando assim categorizações hierarquizadas que influenciaram formas de relacionamento, cujas aptidões e competências segregam pessoas, grupos, culturas, economias e formas de viver o lugar. Deste modo, a convocação de habilidades tendo em vista (re)criar imprevisibilidades e, consequentemente, capacidades próprias de gestão dos territórios contribuíram para que a relação entre a apropriação do lugar de rua, na sua singularidade e na sua espacialidade relacional, mais que formas de preservar os fatores de diferenciação espacial, contribuíram para o surgimento de inventividades de sobrevivência em que cada território edifica modalidades de resistência da sua presença do que hoje é consensualizado como cidade.

A forma como os corpos se movimentam e ocupam lugares nos espaços, cuja idealização não os integrou e nem projetou as suas sociabilidades de forma potenciadora, permitindo que eles sejam desencadeadores da sua própria construção, embora possa parecer limitativo em termos de capacidade de produção política, ela não lhes retira o lugar de potência na produção económica, cultural e simbólica, mesmo quando a precariedade financeira condiciona as possibilidades de adoção de outras estratégias. A imposição de normas que permite aos governos, através das Câmaras, o reconhecimento legal e estatutário enquanto gestores das cidades e consequentemente a execução de políticas públicas de interesse comum, não são as que produzem efetivamente as cidades e nem são elas que jogam o papel da integração das pessoas.

Foto cedida pelos autores

No contexto africano, as pessoas estão nas ruas, produzem-nas e são donos delas, convivem, passam a maior parte do tempo na rua, é ali que resolvem os problemas, nela e visualmente criam identidades que são mais conhecidas e utilizadas, que geram formas intensas de apropriação com o intuito de atribuir planejamento, integração ao espaço que constitui a autenticidade da vitalidade urbana. Olhando para as formas alternativas de produção dos territórios face às dinâmicas de segregação espacial e lutas pela apropriação do espaço nos contextos urbanos na Guiné-Bissau e em Cabo Verde, deparamo-nos com um movimento diário intenso de pessoas, bens e serviços nas suas avenidas, esquinas e becos baseados na economia de aglomeração, mesmo em contexto de pandemia, enquanto promotoras de densidades territoriais agregadoras que permitem circular com seus produtos ou ocupar as zonas que favoreçam maior visibilidade às suas criações e negócios, não pondo de parte a utilização das suas próprias residências e/ ou varandas de outrem, mesmo sendo instituições públicas.

Por outro lado, nos espaços devolutos e nos bairros ditos periféricos são produzidas várias formas de recriar o sentido de identidade através da produção cultural, seja ela através das músicas, letras escritas nas paredes, seja ela através de coletivos que se juntam em sintadu/ xintadas, ou ainda através da produção de murais artísticos em algumas vias e bairros populares, que transportam novas cores, mensagens e simbolismos para o diálogo com a memória e a narrativa dos tempos nesses territórios. Assim, a apropriação da rua contribui simultaneamente para que esta se transforme num espaço de acão produtiva da cidadania política e interventiva que projeta os jovens para o centro da transformação social enquanto agentes do contrapoder e influenciadores de novas iconografias e de vozes reivindicativas de novos protagonismos de história e lugares nas cidades.

“A irrupção da ocupação das ruas por parte dos jovens politizados em torno de lutas pela emancipação da condição juvenil, como pela defesa da democracia, encontra na Primavera Árabe o momento charneiro que marca um novo protagonismo em termos de capacidade de produção do impacto público.”

Em Bissau e na Praia, demos conta que as contingências dos processos de estruturação das cidades e consequentemente das economias, se por um lado empurraram os jovens para a exclusão e reprimiram as suas formas primárias de consumo dos lugares erigidos pelo Estado colonial e pós-colonial, geraram, igualmente, possibilidades de criação de coletivos sociais que têm assumido protagonismos de uma construção da participação diferenciada, cujos meios estão a contribuir para a redefinição dos contextos de novas espacialidades, que se distinguem em processos de mobilizações coletivas não formalizadas, captadoras de diferentes formas de articulações nas suas comunidades.

São várias as formas de emancipação, de protesto à construção social de mudança como projeto político, cujos processos de intensificação da ação pública tem dado lugar a um novo tipo de protagonismo da sociedade civil, cujo impacto tem tido maior propensão a favorecer o surgimento e ampliação do espaço de intervenção de agentes culturais, na perspetiva de intensificação do modelo político alternativo para uma nova geração nas suas comunidades. Neste artigo, discutiremos a ação da produção criativa, mais que trabalho artístico, mas sim como um palco de reivindicação de uma nova ordem que supera a critica e a integração numa sociedade que não responde aos anseios da juventude, politizando, assim, os espaços de lutas sociais para a transformação das relações de opressão territorial em princípios de justiça e de poder.

 

Disgadja! Movimentos Sociais populares de intervenção urbana em territórios complexificados: Guiné-Bissau e Cabo Verde

Enquanto produtos de invenção colonial, as cidades em África nasceram compartimentadas, partidas ou fissuradas, nas quais os centros, apropriados pela população branca e seus descendentes mestiços segregavam para a periferia ou para o subúrbio a população indígena. Embora em Cabo Verde tenha sido hegemónica a ideia de que do ponto de vista formal, contrário à realidade bissau-guineense onde foram erigidas cidades coloniais conhecidas popularmente como “praças” e segregado o seu acesso em função do estatuto do indigenato, a transposição do modelo urbanístico colonial não produziu um dualismo urbano e racial. Na prática, a diferenciação social e urbana entre riba-Praia (Plateau) e baxu-Praia, estando este último associado às populações migrantes rurais, tidas como descendentes dos forros e escravizados auto-libertos, designados como badius di fora.

No caso guineense, o pós-independência gerou um processo de aburguesamento da elite revolucionária ao ocupar os antigos edifícios coloniais tanto em termos de funções político-administrativas (inclusive de repressão), mas também servindo de espaço de residência da classe alta, concentrada em Bissau. Num contexto onde as antigas Praças coloniais no resto do país foram relegadas ao abandono, a sedimentação territorial acabou por gerar um processo de clivagem e estigmatização de territórios entre “Praça/Tabanka”, tendo em conta os níveis de privilégios herdados desde o período colonial que agora são otimizados. Com os impactos do Programa de Ajustamento Estrutural na economia, principalmente nos finais da segunda metade da década de 1980, verificou-se um duplo processo de mobilidade urbana: a classe média que estava situada na periferia da Praça de Bissau deslocou- se a para os bairros populares, a população rural deslocou-se para a periferia dos bairros populares de Bissau gerando um fenómeno de engessamento espacial na capital. Esse processo de stress urbano, cuja densificação não se verifica na zona da Praça, chegou ao ponto de saturação dos bairros populares com a chegada dos migrantes oeste africanos à Guiné-Bissau devido à adesão do país à UEMOA nos finais da primeira metade dos anos 1990, contribuindo deste modo, para o rompimento dos limites das zonas residenciais tradicionais de Bissau e consequentemente as divisões administrativas coloniais que balizavam até aqui a Capital, para dar lugar ao surgimento de novos bairros considerados agora de novas periferias.

Em Cabo Verde, a recolonização espacial do pós-independência do Plateau como forma de manutenção e amplificação da dominação simbólica impediu a sua descolonização enquanto fator civilizatório importado da Europa, o que contribuiu para o reforço e a legitimação do corte urbano herdado. Este espaço é entre os finais dos anos de 1980 e início dos anos de 1990 reterritorializado e ampliado para novos espaços nobres edificados, em pleno contexto neocolonial desencadeado pelas políticas de ajustamento estrutural, hoje consolidadas pelo movimento de regeneração urbana, cujo principal objetivo é a higienização das ruas para fins comerciais e turísticos.

Esta visão de intervenção urbana enquadra-se na tradição funcionalista da modernização, segundo a qual os pressupostos do desenvolvimento encontram-se na proposta neoliberal, cuja visão eurocêntrica e imbuída num certo paroquialismo neocolonial que se esbate nos processos urbanos africanos que têm na economia e criatividade de rua o seu principal traço de africanidade. Ao reduzir a complexificação urbana africana num dualismo formal/ informal, sendo este último um tipo de espaço e de estilo de vida que foge às formalidades da lei e ao universo academicista, mais do que produzir um conhecimento enviesado da realidade social, está-se a reproduzir as segregações do passado e a condenar grande parte da população à categoria de não-cidadão.

“Os labirintos de acesso aos recursos financeiros para a criação e produção artística baseada na intervenção crítica e alternativa continua a enfrentar atalhos que fazem com que a modalidade de mobilização de recursos estruturantes para a intervenção urbana passe sobre o muro das políticas públicas nacionais.”

Entretanto, um dos fenómenos interessantes de ligação entre a Praça/Plateau e as zonas populares em Bissau e na Praia, bem como com a irrupção dos residentes das zonas populares de forma permanente pelas zonas de urbanização colonial, são as atividades da economia não formal, que se foram projetando em torno das feiras livres, como são os casos de Bandim e Sucupira. Considerados mercados, representam em Bissau e na Praia, respetivamente, o centro das atividades económicas de rua, que se estendem por toda a cidade, aproveitando uma rede de bideras/rabidância, às quais não escapam nem sequer as instituições públicas.

Estas redes surgem como alternativas socioeconómicas e políticas face aos condicionamentos impostos pelos sucessivos governos a partir dos anos de 1980, remetendo a maioria da população para uma situação permanente de emergência e contingência. A dinâmica da sobrevivência deu lugar a cultura do buska bida/disgadjamentu que surge precisamente neste contexto, marcado pela ausência parcial ou total do Estado, que recua nos anos de 1990, numa fase crítica do debate sobre a transição do regime monopartidário para multipartidarismo, abrindo uma janela de oportunidades para os auto-empoderamentos socioeconómicos e políticos da Sociedade Civil, sobretudo daqueles liderados por mulheres e jovens, que representam o perfil da precarização, nestas duas capitais africanas, e os grandes protagonistas do setor da economia criativa de resistência que tem na economia de rua, nos coletivos das mandjuandades e/ou da rabidância, numa fase mais instrumental e depois no movimento em torno do rap e das coletividades comunitárias, o tereru propício de luta e de emancipação sociopolítica.

Com a liberalização política na Guiné-Bissau e em Cabo Verde, na primeira metade dos anos de 1990, passou-se abruptamente de uma situação de partidarização declarada dos movimentos das massas, particularmente o das mulheres (UDEMU/OMCV) e o dos jovens (JAAC) a um processo de despolitização e dependência, resultando numa “ONGficação” da sociedade civil, que passa a seguir à risca a agenda dos programas de Ajuda para o Desenvolvimento, acolhendo a demanda social via constituição de associações locais.

Neste sentido, introduziu-se uma noção de movimentos sociais assentes em pressupostos euro-norte-americanos, centrando-se apenas nos seus aspetos jurídico-formais, desde as formas organizativas até aos ciclos de mobilização, excluindo um conjunto de movimentos tradicionais, espontâneos, populares de rua, que não atuam dessa maneira sob razão de não preencherem os requisitos para serem financiados. A figura social da bideira/rabidanti(1) e o movimento rap, tanto em Bissau como na Praia, surge como exemplo de organizações que não se enquadram nas conceptualizações clássicas dos Movimentos Sociais, mas que nos ajudam a pensar uma ação coletiva que tem o aspeto identitário como foco e o espaço urbano como palco central. De igual modo, permite-nos aprofundar a análise de Movimentos a partir de um outro lugar que não das estruturas fixas, mas sim das relações sociais baseadas nos territórios da resistência. Ou seja, nos fluxos, nas circulações, incluindo representações de imagens e vozes, o que faz despoletar conceitos como soberania, cultura e comunidade.

Entretanto, estas dinâmicas têm sido as mais visadas pelas políticas de tolerância zero implementadas como suporte dos programas municipais de gentrificação e as que mais sofreram o Estado de Emergência decretado com a situação pandémica. Não obstante, são as que mais têm resistido no processo, reinventando simultaneamente redes e estratégias de solidariedade e o sustento da economia familiar, comunitária, regional e nacional. O tipo da ordem económica e social criado, que além de alimentar a nova ordem global neoliberal, molda espaços políticos e de intervenção social que, embora invisibilizados, constituem-se como sujeitos políticos e principais agentes de integração africana e do pan-africanismo por via dos constantes fluxos de circulação entre Bissau, Dakar e Praia.

 

“Kalka Pe”! Redesenho de um novo ecossistema sociocriativo e de intervenção política em Bissau e na Praia

O movimento rap, uma outra figura social que não se inscreve na conceptualização clássica dos movimentos sociais, reinventou, por seu lado, outro espaço de resistência e denúncia, tornando visível o mal-estar social e político e proporcionando aos jovens a possibilidade de reformular as suas críticas, na medida em que se encontram numa situação de desespero e desilusão. A problemática das bideras/rabidantis é apenas um dos muitos temas fraturantes trazidos e representados por alguns rappers como uma importante figura de reorientação ontológica na busca do equilíbrio de um povo a partir do papel matriarcal e materno-centrado, enaltecendo o seu papel como mães africanas líderes na luta pela recuperação, reconstrução e criação da integridade cultural negra, baseada na reciprocidade, harmonia, justiça e ordem.

A literatura dos movimentos sociais tende a olhar os protestos através de dois processos distintos, mas confluentes: o seu início e o seu crescimento popular. Se para iniciar é necessário a existência de um líder, para que o movimento cresça é fundamental haver adesão de outras pessoas. O papel do rapper/MC neste processo foi o de articular as diferentes partes envolvidas, fazendo com que o movimento ganhe vida e se amplie através das letras chaves das suas músicas, tornadas bandeira de resistência e banda sonora dos protestos de rua. Na Guiné-Bissau e em Cabo Verde, este processo foi liderado por agrupamentos em forma de coletividade, sendo que no caso guineense o impacto foi gerado sobretudo via rádios comunitárias, neste caso, no final de 2008, foi a estação difusora Jovem, com os FBMJ como principal protagonista.

Mas é sobretudo no contexto cabo-verdiano que o protesto promovido pela MAC#114, em 2015, como o do Sokols, em 2017, tiveram o movimento rap como um dos principais protagonistas, mensageiros e mobilizadores de rua. O termo vaga, por sua vez, tem sido utilizado no contexto africano na leitura da continuidade dos movimentos sociais, permitindo refletir as transformações na sociedade e não nas estruturas de governação, demonstrando que as vagas de protesto não acontecem num vazio, mas sim num contexto herdado por uma anterior mobilização.

Se tomarmos em consideração que o rap surge nos dois países analisados nos anos de 1990(2), dando voz à indignação, às contradições das políticas de ajustamento estrutural e consolidou-se nos anos 2000 (tendo a Guiné-Bissau vivido uma guerra civil entre 1998 e 1999), como resposta às políticas de austeridade pós-crise 2008, através da recuperação do legado da luta anticolonial e antiracista que desencadeou as independências, concluímos que estamos perante uma nova expressão do acordar africano, de uma plataforma pan-africana. Desta forma, o rap deu um enorme contributo na recuperação do conceito racializado do sujeito africano, assente em caraterísticas como dignidade, valorização e solidariedade negra transnacional.

Na busca do seu ancestral, o rap hoje nos dois países entra num processo simultâneo de endogeneização e indigenização através do diálogo com as tradições da oralitura africana como o finason e a tabanka, sendo este primeiro descendente direto do djidius/griot e reinventado no tereru como um dos elementos do batuku na Ribeira Grande da era esclavagista. O batuku, enquanto cultura de resistência na sociedade cabo-verdiana, foi preservada pelas mulheres da rabidância, algo que se pode associar às cantigas de (grupo) mandjuandi no caso guineense que, juntamente com o funaná e o uso do kriol(u), ambas fortemente reprimidas pelo regime colonial, foram utilizadas no processo de luta de libertação com o intuído de recordar ao povo a sua raiz africana e a necessidade de lutar contra o colonialismo.

A morna e a coladeira, consideradas como citadinas e aceitáveis, ambas surgidas nas ilhas do barlavento, onde a população é tida como a mais europeia, eram, pelo contrário, utilizadas pelo regime colonial como instrumentos de assimilação. Músicos cabo-verdianos eram levados em digressão para Bissau a fim de animar as noites nas Praças entoando mornas nas grandes festividades. Isto não impediu, no entanto, que as suas temáticas fossem subvertidas num processo de guerrilha cultural de apelo ao suicídio de classe e de desassimilação. Nessa altura em Bissau, sobretudo na segunda metade dos anos de 1960, um movimento cultural em torno da música popular guineense despoletou com poemas em kriol através dos Cobiana Jazz e de José Carlos Schwarz, cujo ímpeto militante originou a perseguição política e prisão pela PIDE.

Foto cedida pelos autores

Era a primeira vez que se ouvia uma banda musical moderna genuinamente guineense, tendo contribuído fortemente para a mobilização para a causa da independência dos jovens urbanos e periféricos. Ora, no contexto da luta armada para a libertação nacional, é o sikó que ganha espaço nas zonas libertadas pela guerrilha na Guiné, que servia como base de exaltação das conquistas que se iam verificando, mas também como elemento de comunicação com as populações na produção de narrativas contra-coloniais. Com as independências, de expressões de resistência transformaram-se em músicas de celebração da independência, mas também patrocinadas pelo regime do partido-único. Se no caso cabo-verdiano foi a abertura democrática em 1991 que pôs fim a essa tendência, no caso guineense a crise económica e financeira da segunda metade dos anos de 1980 já tinha levado à falência o modelo dos conjuntos patrocinados pelo partido- Estado, se bem que antes dessa data, mesmo nos primeiros anos pós-independência já haviam sido críticos aos desvios das orientações ideológicas na governação do país.

O advento democrático trouxe o fenómeno “showmícios”. São vários os casos de contratação de artistas e bandas profissionais e consagradas que são mobilizados para as campanhas eleitorais dos grandes partidos. Este processo proporcionou uma comercialização da produção, cuja propaganda não contribuiu para a coesão quer no seio dos grupos profissionais como, de certa forma veio dividir o movimento rap, particularmente em Cabo Verde, cuja plataforma de lançamento político foram os comícios político-partidários dos dois maiores partidos, a partir das eleições legislativas de 1996. Não obstante as sucessivas tentativas de partidarização, mercantilização e institucionalização, uma parte deste movimento herda o espírito revolucionário dos anos de 1970 e apela a uma nova (re)africanização dos espíritos e das mentes perante a cavalgada do neocolonialismo.

Este processo de transformação das ruas de uma cidade confronta-se com a crescente degradação do seu espaço público e disputa política da memória de libertação, quer pela ocultação como pela tentativa de imposição de novos heroísmos baseados no populismo.

É nesse particular que nasce a Associação Pilorinhu, que a partir das políticas de rua desenvolvidas pela Korrenti Ativizta que, juntamente com vários outros movimentos juvenis urbanos, identitários de matriz cabralista, tiveram protagonismo a partir do início de 2010, nos processos de pacificação da violência dos gangues que assolaram a capital cabo-verdiana com maior intensidade entre 2007 e 2014. Conscientes do papel do rap na importação e reprodução de uma parte dessa violência, utilizaram-na também como um instrumento de consciencialização dos jovens. Em Bissau, a mobilização em torno do resgate dos discursos e das ideologias de Cabral, encontra no rap consciente a expressão de combate contra o desmando dos militares através dos Golpes de Estado, à corrupção e ao enriquecimento ilícito dos decisores políticos e ainda à captura do Estado pelo narcotráfico, mesmo sendo alguns artistas mais populares presos e espancados de forma impune.

Contudo, os labirintos de acesso aos recursos financeiros para a criação e produção artística baseada na intervenção crítica e alternativa continua a enfrentar atalhos que fazem com que a modalidade de mobilização de recursos estruturantes para a intervenção urbana passe sobre o muro das políticas públicas nacionais. É deste modo que nos últimos três anos, as ruas de Bissau e da Praia ganham novas formas de mapeamento e de ressignificação por meio da arte urbana. Em Cabo Verde, surge o projeto Xalabas da comunidade, que através da candidatura a um edital da União Europeia (2017), num consórcio liderado pela ONG África 70, desencadeia um diálogo permanente com a população da Achada Grande Frente, um dos bairros piscatórios considerados periféricos da cidade da Praia.

Com uma cultura geracional de tabanka e batuku, buscou-se a integração social e urbana a partir do turismo comunitário. Tentando, mas não conseguindo, fugir de todo o movimento de regeneração urbana e do novo neocolonialismo espelhado no turismo chamado de voluntariado, através do programa de arte urbana, assente numa metodologia colaborativa que teve como base oito workshops de pintura de rua com a participação de artistas locais liderados por artistas de rua consagrados na Europa, África e América Latina, foi possível criar um roteiro comunitário de murais retratando o quotidiano do bairro e enaltecendo figuras locais e revolucionárias com destaque para o corte da tabanka, Amílcar Cabral e Titina Silá. Antes, a população juvenil do bairro já tinha contato com este tipo de arte em 2013, com a presença no bairro da ONG brasileira AfroReggae, patrocinado pelos escritórios das Nações Unidas em Cabo Verde.

Entretanto, esta intervenção não deixou um legado criativo que pudesse ser aproveitado pelo Xalabas, nem foi apropriada pela população, visto que as pinturas produzidas no murro da escola secundária do bairro foram vandalizadas. Na Guiné-Bissau, a arte urbana surge através de uma abordagem informal do movimento cultural Corubal com o muralista brasileiro, Cazé, criador de uma galeria a céu aberto no Rio de Janeiro, que através do convite da Secretaria de Estado da Cultura promoveu uma formação de pintura mural em 2019 na capital guineense, da qual foi erigida o primeiro mural do país, cuja figura era o líder da independência, com a participação dos formandos guineenses da Galeria Jovem.

Volvido um ano após a formação, a Galeria Jovem materializa a segunda fase do projeto num processo sem financiamento público, erigindo mais três obras de arte a céu aberto nas principais avenidas de Bissau, todos heróis da independência: Titina Silá, Pansau Na Isna, Domingos Ramos e Francisco Mendes, figuras que emprestaram a sua cara à primeira nota do país independente – peso guineense, já em desuso. Este processo de transformação das ruas de uma cidade confronta-se com a crescente degradação do seu espaço público e disputa política da memória de libertação, quer pela ocultação como pela tentativa de imposição de novos heroísmos baseados no populismo, algo que veio a dar mais força aos murais atendendo ao facto que os murais vieram resgatar e atualizar o legado dos heróis como possibilidade de reafirmação ideológica, e simultaneamente, a convocação da autoestima com recursos às temáticas associadas ao património natural e cultural nacionais.

O grafite e o rap, ambos elementos do hip-hop, tem conseguido nestes dois contextos provocar uma reflexão, sobretudo nos jovens, da importância da reinscrição da história e da valorização dos heróis nacionais, mas sobretudo das figuras e heróis locais, preferencialmente das mulheres, propositadamente esquecidas e marginalizadas, em detrimento de figuras políticas que inscrevem os seus nomes em qualquer tipo de obra nestes bairros, por mais pequena que seja. Assim, enquadrado no Festival do Xalabas, introduziu-se uma oficina do hip-hop facilitada por artistas locais do rap e do finason e através de um djuntamon criativo nasceu a música Ka Ta Kusta Nada(3), que enaltece o bairro e as suas gentes.

 

Okupason! Para uma reconfiguração do poder nos territórios em resistência

A irrupção da ocupação das ruas por parte dos jovens politizados em torno de lutas pela emancipação da condição juvenil, como pela defesa da democracia, encontra na Primavera Árabe o momento charneiro que marca um novo protagonismo em termos de capacidade de produção do impacto público que supera o campo das lutas instrumentais pela assunção do poder do Estado.

O seu rescaldo, embora não influenciado diretamente, coincide com a cronologia dos protestos de rua um pouco por toda a África subsariana, cuja utilização alternativa de confronto focado nas lutas populares antecede os acontecimentos da praça Tahrir e tem na revolta de Soweto, nos anos de 1970, o seu início. Em Cabo Verde, a ocupação das ruas ganha alguma relevância a partir do ano de 2005 e intensificou-se a partir de 2011, devido ao desencantamento juvenil com a governação e a persistência das desigualdades nas estruturas das oportunidades. Por exemplo, a música Povu na Puder de Hélio Batalha, tornada pública em 2014, mas só inserida em disco em 2016, é inspirada em Azagaia (rapper moçambicano) e apresentada como uma versão da música Povo no Poder, ambos fundamentais no contexto popular nos dois países.

Na Guiné-Bissau, a destituição do governo constitucional pós-golpe de Estado às eleições por parte do presidente da república, despoletou uma forma inédita de ocupação das ruas por parte de movimentos juvenis em 2015, protagonizada pelo coletivo “Cidadãos Conscientes e Inconformados” liderado por alguns rappers, com destaque para três figuras (WP, Sana C. e Lesmes). Nas manifestações convocadas entre 2015 e 2016, notabilizou-se a música do MC Igreja “Voz di Povu”(4), na qual se fala sobre a necessidade da reconquista do poder pelo povo contra as inverdades que afrontam os guineenses por parte dos políticos depois das campanhas eleitorais e daí a necessidade do povo se levantar. Ora, o ativismo dos rappers nos movimentos juvenis e protestos de rua era algo que já tinha identidade no Senegal com o movimento Y’en a Marre, desde 2011, mobilizando a população para impedir a tentativa de inserir o terceiro mandato presidencial na Constituição, quer através de uma campanha para registo eleitoral dos jovens, quer para manifestações de rua, tendo-se concretizado na derrota eleitoral do Abdoulaye Wade. Este método inspirou vários outros movimentos e chamou a atenção para um processo de construção de alianças no seio do movimento rap que levou, em 2016, a iniciativas conjuntas de produção, como foi por exemplo a participação de Hélio Batalha na música Desahogo do rapper equatorial-guineense Negro Bey (5).

A partir de 2017, alguns rappers cabo-verdianos têm participado no intercâmbio político na África do Sul promovido pela Escola Ideológica Nkrumah para o pan-africanismo. Esses novos protagonistas cívico-políticos têm apelado fortemente à classe dirigente a realização de uma política de dignidade, ao contrário da política de inimizade entre os partidos políticos e convocado a sua geração para que passe para a prática da política de indignação, espelhado no termo i djusta/dja sta bom como refrão de uma narrativa de ruptura e potenciadora de mudanças com um novo protagonismo civicamente engajado. Em Cabo Verde, essa viragem no rap e apelo à unidade dos territórios em resistência a caminho de territórios de emancipação, focado no paradigma da potência, produziu maior efetividade.

O protagonismo da Associação Djuntarti liderado pelo artista plástico Dudu Rodrigues, desencadeou entre 2008 e 2009, o Festival Hip-Hop Konsienti, uma plataforma que além de juntar todos os elementos da cultura hip-hop, criou um circuito urbano do movimento que culminou em 2010, a 20 de janeiro, data que assinala o assassinato de Amílcar Cabral, na organização de uma manifestação denominada de Marxa Cabral(6).

Enquadrada numa programação mais vasta que incluía palestras de promoção da língua cabo-verdiana, intercâmbio cultural entre hip-hoppers, ativistas da Praia e um grande espetáculo final na Praça Alexandre Albuquerque, no Plateau, a grande novidade do movimento foi a introdução de ferramentas das TIC como forma de luta e o trabalho em rede ligando ativistas de praticamente todos os bairros periféricos da cidade. Autointitulando- se “filhos e netos de Cabral”, este movimento cultural de resistência reinventado tinha como agenda a luta para a independência cultural e criativa dos jovens e a palavra revolução foi apresentada como emblema. Nesse mesmo ano os rappers ligados ao Djuntarti participaram no Waga Hip Hop Festival, no Burkina Faso. Esta atividade política e de apropriação do espaço público central da cidade foi relançada em 2013 pela Korrenti Ativizta. Embora bastante “folclorizada” nos primeiros anos, esta atividade política tem conseguido manter a sua essência inicial enquanto espaço de demonstração pública e consciencialização cultural, identitária e política, preservando de certa forma a chama dos protestos e os ideais do pan-africanismo cabralista.

Nesta marcha, também designada como Marcha do Povo, além dos movimentos pan-africanistas locais, têm-se juntado as batucadeiras da comunidade rural dos Rabelados de Espinho Grande, várias comunidades de imigrantes oeste-africanos, sobretudo bissau-guineense e um conjunto de ativistas sem filiação partidária, mas que se revêm na ideologia ou na teorização cabralista. O nascimento do movimento Federalista Pan-Africano cabo-verdiano de inspiração cabralista, em 2015, cuja participação no Gana, em 2018, no pré-Congresso de preparação ao Congresso Federalista Pan-Africano, por ocasião da comemoração do 60º aniversário da histórica Conferência de Todos os Povos Africanos, marca a sua integração oficial no novo movimento pan-africano, veio de certa forma dar alguma consistência na construção de um projeto emancipatório.

A Guiné-Bissau segue uma tendência parecida, com o processo a ganhar um cunho mais construtivista do que de rutura em termos de ações de rua, focado na busca de um modelo mais apropriado para mobilização cívico-política que combina a indignação com o protesto e a proposição de alternativas. É o caso do movimento Pan-Africanista surgido em 2019, que considera Cabral como guia para a sua ação, sobretudo a partir da narrativa e pedagogia educativa alicerçada no projeto “Netos de Cabral”. Financiado através de uma subvenção da Delegação da União Europeia na Guiné-Bissau destinada às estruturas coletivamente organizadas, esta iniciativa conseguiu mobilizar várias correntes juvenis, promovendo jornadas de reflexão-ação em vários domínios, do ambiente à cidadania ativa, das questões de género à gestão sanitária e urbanística, da educação à cultura.

Foto cedida pelos autores

Este coletivo tem vindo ainda a organizar retiros sobre o pensamento dos pan-africanistas num modelo de “escolas ideológicas” para os jovens. A sua ação de rua tem sido marcada pela organização e adesão a várias iniciativas nacionais em torno do protesto contra o sistema político, socioeconómico e de governança, mas igualmente internacionais como a agenda da luta contra o racismo e a dominação hegemónica. O seu impacto tem sido sobretudo sobre os estudantes universitários e recém graduados, sendo palco de intervenção da diáspora académica recém-qualificada, contribuindo para que as redes sociais sejam igualmente um palco de lutas e de veiculação dos seus conteúdos e agendas.

Uma outra atividade recentemente adotada por este coletivo é designada de “Consciência Cidadã”, que junta vários dos seus membros e ativistas cabralistas e sem filiação partidária para o debate de assuntos candentes da sociedade em espaços púbicos e a céu aberto, preferencialmente em locais com carga e simbolismo histórico como a praça Mártires de Pindjiguiti, conhecido popularmente como mon di timba, em articulação com músicos, artistas da nova geração, poetas e humoristas como forma da ampliação do alcance do seus conteúdos.

A Guiné-Bissau segue uma tendência parecida, com o processo a ganhar um cunho mais construtivista do que de rutura em termos de ações de rua.

Em Cabo Verde, o nascimento espontâneo da Rede das Associações Comunitárias e Movimentos Sociais da Praia durante o estado de emergência, face à incapacidade do Estado de cuidar da população mais vulnerável, veio dar um novo alento às organizações juvenis. Integrando grupos com ideologias diversas, boa parte se revendo na pedagogia cabralista, é vista pelos poderes municipais e centrais como concorrentes e não colaboradores, face à recusa em servir de meros executores de ações pontuais em nome de políticas públicas. Cientes que o caminho na emancipação passa pela construção de uma agenda política alternativa com vista à “desONGficação” da Sociedade Civil, lançaram um vasto programa nos territórios onde estão representados, com o intuito de politizar e consciencializar os jovens para o direito à cidade.

 

Rinkada! Pessoas coletivamente organizadas num novo ecossistema político?

A autoidentificação dos coletivos juvenis em Bissau e na Praia de “Netos de Cabral”, mais que procura do resgate do legado histórico de Cabral enquanto líder independentista, constitui a proclamação da luta pela afirmação de uma agenda reivindicativa baseada num enunciado de rutura, quer com o modelo neocolonial herdado do Estado pós-independência na Guiné-Bissau e em Cabo Verde, quer com a alienação ideológica dos dirigentes, dos territórios e dos processos educativos dos quais se consideram subjugados e marginalizados.

Descolonização do território enquanto campo da batalha do poder é, antes de mais, para esses coletivos o ponto de partida para o empoderamento visual, do carater e da sensibilidade numa contra-narrativa empática entre os herdeiros de Cabral com a “nova sociedade” encarnada no poder da transfiguração urbana através de imagens dos murais, das intervenções das músicas rap, enquanto elementos de produção de uma cidadania mais plena e emancipada.

No entanto, um dos desafios que estas coletividades apresentam é sobretudo económico- financeiro, em como potenciar a resistência para a emancipação baseada no modelo de financiamento tradicional em sociedades dependentes da ajuda pública ao desenvolvimento. Não se vislumbrou respostas eficientes e efetivas ao nível da capacidade de mobilização de recursos que permitam, nos dois países, a viabilização das suas agendas de forma autónoma e com marca endogeneizada.

O elemento de maior potencial que apresenta é a pedagogia de resistência que incorpora na educação popular. O pulsar da crítica e da criatividade como meio e ferramenta para emancipação política, tem contribuído para o reconhecimento de identidade organizacional capaz de produzir uma agenda de transformação social coletiva, na qual essas coletividades assumem uma nova possibilidade de superação do sistema denunciado e em combate. Deste modo, procuram um modelo para estruturação onde a função da cidade, para além de ser campo de conquista, também é um meio para gerar a visibilidade e gestão do poder para uma nova governança partilhada e servidora.

 

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(1) Nome dado às pessoas, maioritariamente mulheres originárias de contextos socioculturais marcados pela exclusão,
podendo ser tanto das zonas rurais como da periferia da capital, que tem na arte do disgadjamentu o sustento familiar e
comunitário.
(2)Nos dois países, o movimento hip-hop surge nos finais dos anos de 1980 a partir do break dance e o rap, seu elemento
oral só ganha protagonismo no início dos anos de 1990.
(3) Ver aqui: https://www.youtube.com/watch?v=q5dyR0dR_Ig
(4) Ver aqui: https://www.youtube.com/watch?v=QHFxNIvAmMw
(5) Ver aqui: https://www.youtube.com/watch?v=GzppUUCE8S0
(6) Ver aqui: https://www.youtube.com/watch?v=joj2B3ejfnk