Ao longo das últimas duas décadas as organizações internacionais de desenvolvimento e as agências bilaterais de cooperação focaram-se crescentemente no que ficou conhecido por “Estados frágeis”- um conjunto de Estados no mundo em desenvolvimento que passou por guerras e conflitos violentos. Em 2016, a Organização para a Cooperação Económica (OCDE) publicou dados que indicam que 67 % de toda a Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD) teve como destino os agora denominados “contextos frágeis”. Não é difícil encontrar consequências devastadoras do colapso do Estado e dos conflitos resultantes, mesmo nos países com maiores níveis de riqueza e de segurança da Europa, América do Norte e Ásia, como a afluência às nossas costas de refugiados do Iraque, Afeganistão, Líbia, Síria ou Sudão do Sul. Todavia, apesar da atenção crescente dada a estas questões, é surpreendente que a definição de “fragilidade estatal”, utilizada pelas agências multilaterais e bilaterais de ajuda e os investigadores da academia que trabalham nessa área, continue bastante confusa. Enquanto os recursos direccionados para a “fragilidade estatal” têm uma visibilidade cada vez mais importante, a necessidade e os processos de apoio à construção do Estado em países em desenvolvimento, negligenciados durante décadas de neoliberalismo, ressentem-se da ausência de compreensão sobre o que torna os Estados “frágeis”, o que promove a “resiliência estatal” e qual a relação dessa fragilidade com o desenvolvimento no longo prazo.
Há cinco anos fui co-autor de um relatório com o titulo Meeting the Challenges of Crisis States, que culminou de seis anos de investigação sobre a razão por que alguns países e cidades, quando enfrentam crises económicas e políticas, colapsam em conflitos violentos, enquanto noutros tal não acontece, e sobre as causas de sucesso ou insucesso na reconstrução de Estados depois de episódios de extrema violência. Concebemos esse programa de investigação como estudos multidisciplinares em desenvolvimento, fortemente influenciados pela história da política económica e comprometemo-nos a considerar o conjunto das contribuições que poderiam trazer as análises comparadas qualitativas de um número pequeno de casos, bem como a investigação quantitativa apoiada em dados nacionais. Tínhamos como objectivo desenvolver um aparato instrumental que pudesse ser aplicado a qualquer Estado e determinar quais as tendências futuras. Acabámos por definir três trajectórias de mudança diferentes: fragilidade estatal, resiliência estatal ou desenvolvimento acelerado. Os nossos resultados desafiaram muita da prática reinante das organizações internacionais de ajuda e ainda são tão relevantes hoje como foram na altura da sua publicação. Pretendo reflectir neste artigo sobre alguns dos principais resultados dessa investigação à luz de alterações correntes na insegurança e violência em países em desenvolvimento.
O Estado como um “campo político”: negociações da elite e mobilização social
A opinião dominante na comunidade política ao referir a condição dum Estado ou de uma autoridade pública do mundo em desenvolvimento, foi durante muito tempo baseada na proposição de que a “boa governação”, definida a partir da existência de instituições liberais e democráticas num mercado livre, é a fonte da capacidade do Estado, não só de presidir à paz e à estabilidade, mas também ao crescimento e desenvolvimento. Em geral, tal comprovava-se pela adopção de legislação e pelas políticas formuladas e implementadas.
A nossa investigação sugeriu que se poderia conseguir um nível mais elevado de compreensão sobre os caminhos para a estabilidade política, para a mudança institucional progressiva e para a reforma política se olhássemos o Estado como um “campo político” constituído por um conjunto de relações de poder.
Os Estados representam configurações de poder que emergem de processos conflituosos e de negociação entre elites e entre elas e os grupos sociais. Se ignorar a “negociação das elites” e os padrões da mobilização social que levaram os poderosos na sociedade a apoiarem e funcionarem dentro das regras de um dado Estado, pode originar intervenções ou reformas políticas que, na melhor das hipóteses, ou têm sucesso por sorte ou não têm impacto nenhum; e na pior das hipóteses provocam conflitos violentos. Actores, nacionais e internacionais, que procuram implementar ou apoiar reformas, precisam de compreender como vão ser afectados os grupos importantes de elite (aqueles que comandam o poder social e económico) e os grupos sociais significativos da população em geral. Isto é, qual a fonte do seu poder e como vão ser postos em causa ou fortalecidos com as reformas? Estão em posição de participar (têm recursos, conhecimento e redes sociais)? Têm possibilidade de “sair” ou de optar por ficar de fora (qual o custo para eles se desafiarem as reformas e enfrentarem o Estado)?
Os parâmetros dum campo político que sustenta um Estado são muito mais importantes que a forma específica das instituições “estatais”, como a experiência da República Democrática do Congo (RDC) ilustra mesmo com eleições democráticas e descentralização. A RDC, cujo Estado entrou em colapso com uma das piores guerras da África moderna, entre 1996 e 2002, enfrenta hoje, em 2017, o ressurgir de conflitos violentos. A aprovação de uma Constituição democrática em 2006, quatro anos depois de um acordo de paz, não foi suficiente para assegurar a paz, porque o campo político que sustenta o Estado excluiu grupos sociais e de elite importantes no acesso sustentado a centros de decisão e a fontes de riqueza. Hoje o campo político que se formou a nível estatal durante o período de transição, que privilegiou as elites da província do Katanga, rica em minérios, está em desintegração. A somar ao conflito nas províncias do Kivu, que persistiu durante o período, o presidente duradouro Joseph Kabila enfrenta conflitos armados noutras regiões, incluindo na sua base central de apoio no Katanga. Uma “descentralização”, vista muitas vezes como uma forma de reforçar a democracia, foi incluída na Constituição de 2006. Onze províncias foram divididas de uma assentada, em 26 em 2015 e tal foi encarado como um instrumento de “dividir para reinar” por parte do presidente. O Katanga, crucial para as receitas do Estado central, foi dividido em quatro (em parte de acordo com as linhagens étnicas existentes), permitindo a Kabila instalar lealistas em cada uma das novas províncias e assegurar o controlo dos recursos mineiros. De facto, a découpage, tal como o processo de descentralização foi apelidado, parece ter sido desenhado para diminuir o poder do Governador Moishes Katumbe, que era apoiante de Kabila, mas opôs-se à tentativa do presidente de estender o tempo do seu próprio mandato. Mal Katumbe anunciou que tinha intenção de se candidatar à presidência foi colocado sob investigação policial.
O apoio internacional a Kabila foi mantido, e expandido prudentemente, mesmo que ele tenha falhado na consolidação do Estado. Algumas das piores violações de direitos humanos no país foram perpetrados pelas tropas governamentais. A promessa de redistribuição de rendimento pelas províncias descentralizadas caiu para valores muito abaixo dos 40 % escritos na Constituição, deixando enormes franjas da população na pobreza. Regiões e grupos étnicos inteiros foram excluídos do processo de tomada de decisão e sujeitos a episódios de violência diária, levados a cabo por actores armados não estatais que operavam segundo as suas próprias regras. O “campo político” na RDC ao fraccionar-se originou um Estado cada vez mais “frágil”.
A distinção entre “fragilidade” e “resiliência”
Um dos mais importantes resultados na nossa investigação é que a “fragilidade do Estado” não é idêntica à pobreza. Há uma distinção profunda nos países em desenvolvimento mais pobres entre aqueles que experimentam uma condição de fragilidade – ou um perigo real de quebra do Estado e de violência interna – e aqueles onde o Estado conseguiu uma resiliência considerável, ou paz e estabilidade, mesmo quando o desenvolvimento económico foi elusivo. Ambos, frágeis e resilientes, Estados de países muito pobres são também distintos daqueles que têm um desenvolvimento acelerado. Não compreender estas distinções é esvaziar a ideia de “Estado frágil” de significado e pode levar a sérios problemas em intervenções internacionais.
Durante muitos anos as políticas direccionadas para os “Estados frágeis” foram confundidas pela ausência de distinção entre os problemas específicos da “fragilidade” e os problemas gerais que os países menos desenvolvidos enfrentam. As organizações internacionais e as agências bilaterais de ajuda operaram a partir de uma definição de fragilidade estatal elaborada pelo Comité de Apoio ao Desenvolvimento da OCDE, há cerca de dez anos, e que incluía na sua definição de Estados frágeis, não apenas aqueles que não conseguem assegurar a segurança e os direitos humanos, mas também aqueles que não têm capacidade para assegurar a redução da pobreza e o desenvolvimento. Isto podia incluir quase todos os países em desenvolvimento e, consequentemente, desviar o foco daquelas características do Estado que podem ser particularmente vulneráveis à violência.
Quase metade do Estados da África Subsaariana têm, desde a independência nos anos 70, evitado guerras civis, mas muitos deles estão no fundo da escala do Índice de Desenvolvimento Humano. Há uma categoria de “Estados resilientes” entre os países menos desenvolvidos que não tiveram reconhecimento nem na teoria nem na política prática. A Tanzânia é um desses Estados. Apesar de estar há anos no fundo da escala do Índice de Desenvolvimento Humano e estar rodeada por países onde há ou houve conflitos armados, a Tanzânia manteve a paz.
Enquanto o Estado tanzaniano lidava com a pobreza, a sua resiliência permitia-lhe ir consolidando a identidade nacional, as instituições de cidadania e a comunicação entre comunidades, em moldes que, não só protegeram as comunidades da violência dos países vizinhos durante décadas, mas também prepararam o país para lidar com a pressão de deslocados internos e violência que vem junto com o crescimento. A economia da Tanzânia cresceu quase 7 % em termos reais, em 2016, depois de ter uma média de 6-7 % de crescimento do PIB, na década anterior. A descoberta de recursos minerais não levou à violência e as eleições realizam-se periodicamente em paz. Em 2017, cerca de 47 % da população ainda vive ao nível ou abaixo do limiar da pobreza internacional de 1,90 dólares por dia (era 60 % mais baixa na década anterior), mas o país continua em paz e presentemente faz progressos no seu desenvolvimento.
Enquanto a existência da pobreza é uma questão central no desenvolvimento a longo prazo, consideramos que é necessário olhar para outras características do Estado para determinar aquilo que pode tornar uns países vulneráveis à violência e outros muito mais resilientes. O nosso foco está centrado em quatro dimensões da actividade estatal que parecem cruciais para determinar as trajectórias em direcção à fragilidade ou em alternativa à resiliência: segurança, domínio sobre um território, controlo e integração fiscal e hegemonia institucional.
Olhemos uma a uma estas características
Consolidação da segurança básica é uma pré-condição não só para programas de reformas sectoriais mais elaborados, mas também para um conjunto alargado de reformas na governança, desde a implementação de eleições competitivas até à execução de programas de descentralização e restituição. Um Estado é frágil quando: as suas próprias forças de segurança não são capazes de derrotar adversários não estatais armados; as forças de segurança controlam a autoridade executiva do Estado levando à exclusão de outros grupos da elite; não existe uma cadeia de comando eficaz; ou quando o Estado não consegue manter o poder sem recorrer a violência contra a sua própria população. Em alguns casos a prioridade deve ser dada ao estabelecimento de uma autoridade executiva à qual as forças de segurança estão subordinadas, assegurando uma cadeia de comando unificada, acabando com os abusos contra os cidadãos e assegurando o pagamento das remunerações dos funcionários e elementos alistados e ter a capacidade básica de proteger as elites e as não – as elites nos limites do território nacional.
Na RDC, hoje em dia, não existe uma cadeia de comando unificada, as forças de segurança estão divididas, os soldados são sub-remunerados ou nem são pagos e têm, em consequência, para assegurar a vida das suas famílias, de recorrer à violência contra a população (sendo acusados recorrentemente de violação dos direitos humanos) e grupos armados não estatais controlam bolsas significativas do território nacional. Esta situação contrasta fortemente com o vizinho Ruanda, onde existe uma cadeia de comando restrita, uma forte capacidade de derrotar desafios de grupos armados (incluindo um processo de registo obrigatório das armas existentes no país) e uma clara subordinação das forças de segurança à autoridade executiva nacional. Similarmente, podemos considerar a situação da Tanzânia como oposta à da Guiné-Bissau. Na Tanzânia, logo depois da independência houve um motim entre os militares do exército embrionário que foi derrotado e foi construído um exército subordinado ao poder político. Na Guiné-Bissau, desde a independência que as forças de segurança se constituíram num poder próprio, caracterizadas por constituírem facções e se envolverem em actividades criminais.
O domínio das organizações estatais sobre uma parte significativa do território é um indicador crucial da resiliência ou da fragilidade do Estado. Quando a autoridade estatal não chega a locais importantes de concentração populacional, de recursos económicos ou a áreas fronteiriças com vizinhos em conflito, isso pode ser considerado um indicador claro de resiliência estatal ou de fragilidade. Isto é tão verdade para zonas rurais ou para territórios distantes de fronteira, como para grandes bairros urbanos precários onde as organizações estatais entram muito dificilmente. Programas que procuram descentralizar ou delegar poder em áreas onde o Estado dificilmente está presente podem agravar a fragilidade, enquanto programas que promovem a integração social e económica do território nacional, mesmo que sejam economicamente “ineficientes”, podem ser importantes para estabelecer resiliência estatal.
No Mali, que durante muitos anos não foi considerado frágil pelas agências de ajuda, sempre houve importantes áreas de povoamento onde o Estado não tinha presença. Foi essa a causa de organizações com alguma ligação à Al-Qaeda terem sido capazes de tomarem rapidamente controlo na região norte do país, em 2012. Apesar da derrota infligida pelas forças francesas em apoio ao Estado nacional, a ameaça perdura dada a contínua ausência de instituições estatais e de programas na região. Um Estado pode conseguir longos períodos de paz, mesmo se as suas instituições não chegam a regiões fronteiriças distantes, mas somente quando há pouca população, com níveis muito baixos de actividade económica e sem a existência de grupos armados operacionais. Quando estas condições mudam, esse território torna-se crítico e a ausência de Estado torna-se uma fonte forte de fragilidade. É assim, mesmo em países de rendimento médio, como a Colômbia, onde durante décadas não era importante para o Estado ter presença nas regiões rurais fronteiriças distantes, mas quando a população aumentou nessas áreas, quando a guerrilha se mobilizou e a produção ilegal de drogas por cartéis armados cresceu, a ausência do Estado permitiu que os grupos armados desafiassem as autoridades estatais.
O controlo e integração fiscal fornece a terceira janela sobre a resiliência ou a fragilidade estatal. Enquanto a capacidade geral de um Estado para criar rendimento é central para gerir o processo de desenvolvimento, a questão central para a fragilidade estatal ou para a resiliência é a extensão do controlo estatal sobre a colecta de impostos. Onde organizações não estatais são capazes de colectar taxas em vez do Estado, como em muitas zonas da RDC, ou em importantes áreas das Filipinas, isso é um indicador da fragilidade do Estado. Podemos ver isto também em muitas zonas onde o nível de vida das pessoas se apoia na economia informal e é colectada por gangues armados e chefes locais em troca de protecção. A informalidade de uma grande parte da actividade económica que se seguiu a décadas de políticas económicas neoliberais contribuiu para estabelecer fissuras de fragilidade, colocando os Estados em situação de maior vulnerabilidade e exposto a uma violência de maior escala.
O outro lado da equação fiscal é também importante, ou seja, o padrão da despesa pública. Enquanto uma despesa eficiente do Estado, que cria ou expande a capacidade produtiva, é crucial para o progresso do desenvolvimento, aquilo que é importante em termos de fragilidade ou resiliência estatal é se as despesas públicas aumentam ou diminuem as “desigualdades horizontais”. Quando a economia está próspera ou o acesso a rendas ou fontes de rendimento e de riqueza estão relacionadas com as identidades particulares de grupos – sejam étnicos, religiosos ou regionais – os países ficam mais susceptíveis à violência do que as desigualdades verticais determinadas pelas classes sociais. Durante muitos anos a despesa pública do Estado tanzaniano esteve limitada pela pobreza do país ou foi direccionada para metas ineficientes e irrealistas; mas essa foi uma experiência partilhada por todos as identidades de grupo do país e, portanto, não foi fonte de conflitos violentos. Contudo, num país como a Nigéria, as despesas públicas privilegiaram frequentemente alguns grupo étnicos e algumas regiões em detrimento de outros ou foram executadas de tal modo que reforçaram as desigualdades horizontais instaladas há muito tempo. Isso tornou o país muito mais frágil que a Zâmbia, que também tem uma economia dependente de recursos naturais, mas onde até muito recentemente, houve uma preocupação considerável em que as despesas públicas não exacerbassem as desigualdades horizontais.
A extensão da prevalência das instituições estatais, ou leis, sobre o sistema não-estatal, se o último estiver suportado por grupos étnicos, regionais, tradicionais, religiosos ou por senhores da guerra nas áreas rurais ou urbanas, é um indicador chave para a fragilidade ou a resiliência estatal. Muitas agências de doadores e organizações não-governamentais celebram o “pluralismo institucional” como uma forma de democracia. Contudo, onde as instituições não-estatais como as regras de grupos religiosos ou de autoridades tradicionais não estão submetidas ao sistema legal estatal, podem actuar como uma importante fonte de legitimidade para aqueles que desafiam violentamente o Estado.
Na região de Mindanao, nas Filipinas, estalou um conflito violento que dura há décadas, sendo as regras de grupos armados como o clã Ampatuan em Maguindanao, os movimentos separatistas armados como a Frente Islâmica de Libertação Moro, ou os movimentos de guerrilha como o Novo Exército Comunista do Povo, que governam a vida económica, social e política do povo em substituição das leis do Estado. Essas regras legitimam aos olhos do povo esses grupos que desafiam o Estado, e é frequente governarem o funcionamento do mercado informal nessas regiões. Isto abriu caminho para a ocupação, em Maio de 2017, de Marawi City em Lanao, no sul do país, por grupos aliados ao ISIS, que lideraram uma batalha com forças governamentais e que se mantém cinco meses depois com violentos confrontos. Em contraste com a Malásia, onde os sultanatos tradicionais com as suas instituições duradouras foram incorporados na constituição do país, com a sua autoridade subordinada ao Estado central. Os programas concebidos para promover a participação e que digam respeito a recursos de organizações não-governamentais, devem estar conscientes desta dimensão da fragilidade do Estado ou poderão contribuir potencialmente para um agravamento de conflitos violentos por reforçarem arranjos institucionais que desafiam o Estado.
O relatório de 2016 da OCDE sobre a fragilidade dos Estados reviu finalmente a definição de Estado frágil para se focar mais na violência. Contudo, ainda apresenta um modelo de fragilidade baseado num tal conjunto de variáveis de risco que se perde o foco naqueles factores que realmente fazem com que os Estados sejam mais vulneráveis à violência generalizada.
Organizações políticas e trajectórias de fragilidade e resiliência
As organizações políticas formatam os modos como as elites se relacionam entre si. Formatam as relações entre as elites e os seus apoiantes, e as características fundamentais do campo político (as instituições e organizações do Estado): mais importante, formatam os poderes e as limitações ao poder executivo a nível central e sub-nacional do Estado. A resiliência do Estado é mais bem conseguida quando: (1) mobiliza a sua base social, apoiando-se numa aliança sustentável sem recurso a repressão sobre não-elites; (2) estabelece a autoridade executiva dentro do Estado com o poder e os recursos suficientes para castigar desertores e recompensar quem joga de acordo com as regras; (3) estabelece a autoridade executiva independente do indivíduo particular que ocupa o posto mais alto e tem modos de velar para que não haja abusos de poder.
A autoridade executiva dentro do Estado é crucial para determinar a inclusão e a estabilidade das negociações entre elites e o campo político alargado. As organizações políticas determinam se a autoridade executiva tem o poder de articular e forçar incentivos positivos às elites para jogarem com as regras do Estado, aumentando o custo da violação desses mesmas regras. Sendo cruciais para estabelecer o poder executivo dentro das regras, as organizações políticas jogam também o papel central para pôr em acção modos de fiscalizar os abusos de poder pelo executivo. Os esforços para influenciar os padrões de governança necessitam de ter em conta como qualquer reforma ou conjunto de políticas podem afectar ou serem afectadas pela autoridade executiva do Estado.
As estratégias para as reformas políticas e económicas que atacam radicalmente interesses existentes num campo político tenderão a falhar ou a provocar conflitos. A promoção da democracia num país necessita de estar mais focada na criação de mecanismos de vigilância e equilíbrio da autoridade executiva do que na forma da competição interpartidária. Em quase todos os casos de resiliência do Estado em países pobres existem formas de patronage centralizadas nos partidos nacionais, como o CCM da Tanzânia, apesar de nem todos os Estados com partidos políticos terem conseguido ter uma resiliência estatal. Quando os parâmetros-base do Estado – como quem é cidadão e quem não é, ou a autoridade de base para atribuir direitos de propriedade – são contestados, o estabelecimento de múltiplos partidos políticos pode permitir a elites rivais e aos seus apoiantes sociais de desafiar a existência do próprio Estado, levando nesses casos a conflitos violentos como na RDC.
Intervenções militares e perspectivas para construir e manter a paz
Enquanto os processos políticos internos num país são decisivos nas trajectórias de resiliência ou de fragilidade, são constrangidos, formatados e, por vezes, sobrecarregados pela estrutura e acções do ambiente económico e político global. Isto inclui: movimentos transfronteiriços de grupos não estatais armados e de refugiados; mercados internacionais de drogas, armas e financeiros; a imposição de reformas estruturais pelas agências internacionais; e as externalidades ambientais de actividades económicas ao nível regional e global. Contudo, talvez o mais pernicioso dos factores externos da fragilidade do Estado tem vindo a ser hoje em dia o desenvolvimento do poder militar para transformar os Estados através de intervenções militares.
Intervenções militares internacionais, como aquelas do Afeganistão, Iraque, Líbia e Síria foram ineficientes para assegurarem transições para Estados mais resilientes e mais pacíficos no mundo em desenvolvimento. Com maior frequência provocaram extrema fragilidade ou mesmo colapso do Estado. Quando as intervenções militares tiveram alguma influência positiva na criação de condições para uma maior resiliência estatal, foram quase sempre baseadas em oficiais de carreira que convidaram a assistência internacional militar a consolidar a autoridade estatal face a um desafio armado interno, como a intervenção inglesa na Serra Leoa, em 2000.
A explicação para a falta de eficácia das intervenções militares está relacionada com uma análise do “campo político”. As organizações políticas ganham capacidades, constroem alianças e conquistam a legitimidade necessária para forjar o campo político, através de processos de conflitos e negociações que são uma parte da luta pela conquista do poder estatal. Quando uma intervenção militar externa derruba um Estado, e dissolve as suas organizações, tirando legitimidade às instituições existentes, e favorecendo só algumas organizações é altamente provável que o resultado seja uma fragilidade extrema do Estado ou mesmo a ausência de toda a funcionalidade estatal. Os exemplos históricos de ocupação militar externa depois de uma guerra, como a da ocupação pelos aliados da Alemanha e do Japão, depois da segunda Guerra Mundial, mostram não só o custo e a complexidade da construção do Estado, mas também o modo como alguns líderes do Estado foram eliminados e muitas das organizações mais antigas e a estrutura institucional foram restauradas. As piores situações de fragilidade do Estado, em 2017, foram causadas pela má concepção de intervenções militares internacionais, que antecederam a emergência de organizações políticas efectivas e de um campo político estável.
Da fragilidade e da resiliência ao desenvolvimento
A promoção do desenvolvimento – ou do progresso através de crescimento acelerado e de redução da pobreza – requer em simultâneo a transcendência da fragilidade básica e a criação para o futuro de capacidade do Estado promover uma intensificação de integração económica no território nacional e uma mudança gradual na produtividade na agricultura, manufactura, indústria em geral, comércio e serviços-chave. O modo como “a fragilidade de um Estado” é definida na comunidade política perde de vista a enorme distância que é necessário atravessar entre, por um lado, as condições de fragilidade e de “resiliência estagnada” e por outro, uma situação onde o Estado consegue um crescimento acelerado e uma redução da pobreza. Um Estado “desenvolvimentista” ou “transformador” tem de ser capaz de criar incentivos e condições para os detentores de riqueza investirem em empreendimentos de produtividade crescente, incentivos e condições salariais para os trabalhadores.
Apesar de a nossa investigação se ter focado mais na distinção entre Estados frágeis e resilientes do que em histórias de desenvolvimento bem-sucedidas, fomos capazes de observar vários factores cruciais para a transição da fragilidade e resiliência em desenvolvimento. Muitos Estados resilientes, mas com economias estagnadas, dependem em grande medida da extracção mineira. Concluímos que a capacidade do Estado de regular o sector está relacionada com o campo político existente. Também concluímos que a promoção de padrões de acumulação de capital, relacionados com o desenvolvimento, só crescem sector a sector. A nossa investigação sobre o sistema fiscal sugere que pode ser aproveitado para encorajar a transformação da produção e para estabelecer um terreno favorável à formação de alianças políticas com foco no crescimento e no desenvolvimento. A investigação contribuiu para um corpo crescente de conhecimento que ilustra o modo como a ajuda internacional entregue a Estados frágeis e resilientes pode ter um impacto profundo na sua potencial contribuição para um desenvolvimento sustentado.
A ajuda necessita de ser enviada através das agências estatais e deve dar prioridade ao desenvolvimento de capacidades estatais nucleares de governar o desenvolvimento económico. Os doadores necessitam de ter em consideração os mecanismos que aumentam a capacidade dos Estados de aumentarem as suas próprias receitas financeiras. A ajuda enviada por meio de sistemas não estatais ou “fora do orçamento”, orientadas para colocar recursos rapidamente nas mãos da população local, podem contribuir para a criação de uma “duplicação da autoridade pública”. Isto pode enfraquecer o papel do Estado como centro de decisão, a favor de redes potencialmente rivais de patronage.
As alianças para o desenvolvimento podem emergir de forma menos democrática ou apenas dentro de sectores das organizações do Estado, mas se forem inclusivas e contiverem medidas para vigiar o abuso da autoridade executiva merecem o apoio dos actores externos. O campo político, e as negociações das elites no seu centro, que é capaz de abrir caminho através de um processo conflituoso que pode colocar um governo fora da estagnação resiliente, surge raramente e é em grande medida uma questão de política interna. Os actores externos necessitam de ser capazes de os reconhecer e apoiar mesmo quando estão relativamente pouco organizados dentro dos padrões das democracias liberais modernas.
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Para saber mais:
Putzel, James e Jonathan Dijohn, Meeting the Challenges of Crisis States. London School of Economics, 2012, disponível em http://www.lse.ac.uk/internationalDevelopment/research/crisisStates/Home.aspx