Europa Oxalá – contemporaneamente Europa [1]

Margarida Calafate Ribeiro

É investigadora no Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra, onde coordenou o projecto MEMOIRS Filhos de Império e Pós-Memórias Europeias, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação. Em 2022, publicou com Fátima Cruz Rodrigues Des-cobrir a Europa filhos de impérios e pós-memórias europeias (Afrontamento). A edição francesa é da Presses Universitaire Nanterre.

Hoje, os herdeiros dos movimentos políticos e populacionais saídos das descolonizações e das migrações subsequentes, são sujeitos e corpos políticos europeus que assumem memórias e identidades transnacionais e transterritoriais.

Nas discussões contemporâneas sobre as heranças coloniais europeias, a história e a memória têm vindo a adquirir uma maior relevância política, colocando sob suspeita o contrato historiográfico sob o qual vivíamos. Da estatuária e toponímia urbana, aos museus e às universidades e às suas coleções, dos currículos escolares à atitude dos media, da consolidação das diásporas africanas na Europa e da sua liderança na discussão sobre o racismo estrutural que molda as nossas sociedades, até às pressões da migração e ao surgimento de uma nova e cosmopolita produção artística, tudo parece concorrer para uma ampla discussão pública sobre as marcas e as presenças activas do passado colonial no nosso presente. No entanto, e de forma algo contraditória, o impacto destes debates nas histórias e nas identidades nacionais europeias continua a ser uma lacuna para a construção de uma memória europeia transnacional relativamente a este passado, num tempo em que assistimos a uma globalização da relação entre o lembrar o passado e o demandar justiça no presente. Ou seja, um tempo que nos convoca enquanto cidadão a olhar para o que no passado criou e provocou discriminação, subalternização, despossessão e sofrimento e criar os mecanismos para que isto não tenha mais expressão no presente. Os movimentos Black Lives Matter ou Rhodes must Fall e as suas diversas declinações em várias cidades europeias são a expressão mais mediática de uma série de demandas de caráter inicialmente nacional e até regional, mas que encontraram eco numa demanda de justiça global ligada à história dos acontecimentos e à reivindicação da herança política de vivências politicamente intensas e necessariamente subjetivas das gerações anteriores.

 

O tempo longo do contemporâneo

O fim dos impérios ultramarinos europeus foi trazendo para a Europa ao longo das décadas de 60, 70 e 80 do século passado importantes fluxos populacionais com vivência colonial – repatriados, pieds noirs, retornados, ex-combatentes das guerras coloniais, ex-colonizadores, ex-colonizados, africanos, magrebinos, asiáticos. A sua presença na Europa assinalava a transição da Europa como continente colonizador para uma Europa pós-colonial, dificilmente descolonizada das suas colónias e das imagens de ex-colonizador e de ex-colonizado, apesar das utopias de libertação que marcavam o momento histórico global que foi a descolonização. Às realidades pós-coloniais europeias que estas pessoas, as suas histórias e os seus movimentos representavam, foram sendo dadas soluções de matriz colonial, transpondo-se assim para território europeu novas situações de discriminação, subalternidade social, política, racial e urbana, gerando fenómenos de integração mal resolvidos, provocando sentimentos de ausência, silenciamento, esquecimento, abandono, nostalgia, ressentimento. O silêncio sobre a herança colonial europeia traduziu-se na indiferenciada definição de muitas destas pessoas como “retornados”, migrantes, exilados gerando uma relação deficitária destes indivíduos com a cultura do país em que viviam e onde os seus filhos nasceram, e que era a antiga metrópole, bem como com o Estado, nomeadamente impedindo o acesso “durante muito tempo, à cidadania autêntica e válida”, como observa Tariq Modood (2007: 172), particularmente das populações racializadas.

Hoje, os herdeiros dos movimentos políticos e populacionais saídos das descolonizações e das migrações subsequentes, são sujeitos e corpos políticos europeus que assumem memórias e identidades transnacionais e transterritoriais. A partir das suas experiências familiares e públicas interrogam as histórias contadas na casa europeia e as histórias ocultadas, herdam objectos de territórios e vidas anteriores, interrogam narrativas museológicas, cujas colecções evocam fantasmas da empresa colonial, revisitam arquivos oficiais e descobrem uma história fantasmática que explica as suas origens e o seu lugar na Europa. E, ao mesmo tempo que se sentem herdeiros da violência que os pais e avós exerceram, mas sobretudo dos que a sofreram durante o colonialismo e as guerras e descobrem as raízes da subalternidade, do racismo ou da dependência, descobrem também outras narrativas que são muito sedutoras: as lutas de libertação empreendidas pela geração dos seus pais, o momento em que África se libertou do jugo colonial, e sonhou os novos países com os seus líderes carismáticos e jovens, as suas ideias, os seus sonhos e as suas tragédias e descobrem que esta história lhes foi traficada. Uma história que, como afirma a artista portuguesa Grada Kilomba, no filme Conakry (2013), de Filipa César a poderia ter feito uma criança feliz na escola onde andou em Lisboa já depois do 25 de Abril de 1974, e onde sentiu a segregação, o racismo e a discriminação.

Uma história que levou o jornalista e escritor francês Said Maharane, a ir à procura do seu pai público e de o descobrir como clandestino da Frente Nacional de Libertação argelina (FLN) no final dos anos 1950 em Paris, em C´était en 58 ou en 59 (2011). Uma história que levou Lilian Thuram a escrever As Minhas Estrelas Negras – de Lucy a Barack Obama (2013), para como adulto, se (re)encontrar com a parte da sua história que lhe tinha sido ocultada na escola, onde o ser negro parecia reservado a seres sem história ou destinados a nela figurarem como escravos. Uma história que levou a escritora francesa Brigitte Giraud a recuperar o tempo do seu próprio nascimento em Sidi Abbès na Argélia, onde o seu pai e a sua mãe se encontravam envolvidos na Guerra da Argélia, com todas as alegrias da maternidade e as angústias de um presente estilhaçado por uma guerra que nunca teriam escolhido, como visível no romance Un loup pour l’homme (2017). Uma história que levou o escritor português Paulo Faria a assumir a herança da guerra do seu pai, a guerra colonial portuguesa em África, como a “guerra seguinte” que sobre ele se projectou: “Moçambique não sabe o que fazer de mim. Repele-me como um corpo estranho. Não me permite que me instale. Não me acolhe, não me diz: “Já passou”. Mostra-me as suas próprias chagas, reduz a minha dor a proporções modestas, troça de mim. (…) Vim a Moçambique para reduzir o meu trauma à insignificância. O meu trauma resiste, recalcitra, enquista, calcifica. Os meus mortos não me deixam em paz” (Faria, 2019: 189).

Em que arquivo foram colocadas estas histórias que hoje emergem pela voz destes herdeiros? Pode tudo isto ser o negativo da história europeia que nos foi narrada? E por que razão ela é ocultada, silenciada, inconfessada? Em que é que ela afecta a “boa consciência” europeia, de que falava Eduardo Lourenço?

 

Dada, Sabrina Belouaar | 2018 © ADAGP, PARIS (Cortesia de Mohamed Bourouissa)

As histórias, os objectos, as imagens sobreviverão nas mãos dos filhos, quando já não houver a memória directa da experiência. Essa ausência da experiência, e reivindicação de uma herança é a pós-memória.

De facto, sobretudo a partir dos anos 2000, questionamentos sobre os silêncios, os não ditos, as ambiguidades, as histórias privadas e públicas sobre os vários passados coloniais e os seus reflexos no presente europeu, começaram a ganhar novos sujeitos políticos, um carácter concreto na arena política e decisória e uma grande repercussão mediática, criando um movimento europeu sem precedentes. Os debates sobre a descolonização e as suas múltiplas fases, o reconhecimento de crimes durante a época colonial e as guerras coloniais, as interrogações sobre as coleções museológicas europeias, os debates sobre a restituição de obras e as formas de ensinar a história, a denúncia e a perseguição judicial mais eficaz contra crimes racistas, a emergência de figuras históricas africanas e das suas palavras, o questionamento sobre os modos do diálogo Norte-Sul e a emergência de um novo discurso pela parte de uma geração de políticos europeus mais jovens, começam a marcar as agendas políticas e a desenhar um clima, uma luta e, cremos acreditar, uma vontade política diferenciada. No seu conjunto são indícios de uma Europa a desembaraçar-se do passado, a descolonizar-se das suas ex-colónias, a libertar-se das imagens do ex-colonizador e do ex-colonizado, a olhar para os fantasmas contidos nos seus objectos museológicos, e, portanto, são sinais de uma Europa que, ao rever as suas narrativas nacionais, equaciona outro futuro. Um futuro em que as histórias, os objectos, as imagens sobreviverão nas mãos dos filhos, quando já não houver a memória directa da experiência. Essa ausência da experiência, e reivindicação de uma herança é a pós-memória.

O que se passa então neste processo? O que assistimos hoje é, portanto, à transformação destas reminiscências de infância e sobretudo de experiências alheias das gerações anteriores em capital memorial próprio, e, portanto, em herança como um activo contemporâneo. Em alguns casos assistimos também à transformação das ideias da experiência indireta transmitida e herdada, privada e pública, em experiência estética.

É aí que encontramos as obras na “condição da pós-memória” na definição de António Pinto Ribeiro (2021), ou seja, obras questionadoras e desassombradas sobre as heranças coloniais e as suas projecções hoje e que se situam nas mais diversas expressões artísticas: do cinema às artes performativas, da música às artes visuais e à literatura [2].

Penso que Abdel Raouf Dafri, realizador francês da longa-metragem Qu’un sang impur (2020) que se focaliza na guerra pela independência da Argélia contra a França, explica muito bem o processo de pós-memória como uma interrogação gerada no seio da família e projectada como uma interrogação pública sobre a contemporaneidade.

“Eu sou francês, um produto totalmente ocidentalizado. Eu queria saber porque é que os meus pais vieram para Marselha em 1963, em vez de ficarem numa Argélia independente. Ambos eram analfabetos, o meu pai era um homem sem ideologia que adorava De Gaulle, o seu negócio era o dinheiro, trabalhava para a sua família comer. A minha mãe costumava dizer-me: a Argélia é o nosso país, a França é o vosso, e têm de viver aqui. Eu não conhecia a Guerra da Argélia. Nasci em 1964, a guerra terminou em 1962, não tenho qualquer legitimidade para falar de sentimentos. O que me interessou nesta aventura foi falar sobre a história da França.” [3]

A pergunta seguinte seria, portanto: Como se deu a transferência de memória intergeracional relativamente ao processo do final do colonialismo europeu? Como é que esta memória se manifesta social e culturalmente hoje na Europa? Qual é o impacto dessa memória, muitas vezes latente, na Europa dos dias de hoje? Memoirs filhos de império e pós-memórias europeias foi um projecto de investigação do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação, em que analisamos a presença destas memórias ou melhor pós-memórias de lastro colonial, seja na experiência quotidiana dos cidadãos, ao realizar entrevistas, seja através da análise das múltiplas e diversas narrativas elaboradas nos campos da literatura, cinema, música, artes performativas e artes visuais, em que os conceitos de herança colonial, memória e pós-memória são abordados. A sua dimensão comparativa entre Portugal, França e Bélgica – onde ecoam memórias de Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde, Argélia e Congo – permitiu-nos olhar as gerações seguintes numa dimensão não apenas portuguesa, mas europeia. Ou seja, o âmago do projecto estava focalizado no campo de batalha mais delicado e incerto do destino europeu.

Cartaz, Europa Oxalá, Africa Museum, Tervuren, Bélgica, 2022

O movimento contido em cada obra de Europa Oxalá e na narrativa que a curadoria nos convida a seguir, mostra-nos a Europa no mundo e o mundo na Europa, ou seja, o mundo que a Europa criou e  o mundo que criou a Europa convidando-nos a um horizontal e emancipador diálogo Norte Sul.

É, portanto, neste tempo que é o nosso e que é já um tempo de trânsito, como escreveu Roberto Vecchi, entre as testemunhas – aqueles que protagonizaram os acontecimentos que levaram ao fim do colonialismo – e o tempo das gerações seguintes (2018: 18), que se situam os artistas e as obras da exposição Europa Oxalá. As pinturas, desenhos, esculturas, filmes, fotos e instalações de Aimé Mpane, Aimé Ntakiyica, Carlos Bunga, Délio Jasse, Djamel Kokene-Dorléans, Fayçal Baghriche, Francisco Vidal, Josèfa Ntjam, Katia Kameli, Malala Andrialavidrazana, Márcio Carvalho, Mohamed Bourouissa, Mónica de Miranda, Nú Barreto, Pauliana Valente Pimentel, Pedro A.H. Paixão, John K. Cobra [Roland Gunst], Sabrina Belouaar, Sammy Baloji, Sandra Mujinga e Sara Sadik na narrativa curatorial criada por António Pinto Ribeiro, Katia Kameli e Aimé Mpane dão corpo a paisagem cultural europeia transnacional e transterritorial que nos últimos anos tem alimentado as mais diversas discussões e delicadas controvérsias entre vários sectores da academia, da vida artística e do activismo. Nas suas obras ecoam memórias diferidas de um tempo e de um espaço extra-europeu ligado a expressões e memórias coloniais, a lutas de libertação e a múltiplos sujeitos políticos, que se projetam num tempo pós-colonial em que os temas das migrações, do racismo, da identidade, da pertença, das fronteiras, das relações Norte-Sul, dos territórios, do feminismo, da ecologia, da história e das narrativas alternativas se questionam e transformam. É nessa medida que Europa Oxalá lança uma discussão entre esse tempo marcado pela dominação colonial e as relações sociais e políticas contemporâneas na Europa, a partir da mais variadas perspectivas.

Dada (2018), a peça de Sabrina Belouaar que abre a exposição, exibe uns punhos fechados e simultaneamente acorrentados por um cinto. “Dada” significa pai e esta peça evoca, de acordo com a artista, o seu pai, migrante argelino em França que toda a vida trabalhou numa fábrica de cintos. Os cintos que, ao mesmo tempo que lhe deram a possibilidade de oferecer aos seus filhos uma vida economicamente melhor, o acorrentaram a um estatuto de trabalhador migrante, sem história, sem língua, sem cultura aos olhos da França. Do sistema colonial que dominou a sua Argélia de origem, “Dada” passa a trabalhador migrante em França, ocultando-se nesta passagem toda a história que a França partilhava com a Argélia e que se prolonga ou transfigura a subalternização do sujeito anteriormente colonizado em trabalhador assalariado, simbolicamente amarrado aos olhos da sua filha, na máquina do capitalismo, como nos tempos do colonialismo. Esta é a história dos “outros” que esta peça inscreve na história da França e da Europa como a de milhares de mãos e de corpos que construíram o seu esplendor, que também lhes pertence. São estes corpos negros, mestiços, árabes, berberes que nesta exposição se exibem no espaço público como no trabalho fotográfico de Pauliana Valente Pimentel da série “Afrodescendentes” (2020) ou na série Nous sommes Halles (2002-2005), de Mohamed Bourouissa, mas também nas sombras de Sandra Mujinga, em Camouflage Waves#2 (2018), nas metamorfoses do filme de Josèfa Ntjam, Mélas de Saturne (2020) ou nos seres etéreos, oníricos, demoníacos e frágeis, permanentemente suspensos ou em queda, de Nú Barreto (Traços Diário 3, 2020).

Mas como tem vindo a sublinhar o curador António Pinto Ribeiro em várias entrevistas e intervenções não se trata de uma exposição de arte africana, como definido nos sistemas críticos ocidentais, mas de uma proposta curatorial que produz uma narrativa nova sobre um tempo europeu pós-colonial de memória ou pós-memória africana e que nos define como europeus. Nesta linha, o artista belgo-congolês John Cobra explicita muito bem esta aparente ambiguidade em que as fronteiras da crítica o têm confinado quando, na verdade, aborda temas como a interrogação sobre a história e as intervenções do imperialismo europeu sobre territórios africanos no quadro do tempo colonial e hoje em dia. No vídeo com os artistas da exposição Europa Oxalá, produzido pela Fundação Calouste Gulbenkian afirma:

“Acho que fui rotulado como artista africano, bom para exposições sobre África, mas não como artista para fazer uma reflexão crítica da história do imperialismo das civilizações ocidentais e adiante. Acho que perdi algumas oportunidades porque fui mal classificado, mal compreendido. Sei que certas pessoas africanas da diáspora africana na Europa, gostariam que me apresentasse como sendo um artista negro mas eu não quero ser classificado como um artista negro. Sou um artista…” [4]

É exactamente isto que está em causa nesta exposição e no desafio de mudança de paradigma que ela nos lança. Márcio de Carvalho na série Falling Thrones- Olympic Series (2019) interroga a história europeia a partir do espaço público preenchido por estátuas que ocupam as nossas praças e avenidas e que todos deveríamos interrogar. Usando a metáfora dos combates de judo dos Jogos Olímpicos, Mário de Carvalho desafia as figuras de poder das estátuas equestres, a partir de figuras das lutas de libertação. No combate, os heróis das lutas de libertação destronam os reis europeus, e assim questiona-se não apenas o seu poder e a sua representação, mas o olhar que sobre eles lançamos no espaço público das cidades europeias: é assim que, nas obras de Márcio de Carvalho, Josina Machel destrona D. João I, Patrice Lumumba, o rei Leopoldo II da Bélgica, na imagem que aliás anuncia a exposição Europa Oxalá na Bélgica.

O desafio seguinte é lançado pela arte minimalista de Djamel Kokéne-Dorléans, que coloca um chicote junto da frase Ça a été!, que dá o título à obra (2009, série fouet).

Numa obra densa em significado, intemporal e sem fronteiras, Djamel Kokéne-Dorléans coloca uma questão essencial e que se respira nesta exposição: não se trata de pensar a arte a partir das origens dos artistas, sendo que ela não é inocente na proposta e na equação curatorial, mas de tentar compreender o que esta arte nos diz dos nossos dias de hoje a partir de múltiplas identidades, que nos configuram como europeus herdeiros de um continente cuja história nunca se cingiu aos seus limites territoriais geográficos e, consequentemente, cujos atores não se confinaram aos seus limites geográficos. Épuration élective (2009), de Fayçal Baghriche, é uma instalação de grandes dimensões composta por uma página de um Atlas de onde as bandeiras de todos os países foram retiradas, ficando apenas as estrelas sobre um fundo azul. Ao lado, do mesmo artista, vemos o globo terrestre a rodar a uma tal velocidade que o olho humano não capta qualquer fronteira terrestre ou marítima (Souvenir, 2009).

Nádia Yaracema, in Pauliana Valente Pimentel, série afro-descendentes, 2020

Sendo artistas visuais, (…) estas obras são essenciais no redesenhar da história e na afirmação de histórias e narrativas alternativas e de sujeitos políticos portadores de uma história europeia, desenhada sobre as heranças de antigos espaços colonizados.

É esta visão sem fronteiras e global dos fenómenos e da condição humana a que Aimé Mpane apela na sua Table de fraternité (2020), que evoca a obra clássica da Última Ceia, de Leonardo da Vinci. Nela os apóstolos confraternizam, alimentam-se e negoceiam como em todos os tempos. A projecção desta realidade num contexto actual é-nos dada pela presença de todos na mesa e de objectos como telemóveis, tablets ou computadores que nos evocam a comunicação sem fim de hoje e a negociação que lhe é inerente, mas também intemporal e que nos torna humanos. O que está aqui em causa são de facto os olhares de sujeitos políticos europeus que através das suas obras e da experiência e emoção estética que elas nos proporcionam, nos convidam a olhar para outras estórias da história, nos convidam a desmitificar a história narrada como única.

Sendo artistas visuais, e como sugere Márcio de Carvalho, estas obras são essenciais no redesenhar da história e na afirmação de histórias e narrativas alternativas e de sujeitos políticos portadores de uma história europeia, desenhada sobre as heranças de antigos espaços colonizados. E é esta a história que “trazem” para a Europa para se afirmar como europeus. A série Afro-descendentes da fotógrafa Pauliana Valente Pimentel realiza essa actualização histórica a partir dos rostos, dos corpos e das palavras dos artistas afro-descendentes lisboetas que escolheu fotografar no longo confinamento que vivemos por causa da pandemia de COVID-19. Nas suas curtas afirmações, o seu ser europeu define-se criticamente não por déficit, mas por adição.

“A Europa precisa recontar a sua história. Olhar para o seu passado de brutalidade e destruição e perceber que tudo o que é hoje é fruto disso também. Foi na Europa que cresci e continuo a lutar para que o meu corpo faça parte desta nova possibilidade de história também. Em que possa pertencer a esta geografia plenamente. A Europa deve aceitar a multiplicidade de corpos, culturas, línguas e histórias que a habitam e reconstruir-se nessa diversidade.”

As obras de Europa Oxalá constituem espaços de interrogação para perceber a Europa contemporânea a partir dos complexos lastros coloniais dos designados fluxos migratórios, mas também para compreender o que resta da imagem que muitos destes sujeitos políticos e artísticos criaram dos países dos seus pais. Nela desenham-se imagens sépia onde confluem múltiplas sombras e nostalgias, paisagens sem horizonte, casas perdidas, imaginadas ou míticas, personagens, tempos de luta e libertação. O que resta dessa história interrompida, que aparentemente lhes estaria reservada? Como se transformou em espaço europeu?

O movimento contido em cada obra de Europa Oxalá e na narrativa que a curadoria nos convida a seguir, mostra-nos a Europa no mundo e o mundo na Europa, ou seja, o mundo que a Europa criou e o mundo que criou a Europa convidando-nos a um horizontal e emancipador diálogo Norte Sul, que coloca a memória e a justiça no centro da democracia e de cidadania europeia pós-nacional. Neste sentido Europa Oxalá é também uma intervenção no futuro – dos artistas com as suas obras, dos curadores pela narrativa que nos propõem e das instituições que em três países europeus a produziram, a acolhem e a promovem.

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EUROPA OXALÁ é uma co-produção da Fundação Calouste Gulbenkian Delegação em França / Centro de Arte Moderna; Mucem – Musée des civilisations de l’Europe et de la Méditerranée Marselha / França; Musée royal de l’Afrique centrale / AfricaMUSEUM Tervuren / Bélgica Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES) Projecto MEMOIRS – Filhos de impérios e pós-memórias europeias (Conselho Europeu da Investigação, GA nº 648624).
Acontece de 2021 a 2023, em três países – França (Mucem, Marselha), Portugal (Fundação Gulbenkian, Lisboa) e Bélgica (Museu Real da África Central /Africa Museum, Tervuren).
A exposição produziu um catálogo e um livro de ensaios em quatro línguas: português, francês, inglês e neerlandês.

 

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[1] Este artigo foi desenvolvido no âmbito da investigação que está a ser realizada no projeto MAPS – Pós-memórias Europeias: uma cartografia pós-colonial (FCT – PTDC/LLT-OUT/7036/2020), coordenado por Margarida Calafate Ribeiro, no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Mais informação: https://reimaginaraeuropa.ces.uc.pt/

[2] Ver base de dados de artistas e obras em cinco áreas artísticas: literatura, artes visuais, artes performativas, cinema e música https://reimaginaraeuropa.ces.uc.pt/inweb/paginaEntrada.aspx?Lang=PO&f=artistasObras

[3] France Culture, https://www.radiofrance.fr/franceculture/podcasts/le-reveil-culturel/la-guerre-d-algerie-revient-hanter-le-cinema-francais-3365850

[4] “Europa Oxalá: What is the contribution of Afro-European artists to the European art scene?” https://www.youtube.com/watch?v=b-i_haogEU0&t=5s

 

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Referências

Faria, Paulo (2019), Gente Acenando para Alguém que Foge, Lisboa: Minotauro

Modood, Tariq (2007), Multiculturalism: A Civic Idea. Cambridge: Polity

Ribeiro, António Pinto (2021), Novo Mundo – Arte Contemporânea no Tempo da Pós-Memória, Porto: Edições Afrontamento | Memoirs

Vecchi, Roberto (2018), “Depois das testemunhas: sobrevivências”, Memoirs- Jornal, Público, 14 setembro, p. 18