Do peso material da colonização à descolonização das mentalidades

Gonçalo de Carvalho Amaro

Licenciado em História variante de Arqueologia, pela Universidade Nova de Lisboa e doutor em Arqueologia pela Universidad Autónoma de Madrid. Actualmente faz parte da equipa técnica do Museu de São Roque, sendo ainda professor convidado no mestrado em Património Cultural da Pontifícia Universidad Católica de Chile e investigador integrado no Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa. Faz parte dos corpos sociais do ICOM Portugal.

A descolonização da cultura, ou até do conhecimento, assenta nas tensões geradas nas sociedades pós-coloniais. Com focos de contestação anteriores surge, em grande medida, com os movimentos de libertação após a Segunda Guerra Mundial.

Um desejo material

A palavra colónia tem origem latina, advém do verbo colere (cultivar ou lavrar). Para os romanos, um colonus é etimologicamente a pessoa que cultiva a terra para o seu próprio sustento. Assim, uma colónia representaria fundamentalmente uma quinta ou um assentamento agrícola. No entanto, o verbo colere também representava outros conceitos como a cultura, uma vez que Roma atribuía à criação de uma colónia uma missão cultural, trazendo a “civilização” para as terras e os povos que consideravam bárbaros e selvagens.

O conceito de domínio de uma metrópole sobre um território, cidade ou empório, é anterior à colónia romana, e pode ser observado em períodos anteriores e com outras “civilizações” tais como a assíria, grega, cartaginesa, e noutras partes do mundo, tais como os impérios Maia e Asteca na América; o Ming e Majapahit na Ásia; o império Mandinga em África, entre outros. Contudo, o actual conceito de colónia tem a sua génese na expansão europeia que ocorreu com a conquista portuguesa de Ceuta no Norte de África em 1415 e com a colonização luso-castelhana das Ilhas Canárias durante o mesmo século (Thomaz, 1994). Materializar-se-ia sobretudo no apogeu colonial, à escala global, das potências atlânticas europeias (Espanha, França, Inglaterra, Países Baixos e Portugal) entre os séculos XVII e XIX, integrando a apropriação (violenta) de territórios e mobilização de pessoas (uma grande percentagem forçada e escravizada) e uma extinção sem precedentes das comunidades nativas.

Como nos indica Chris Gosden, a expansão colonial é, na sua essência, uma relação de desejo de cultura material, que pode ser materializado em terras, seres humanos, bens materiais, matérias-primas, um processo mediante o qual o objeto (ou a objectificação) “conforma as pessoas e não o contrário; obriga-as a deslocarem-se tanto fisicamente como culturalmente, a expandir-se geograficamente e a aceitar novas formas materiais” (Gosden, 2008: 179).

Paralelamente, os antecessores dos museus, os gabinetes de curiosidades, começaram por recolectar objectos estranhos, alguns antigos, outros do novo mundo, mas também animais, plantas e até pessoas que se destacavam por serem diferentes fisionomicamente. E se é certo que não foram propriamente esses os princípios que acompanharam a criação de museus após a Revolução Francesa, que visavam sobretudo proteger a arte e torná-la acessível a todos os cidadãos; a partir de finais do século XIX com a repartição de África pelas potências europeias e a justificação positivista e civilizacional da colonização desse continente, levou a que os museus se tornassem símbolos de poder e de justificação material do colonialismo (Bennett, 2004), actuando, muitas vezes como gabinetes de curiosidades, reunindo num mesmo espaço, objectos, corpos humanos, plantas e animais. Verificou-se até uma espécie de competição entre países para ver qual conseguia obter o maior e melhor espólio material de culturas extraeuropeias e até mesmo europeias. O Pitt-Rivers Museum (da Universidade de Oxford) é um excelente exemplo dessa ânsia de acumulação e recolecção, totalizadora, de cultura material sob um pretexto científico.

A construção destes acervos esteve, na sua maioria, dependente de uma rede composta por vários agentes, desde exploradores, militares, administradores coloniais, comerciantes, funcionários e missionários que, directa ou indirectamente, eram parte integrante do empreendimento colonial. Assim, foram constituídas colecções em museus europeus através de conquistas, saques e extorsões. Segundo António Pinto Ribeiro, “na Europa continental as estimativas apontam para a presença de 500.000 objectos recolhidos principalmente nas ex-colónias de África” (Ribeiro, 2021: 140), a maioria dos quais fazendo parte dos acervos do Museu do Quai Branly, em França, e do AfricaMuseum, na Bélgica, possuindo a maior colecção de objectos trazidos do Congo, Ruanda e do Burundi. No seu conjunto estes dois museus representam quase 50% do acervo africano na Europa.

São sobretudo estas instituições que têm gerado controvérsia e que durante o século XIX e grande parte do XX, se apropriaram (com base nos conceitos científicos e na política europeia da época) de objectos e através deles expuseram narrativas dos vários povos sob uma perspectiva de subalternidade perante a superioridade civilizacional europeia, heroicizando personagens com um papel – hoje em dia – controverso,  nomeadamente ligadas ao esclavagismo ou à exploração e extermínios das comunidades indígenas.

Dois momentos fundamentais na segunda metade do século XX acabariam por trazer importantes modificações nas sociedades europeias, no seu entendimento da cultura e na sua relação com os museus: a descolonização do pós-guerra e a queda do Muro de Berlim, acelerando a globalização. Assim, gradualmente, os museus etnográficos detentores de grande parte das colecções coloniais, passam a ser denominados como museus da(s) cultura(s) do mundo, museus das civilizações ou museus de sociedade, testemunhando, como nos indica Nélia Dias, “o fim do paradigma disciplinar que unia os museus etnográficos ao saber antropológico” (Dias, 2021: 105). Estas alterações de denominação surgem numa perspectiva de adaptabilidade dos museus à contemporaneidade, tal como os museus dos séculos anteriores se enquadravam nas características das sociedades europeias dos séculos XIX e meados do século XX, dominados pelo saber enciclopédico, o cartesianismo científico e a ideia imperante de que as sociedades europeias estavam num estado civilizacional superior.

 

ACEP

A descolonização cultural não se trata de um tema circunscrito a um determinado país, mas sim de um debate abrangente que deve ser considerado nas suas vertentes políticas e sociais, não podendo ser dissociado das necessidades de integração das comunidades migrantes no contexto europeu.

Um museu foi o ponto de partida… para começar a descolonizar

A presença no programa de candidatura de Fernando Medina à Câmara Municipal de Lisboa, em 2017, de uma intenção de criar um museu dos Descobrimentos na cidade – candidatura entretanto vencedora – levou à realização de um prolongado debate na opinião pública. Discutindo-se se faria sentido criar um museu (provavelmente, entendido enquanto instituição oitocentista e totalizante) que, na maioria daqueles que se pronunciaram iria replicar uma visão enaltecedora do passado, escamoteando os aspetos negativos resultantes da expansão portuguesa: como a escravatura, não só africana, mas também de outros povos, a evangelização forçada, ou a exploração de recursos. O discurso prevaleceu na opinião pública e o projecto foi abandonado. No entanto, esta discussão levantou várias questões, nomeadamente sobre o modo como as políticas patrimoniais em museus e monumentos lidam com este passado colonial, questionaram-se modos de expor determinados objectos em museus, como se descreviam as culturas não europeias e também se tentou perceber os moldes em que objectos provenientes das ex-colónias chegaram aos nossos museus. Temas que anteriormente não eram  debatidos no seio dos museus, onde se verificava uma certa letargia de processos, muitas vezes, é certo, justificada pela falta de recursos e meios que têm afetado os museus em Portugal, mas também por uma certa dificuldade em estabelecer diálogos com os públicos e a sociedade.Este processo coincidiu com um debate relevante na esfera pública que se pode simplificar em dois momentos:  primeiro, fundamentalmente num contexto europeu, o surgimento do famoso dito “Relatório Macron”(Sarr & Savoy, 2019) que apresentava uma lista de bens dos museus franceses que deveriam ser repatriados às ex-colónias francesas, e o efeito que teve em alguns países do continente, no sentido de reavaliar as coleções coloniais dos seus museus e de investir nos estudos de proveniências das colecções; segundo, o brutal assassínio de George Flyod e o consequente movimento Black Lives Matter, que teve um grande impacto sobretudo nos países anglófonos e que reactivou um importante debate sobre o racismo nestas sociedades, mobilizando diversas acções públicas: várias estátuas chegaram mesmo a ser derrubadas e foram “cancelados” vários autores e obras.

A descolonização da cultura, ou até do conhecimento (esta perspectiva com implicações muito mais fortes nas sociedades ocidentais, Hira, 2017), assenta nas tensões geradas nas sociedades pós-coloniais. Com focos de contestação anteriores surge, em grande medida, com os movimentos de libertação após a Segunda Guerra Mundial. Este processo deveu-se a conflitos estruturantes nas sociedades, onde após a independência, fundamentalmente no continente americano, se estabeleceu uma relação entre a cultura europeia e as outras com base numa relação sujeito-objecto que, de certa forma – e Quijano (1992) explica bem essa situação –  bloqueou toda a relação de comunicação de conhecimentos entre as duas culturas e gerou um sociedade que manteve uma estrutura colonial, mesmo estando descolonizada, replicando as estruturas pré-existentes de diferenciação racial, de exploração dos recursos e um modelo político cultural eurocentrado. Se bem que, principalmente a partir dos anos 30 do século passado, começaram a existir negros, mestiços e até indígenas com algum papel de destaque nas sociedades americanas (nuns países mais do que noutros): na música, no desporto, mas também na ciência e na política, isso não representou necessariamente o fim do preconceito civilizacional e racista para com os mesmos, pois, de certa forma, no âmbito oficial das narrativas dos Estados, nas escolas, no discurso autorizado do património e nos museus eram espelhadas essas diferenças e modos de ver o outro. Nos museus era comum a separação clara entre a história dos brancos (para os museus históricos) e a história dos povos nativos americanos (para os museus de história natural junto com a fauna e flora nativas); já os africanos, raramente estavam presentes, por isso foi tão importante, no contexto dos EUA, a exposição de Fred Wilson Mining the Museum de 1992, para a afirmar (no museu) o papel dos mesmos na história, pois a riqueza dos EUA, no século XVIII, é também ela fruto do trabalho (escravizado) dos afroamericanos e da apropriação de terras aos indígenas americanos (Corrin, 1993).

Assim, naturalmente, e tendo em conta todo o seu passado enquanto lugar de arquivo e de geração de memórias, os museus tornaram-se num dos focos principais deste processo de descolonização ou decolonização, entendendo, que se parte de uma matriz de alteração dos processos de colonialidade, isto é, a naturalização das estruturas coloniais após o processo de descolonização. Assim, as questões que se colocaram nas sociedades americanas ou até mesmo na Oceânia, nunca foram as mesmas que se colocaram no caso europeu, no entanto, nos museus, em particular, existiam pontos em comum e a globalização e a evolução das sociedades trouxe também algumas questões que antes não se colocavam.

Concentremo-nos então no caso europeu. Tal como aconteceu no passado (relativamente à abolição da escravatura, no século XIX, ou à independência das colónias, no século XX), a descolonização cultural não se trata de um tema circunscrito a um determinado país, mas sim de um debate abrangente que deve ser considerado nas suas vertentes políticas e sociais, não podendo ser dissociado das necessidades de integração das comunidades migrantes no contexto europeu. É sobretudo a partir dos anos 50, com a presença inicial de uma migração africana e asiática, com a finalidade de estudar nas universidades europeias, que começa a surgir uma crítica ao colonialismo. O primeiro grande impacto da obra de Fanon (1952) é sobretudo na Europa e parte do seu discurso é também ele fortemente influenciado pelo pensamento filosófico europeu do pós-guerra. Nas duas décadas seguintes, com a independência das colónias europeias, o foco do movimento pós-colonial centra-se nos Estados Unidos, regressando à Europa no novo milénio, com o aumento de novas migrações vindas do continente africano e com a consciencialização das segundas e terceiras gerações de migrantes.

Na Europa existe, agora, uma consciência generalizada de que os museus e as escolas podem ser espaços importantes de diálogo e integração cultural. Neste quadro alguns países europeus, como a Alemanha, a Áustria, a Bélgica, a França e os Países Baixos, apresentam já um programa extenso que inclui sobretudo três itens: a mudança de linguagem e do discurso expográfico em programas escolares e museus; as experiências partilhadas entre países de diferentes continentes (Europa e África, Europa e América, Europa e Ásia); a restituição de património. Em seguida iremos falar de alguns exemplos.

Reconhecimento, restituição e repatriação

Recentemente (05-09-2022), António Costa, primeiro-ministro português, perante o Presidente da República de Moçambique, pediu desculpa pelo massacre de Wiriyamu, que classificou como um “acto indesculpável que desonra a história de Portugal”. Estas declarações, contudo, não representam propriamente uma novidade, demostram até um certa demora do Estado português, tendo em conta que já há várias décadas que os Estados americanos e da Oceânia têm apresentado desculpas aos povos originárias pelos danos causados pela colonização, sendo que, no caso europeu, a Itália foi, curiosamente, o primeiro país a fazê-lo, apresentando, há 15 anos, desculpas à Líbia pelos crimes ocorridos durante o período colonial. Nos últimos cinco anos têm sido frequentes estes pedidos de desculpa por parte de vários líderes europeus, nas suas visitas, fundamentalmente, no continente africano, demonstrando uma maior abertura para o diálogo e melhoramento das relações entre países.

No quadro deste reconhecimento, têm-se colocado várias questões relativas à restituição e repatriação de objectos recolhidos durante a ocupação colonial.  O caso mais conhecido tem sido os dos ditos bronzes do Benim, que foram saqueados do Palácio Real do Benim pelo exército britânico, em finais do século XIX. Apesar de se concentrarem maioritariamente no British Museum (Hicks, 2020), acabariam por estar distribuídos por vários museus europeus e da América do Norte. Gerou-se então um consenso generalizado de que estas peças foram obtidas de forma ilegal, num processo de algum modo semelhante ao que existe relativamente às obras roubadas pelo regime nazi. A Alemanha foi o primeiro[1] país a iniciar esta devolução de bronzes do Benim à Nigéria e foi também um dos primeiros países a iniciar um processo de colaboração entre profissionais de museus africanos e alemães, partindo de uma premissa de co-curadorias, mas também aliado a um processo de formação de profissionais africanos nas áreas da conservação e preservação de objectos, concebendo assim o projecto The Museum Lab, que se tem expandido a outros países europeus com colecções africanas.

 

Verificou-se uma espécie de competição entre países para ver qual conseguia obter o maior e melhor espólio material de culturas extraeuropeias e até mesmo europeias.

Parece existir de facto, agora, uma onda de “boa vontade” por parte dos países europeus em relação às suas ex-colónias, e os casos de repatriamento ou restituição têm sido cada vez mais frequentes[2]. Alguns países europeus, como a Alemanha, a Bélgica e os Países Baixos estão mesmo dispostos a devolver todo o seu património que tenha sido obtido através de roubos e pilhagens, e neste momento este processo não está ainda mais avançado porque alguns países de origem não apresentam capacidade para receber. Por exemplo, a Indonésia informou o governo dos Países Baixos que só pode receber 10% desse património, a Nigéria informou a Alemanha que teria de esperar algumas décadas para conseguir ter condições para receber devidamente os objectos; já o Congo tem informado a Bélgica  de que acima de tudo, mais do que uma restituição massiva, quer contar com objectos que são fundamentais simbolicamente para a sua história e património, sobretudo, por poder ter uma representatividade material de todas as suas culturas. Em alguns casos parece existir uma pressa excessiva em devolver, aqui falta claramente um diálogo mais claro entre os países europeus e os países de origem, de modo a perceber condições e necessidades.

No que diz respeito a Portugal, a Direção Nacional do ICOM, realizou um inquérito (Carvalho Amaro & Felismino, 2021) no sentido de conhecer a presença de colecções não europeias nos museus portugueses. E os resultados não foram muito animadores, sobretudo ao nível do conhecimento das proveniências dos objectos, muitos deles anteriores à Convenção da UNESCO de 1970, contra o tráfico ilícito de bens culturais. A falta de meios nos museus portugueses, tem sido um grande entrave para o avanço do inventário e estudo das colecções[3].

Uma aproximação ao outro, descolonizar a mensagem e o modo de ver

Reparação tem sido um dos termos mais usados pelos políticos europeus em relação aos governantes das ex-colónias, mas é possível uma reparação? Reparar implica sempre um fim, isto é, reparo e o assunto fica encerrado. É importante que o colonialismo e as suas consequências não sejam um assunto encerrado, que a memória não seja apagada, do mesmo modo que também não tencionamos apagar a memória do Holocausto. Desconstruir artisticamente uma estátua ou conteúdo de uma exposição tem um efeito mais prático, educativo e de autocrítica que a destruição efectiva, o seu apagamento. Todorov, em conferência no Museo de la Memoria y de los Derechos Humanos, no Chile, elucidou bem a importância do trabalho sobre a memória:

“El recuerdo público del pasado nos educa sólo si nos cuestiona personalmente y nos muestra que nosotros mismos – o aquellos con quienes nos identificamos – no siempre fuimos la encarnación del bien o la fuerza.” (Todorov, 2013: 48).

Para isso, é também fundamental compreender que o património é maleável e acompanha os desígnios das sociedades ao longo dos tempos, é certo que se articula com o passado e cultura material, mas como afirma Laurajane Smith, também é um processo em construção, “um acto de comunicação e significado no e para o presente” (Smith, 2006: 1).

 

ACEP

Parece existir de facto, agora, uma onda de “boa vontade” por parte dos países europeus em relação às suas ex-colónias, e os casos de repatriamento ou restituição têm sido cada vez mais frequentes.

Devem assim ser assumidos com naturalidade os projectos de alteração dos textos e tabelas de exposições nos Países Baixos, ou na Alemanha, com colecções coloniais ou referências raciais ou de géneros que já não se coadunam[4], apresentando, cada vez mais, projectos de co-curadoria com as comunidades de origem para se aprender a sua versão da cultura material exposta: nesse aspecto – e apesar de continuarem a ter problemas estruturais para integrar discursos eurocêntricos sobre o “outro” na contemporaneidade –  os esforços do Museé du Quay Branly e do Humbolt Forum têm sido notórios. Outro aspecto de grande relevância no que diz respeito à reflexão sobre o colonialismo têm sido as exposições de arte contemporânea, a exposição Europa Oxalá, itinerante por várias capitais europeias (muitas delas antigas metrópoles coloniais, onde na atualidade residem as diásporas de ex-colónias, onde se inclui Lisboa) e que apresenta obras de arte produzidas maioritariamente na Europa por artistas que vivem e criaram em cidades europeias, artistas que consideram e expressam as memórias familiares, originadas em contextos coloniais ou pós-coloniais africanos.

A descolonização cultural é, neste momento, irreversível, mas continua a ser importante dialogar, ter em conta, matizes, períodos e, acima de tudo, contextos, usando as palavras de Zadie Smith: “It’s a context which allows you to understand the world you’re in and also to understand yourself a bit more clearly.”[5]. Sendo interessante uma reflexão, neste processo de descolonização cultural, que estabeleça um processo de diálogo crítico com o passado, visando o estabelecimento de laços entre os povos, sem que isso implique necessariamente um apagamento do mesmo.

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[1] Ainda que tenham existido casos pontuais de repatriação de objectos no passado, nenhum outro teve a celeridade e sobretudo a transparência desta devolução alemã. Provavelmente o caso mais significativo do passado terá sido a devolução (não oficial) realizada pela Bélgica ao Congo (na altura Zaire), em 1973, num gesto apaziguador no âmbito de uma reunião na ONU em Nova Iorque, cidade onde na altura estavam expostas algumas peças do Museu Real da África Central, que pouco tempo depois, como referiu Guido Gryssel, antigo diretor do AfricaMuseum (novo nome do mesmo museu), as peças acabariam por integrar o mercado clandestino de arte, em vez dos museus do referido país africano (Gryssels, 2021: 159)

[2] O professor neerlandês Jos van Beurden tem mantido uma página de Facebook (denominada Restitution Matters), bastante actualizada que acompanha todas notícias e artigos de opinião que impliquem repatriação e restituição nos últimos dois anos.

[3] Neste momento, a informação é ainda muito escassa acerca do modo como muitas destas colecções foram incorporadas nos museus nacionais, apesar dos esforços muito meritórios que têm sido feitos nos três grandes museus universitários de História Natural e Ciência e através do projeto Transmat incidindo sobre o Museu Nacional de Arqueologia e sobre o Museu Santos Rocha.

[4] Já têm sido bastante referenciados os guias produzidos pelo TroppenMuseum (2018) e pelo Deutcsher Museum Bund: (2021) VVAA (2018) Words Matter. An unfinished guide to word choices in the cultural

[5] Entrevista a Zadie Smith, npr radio, 21 de novembro de 2016: online, disponível em: https://www.npr.org/transcripts/502857118

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Referências

Bennett, T. (2004). Past beyond memory: Evolution, museums, colonialism. London: Routledge.

Carvalho Amaro, G & Felismino, D. (2021) Resultados do inquérito sobre a presença de património proveniente de territórios não-europeus em museus portugueses Boletim ICOM Portugal, serie III, 17: 125-135.

Corrin, L. (1993). Mining the Museum: An Installation Confronting History. Curator 36 (4): 302-313.

Deutscher Museums Bund (2021) (Ed.). Guidelines for German Museums. Care of Collections from Colonial Contexts. 3ª edição. Berlim: Deutscher Museums Bund

Dias, N. (2021). Coleções não europeias em museus europeus: questões e desafios. Boletim ICOM Portugal, serie III, 17: 98-107.

Fanon, F. (2017) [1952]. Pele Negra, Máscaras Brancas. Lisboa: Letra Livre.

Gosden, C. (2008). Arqueología y Colonialismo. El contacto cultural desde 5000 a.C. hasta el presente, trad. Julia de Jodar, Barcelona: Bellatera.

Gryssels, G. (2021) African cultural heritage: reconstitution and restitution. Boletim ICOM Portugal, serie III, 17: 156-161.

Hicks, D. (2020). The Brutish Museums: The Benin Bronzes, Colonial Violence and Cultural Restitution. Oxford: Pluto Press.

Hira, S. (2017). Decolonizing Knowledge Production”. In Peters, M.A (ed.). Encyclopedia of Educational Philosophy and Theory (pp. 375–382). Singapura: Springer.

Quijano, A.  (1992). Colonialidad y modernidad – racionalidad.  In Bonilla, H.  Los conquistados:  1492 y la población indígena de las Américas (pp.  437-447). Bogotá: Tercer Mundo Editores.

Ribeiro, A. Pinto (2020). A devolução do património espoliado é um imperativo da descolonização na Europa. Boletim ICOM Portugal, serie III, 15: 139-142.

Sarr, F., & Savoy, B. (2019). Restituer le patrimoine africain. Paris: Seuil.

Smith, L. (2006). Uses of Herigae. London & New York: Routlege.

Thomaz, L. F. (1994). De Ceuta a Timor, Lisboa: Difel.

Todorov, T. (2013). Los usos de la memoria. Col. Signos de la Memoria. Santiago: MMDDHH.

VVAA (2018) Words Matter. An unfinished guide to word choices in the cultural Sector, Amsterdam: Research Center for Material Culture.