Em Gaza com os “empreendedores mais duros do mundo”

Maria João Guimarães

Jornalista da secção Mundo do Público, onde escreve sobretudo sobre a Alemanha, Grécia, e Israel/Palestina. Recebeu o Prémio de Reportagem Norberto Lopes da Casa da Imprensa para o biénio 2011/2012 com uma série de reportagens sobre a crise grega. Foi escolhida para o programa European Journalist Fellowships da Universidade Livre de Berlim, onde viveu no ano académico de 2015/2016

Foto: Gaza Sky Geeks

A pergunta que mais fazem a Iyad Altharawi é porque está ele ali. Porque voltou ele para viver na Faixa de Gaza, um pequeno território cercado, de onde é difícil (alguns dirão: quase impossível) sair, onde os bens que entram são restritos, onde há electricidade só quatro horas por dia, quando podia ter ficado no seu emprego em Frankfurt?

Ele não estranha, mas também não desvaloriza as dificuldades, nem para si próprio (“é verdade que às vezes estou encurralado em Gaza”) nem para o trabalho (“trabalhamos num ambiente muito incerto”). Mas desde que regressou, há mais de um ano, nunca se arrependeu.

Iyad veio para trabalhar nos Gaza Sky Geeks, uma incubadora de startups, academia de código, aconselhamento a freelancers e espaço de coworking, um oásis de electricidade, energia e optimismo no meio de Gaza.

A um sábado às 9h30 da manhã já há uma série de pessoas sentadas na sala comum de coworking, de café e computador à frente. “Não trabalhes duro, trabalha de forma inteligente”, diz um cartaz.

Fazer muito com pouco

A Internet é uma das infraestruturas boas de Gaza, o território tem muitos jovens qualificados. O programa Gaza Sky Geeks (GSG) começou em 2011, com financiamento da organização de ajuda dos EUA Mercy Corps e da Google, para aumentar o conhecimento de tecnologia, e foi tendo cada vez mais ofertas e programas.

Iyad, responsável pelo programa de incubação e aceleração, explica que Gaza tem potencial de se tornar um exportador de trabalho na área como é a Índia. A dificuldade em trabalhar com hardware pelas limitações de entrada de materiais também leva a que a maior parte das pessoas da área se dediquem antes ao software.

E com os GSG a conseguirem ter pessoas a participar em competições internacionais e ganhar prémios, Iyad garante: “Tenho a certeza que lá fora somos conhecidos pelo nosso trabalho.”

Mas nem tudo o que é virtual funciona só em meio virtual. Os financiadores “não investem em ideias”, diz Iyad, querem sim “conhecer as pessoas, ver como trabalham”. O Skype não chega.

O ritmo das autorizações de Israel é muito mais lento do que o das oportunidades que há fora. E do Egipto é ainda mais incerto. Os dois países bloqueiam o território invocando razões de segurança; organizações de defesa dos direitos humanos dizem que é “castigo colectivo”.

Outro problema é a falta de opções de pagamentos: o PayPal, sistema quase universal, não opera na Palestina.

Por isto e por tudo o resto, explica Sara Alafifi, do programa de mentores, é que aqui estão “os empreendedores mais duros” do mundo. Porque estão habituados a trabalhar num local onde tudo pode acontecer, a contornar todos os imprevistos, a encontrar uma solução para todos os problemas. O chavão de não haver dificuldades e sim desafios a superar é verdadeiro aqui, todos os dias.

Mulheres na liderança

Sara nota que em todo o mundo as mulheres trabalham mais e em Gaza ainda mais. Mas aqui “se há coisa que não há, é falta de ajuda para mulheres”, sublinha. Elas são 53% em todos os programas, e a percentagem sobe na parte das startups: 58% são fundadoras ou parte das equipas.

Os casos de maior sucesso saído dos GSG são startups de mulheres — como a MomyHelper de Nour Abuzaher, que obteve o segundo lugar numa competição de startups em Istambul e financiamento de uma business angel (como são chamados investidores relativamente pequenos) do Dubai.

Nour teve a ideia para um serviço de aconselhamento de mães árabes depois de ser mãe. “Morava fora de Gaza, longe da família, e não sabia lidar com o meu bebé”, conta. Começou a partilhar no Facebook algumas ideias para o seu “pequenino” (hoje com três anos). Recebeu muitas mensagens de mães a pedir a sua opinião para dificuldades e problemas. “Eu não podia responder, não sou especialista”, nota. Percebeu que havia ali uma necessidade. Leu que as mães árabes têm uma percentagem de depressão alta. E que apesar de haver rede e de apoio familiar, o mundo já não é o mesmo do da sua mãe e avó.

Começou a trabalhar numa aplicação para aconselhamento profissional fácil e discreto — telefónico, sem imagem, o que é importante sobretudo se o especialista for um homem. Foca-se no mercado do Médio Oriente e Norte de África, mas mesmo sem ter esse mercado como target, tem utilizadoras da Alemanha ou Áustria.

Sara Alafifi sublinha a parte direccionada para as mulheres. “Algumas das visitantes internacionais ficam espantadas e dizem que aqui é melhor para as mulheres do que em Silicon Valley”, diz Sara. “Os homens é que às vezes acham que estão a ser discriminados.”

 

*este artigo é uma adaptação de um excerto da reportagem publicada no suplemento P2 do Público de 27.5.2018