A cultura, nesse sonho demasiado ambicioso de que tudo se coordenaria para uma sociedade mais condigna

Abdulai Sila

Nasceu em Catió, Guiné-Bissau. Gestor de empresas e engenheiro electrotécnico, actualmente combina o trabalho de editor, escritor e consultor no domínio das TIC com o de apoio a organizações sem fins lucrativos. Investigador Sénior Associado da University of Maryland (EUA), é também desde 2011 Embaixador Regional da Technische Universitaet Dresden (Alemanha). Foi presidente e co-fundador da Associação de Escritores da Guiné-Bissau (2013/17) e do Centro PEN da Guiné-Bissau (2018-).

Marta Lança

Nasceu em 1976 em Lisboa. Trabalhadora independente no sector cultural. Muitos projectos são ligados ao Brasil e a países africanos de língua portuguesa. Formou-se em Estudos Portugueses e já devia ter acabado o doutoramento em Estudos Artísticos (FCSH - UNL). Colaborou com diversas publicações portuguesas e angolanas. Criou as publicações V-ludo, Dá Fala e o portal BUALA. Faz traduções de francês para português. Vive entre a Feira da Ladra (Lisboa) e Ourique.

Não vamos romantizar a cultura e a arte (…) Mas tentando pensar na cultura como essa proposta, de Cabral e de tantos pensadores, que tem a ver com potenciar a criatividade e a curiosidade, como uma arma contra a ignorância.

 

MARTA LANÇA (M.L.) — Estava a ler ontem uma recensão ao Memórias Somânticas e acaba a dizer que “na linha de literatura vincada pela dor do desapontamento de uma pátria destruída, Abdulai Sila dá-nos uma narrativa pungente, onde o sonho, mesmo tão profundamente abalado, continua a ser a semente da vida, a razão que se lutou para ser livre. É esse o derradeiro testemunho que se deixa às novas gerações”. Começo com uma pergunta: Abdulai, esta ideia de qualquer coisa que vem dessa ambição, desse sonho de libertação, das gerações que tentaram  conseguiram fazer a independência, mas que será sempre ainda algo por cumprir em muitos aspectos… Muitos desses valores que vinham desse tempo foram esmorecendo. Como é que se regenera, através da cultura, esses valores? O próprio Cabral fazia essa associação à cultura da libertação de mentes como estratégia de luta e ferramenta para a soberania de um país, para o fortalecimento da população. Como é que vê esta ideia do sonho que se pode transmitir perante tanto desapontamento e desilusão?

 

ABDULAI SILA (A.S.) — Esse livro levou-me muito tempo a redigir, em parte porque impunha-se uma forma hábil de promover a tal cultura da libertação das mentes, de resgatar certos valores e conquistas da luta de libertação. Era para ser publicado em 1998, ano em que ocorreu a fatídica guerra que selou a destruição de muitos sonhos. Eu estava tão convencido do lançamento do livro nessa data, que me antecipei e anunciei num romance que tinha sido publicado em 1997, na última página do Mistida, como sendo parte de uma trilogia. Mistida é o caos que se instalou. Então depois desse caos vinha a memória de alguém que, tendo vivido tudo, não estava conformado e resolve contar a sua versão dos factos e, acima de tudo, transmitir  uma mensagem de esperança. Memórias Somânticas é também isso. Não aparece muito, mas uma das intenções mais importantes ao redigir o texto foi justamente passar uma mensagem de esperança. É uma senhora que, como muita gente, sonhou no passado. Está frustrada. Sente-se, de certa forma, falhada, que é tida por uma pessoa louca, porque acredita em valores em que já ninguém acredita. Ao longo de todo o livro ela repete isso: “Dizem que eu sou louca, mas eu não sou louca”. E é isto. Eu fiz parte de uma geração, ainda faço parte, que sonhou alto. Partindo da minha situação concreta, eu vivi o colonialismo de uma forma dramática. A independência significou muito para mim. É-me difícil explicar o que é isso, mas era uma coisa maravilhosa, uma coisa que ia libertar-me de muitos traumas. Seria uma espécie de compensação. Por isso é que a senhora no fim disse que não levantámos troféus, não ambicionámos nada dessas coisas. Mas é a revelação de uma maneira de ser. Não era ambicionar coisas materiais, mas procurar satisfazer uma ambição que se recusa a desvanecer.

As pessoas sentem que a concretização dessa ambição, legítima, não será como inicialmente previsto. Portanto, estamos numa situação que não é a confissão, não é a derrota. Longe disso. Nem sequer é resignação. É antes contar uma versão de uma vida que quis ser vivida, com paixão e com dignidade. É isso que, hoje, muitos dos meus compatriotas procuram, uma forma de regeneração, de acalentar o sonho. Já não é aquele sonho que foi alimentado ao longo de muitos anos e que vemos desmoronar-se, como um edifício, a cair aos bocados. Já não é esse fanatismo, não tem nada a ver com isso. Mas é uma crença que permanece. É um ideal que se mantém presente e em relação ao qual não se pode resignar. Podemos entender que as coisas não são como as imaginámos no passado, como as quisemos, mas também não vamos renunciar. E a cultura, a literatura em particular, tem um grande papel a desempenhar nesse processo.

 

M.L. — Agora estava a ouvir e a pensar que, trazendo a conversa para o nosso mote, a cultura, nesse sonho demasiado ambicioso de que tudo se coordenaria para uma sociedade mais adequada e condigna, apesar dos momentos difíceis e traumas que todos os países africanos viveram e continuam a viver de outras formas, a cultura sempre foi uma forma de resistência. A cultura, escrever, fazer
filmes, a expressão artística continuou a existir em plena guerra. E em plenas crises económicas, mesmo as mais avassaladoras. Recentemente no Brasil, durante estes anos bolsonaristas de destituição das instituições, a cultura foi resistindo e adaptando-se sempre aos poucos meios, ou às vezes até desligandose dessa regulação do Estado, desvinculando-se de um apoio institucional.
Não estou a defender que seja a maneira de fazer cultura. Pelo contrário. Os governos e os apoios não podem desprezar e negligenciar todo esse sector da sociedade que contribuiu para a abertura das mentalidades, seja qual for a área de expressão. Nem tudo é bom, faz-se muita porcaria no mundo cultural. Não vamos romantizar a cultura e a arte, não está fora do mundo sujo dos mercados,
especialmente quando mexe com mercados financeiros, colecionadores, milionários e dinheiro sujo. Mas tentando pensar na cultura como essa proposta, de Cabral e de tantos pensadores, que tem a ver com potenciar a criatividade e a curiosidade, como uma arma contra a ignorância.

A leitura, por exemplo, que é uma coisa que nos une, a mim e ao Abdulai, tem essa força. Temos em comum a vontade de pôr mais gente a ler. Eu através das revistas que tenho feito, pela difusão do conhecimento. Através da revista Dá Fala, em Cabo Verde, e desde há doze anos com o site Buala, que circula pelo mundo inteiro, porque é digital e de acesso livre. E com outros projectos, inclusive a Bibliotera da Mediateca de Abotcha, em que há um compromisso na tentativa de que muito mais gente aceda ao livro. Interessa-me facilitar o acesso àquilo que os outros produzem, e a que cada um de nós saiba que tem potencial artístico, podendo exprimir-se numa vida que não seja só de sobrevivência, mas também para reinventar-se e inventar realidades que possam ser amostras de possíveis sociedades, de laboratórios para pensar o mundo. Sem sermos pedagógicos, no sentido de impor modelos aos outros. A arte tem essa liberdade, não impõe nada a ninguém. Ajuda a dar testemunhos, histórias que não foram contadas pela história oficial. O conhecimento académico ou jornalístico também procura outras verdades, muitas vezes omitidas. E ainda pela ficção ou pela expressão não tão colada à realidade documental, podemos sempre sonhar e continuar a inventar mundos e vivências. Isso é de uma liberdade enorme.

Portanto, a criatividade e a curiosidade, as gerações mais novas sempre vão reciclando, com as suas urgências, as suas próprias referências, indignação e revolta perante Estados que estão completamente demissionárias no que toca ao apoio aos jovens, à educação ou à cultura. Falamos de algo transversal e intemporal, em que cada contexto tem a sua forma de responder e, para lá do contexto, há qualquer coisa que nunca morre. Por que é que o ser humano tem sempre esta necessidade de contrapor algo maior àquilo que existe só na sobrevivência, do trabalho e da economia? Sempre a tentar criar formas de expressão que digam algo mais. Dá-me algum alento saber que nunca esmorece, apesar de tantas tentativas de boicotar artistas e pessoas da cultura ou o crónico subfinanciamento para a cultura – e isso é geral, a não ser aqueles países hiper desenvolvidos, onde já se percebeu que a cultura pode ser uma área de desenvolvimento. Mas a maior parte não tem essa visão e a cultura é o parente pobre, que não interessa muito, sobretudo quando não há interesse que as pessoas desenvolvam muito os seus próprios conhecimentos. Estamos a falar de contextos muito diversos, talvez pudéssemos falar de coisas mais particulares. Abdulai, como é que vês a cultura num contexto mais lato?

 

A.S. — Marta, quando falaste nesta última parte, em que colocaste algumas interrogações em relação à percepção que nós temos das coisas, a nossa forma de reagir, de manifestar a nossa indignação, a nossa revolta e também o nosso contentamento por aquelas coisas às vezes tão simples, tão simples, que muita gente não as percebe, não as tem em consideração. Há uma questão de fundo que se põe hoje em dia e que tem um nome muito simples – o humanismo. Há sentimentos que partilhamos, todos os seres humanos sem excepção. A uns aparece mais, a outros menos, mas fazem parte do DNA do ser humano.

 

M.L. — Mas nem toda a gente desenvolveu muito a empatia.

 

A.S. — Vamos chegar aí. Como é que chegámos ao ponto em que estamos hoje, em que sentimentos básicos são tão pouco valorizados? As pessoas estão muito viradas para outros valores, para outras ambições, outras formas de manifestar valor, grandeza, que não aquelas que são as mais originais e que, em princípio, deviam ser bastante mais apreciados. Não é por acaso que muitos homens e mulheres da cultura só são valorizados depois de falecerem. O desafio que nós temos todos, mas particularmente nós, africanos, hoje em dia, é o de resgatarmos o valor do humanismo. O que é isso? É não ficar, por exemplo, indiferente quando se vê uma criança chorar. Isso toca. Quando se vê uma situação de injustiça, o ser humano dito normal sente, revolta-se. Ou seja, há valores que todos partilhamos, todos. A questão é que a educação faz com que muitas vezes há certas vertentes que são mais evidenciadas e outras recalcadas. E nisso nós podemos, falando da educação; temos em Portugal um exemplo concreto. Como é que se ensina a história de Portugal hoje em dia? É um escândalo! Portugal não pode continuar a inculcar valores, para o seu próprio bem, que não são reais, não são compatíveis com os valores que constam, por exemplo, na constituição. Há um desafio específico que nós temos que encarar de frente e pondo de lado o politicamente correcto.

Temos de ser capazes de dizer, de promover a franqueza e promover o humanismo e essa capacidade de dizer as coisas pelos nomes, sem ter medo das represálias ou de outros constrangimentos que possam surgir. As pessoas transformam-se em escravo sem se darem conta disso. Já não têm pensamento próprio, nem iniciativas próprias. Quantos cidadãos passam a vir a correr à procura de meios de sobrevivência? Nós cá é arranjar o arroz e mais alguma coisa pare se sustentar. Não tem tempo sequer para pensar no amanhã. Desse lado aí, é correr para pagar as contas. E inventaram uma coisa fantástica – o cartão de crédito. É uma forma de escravizar as pessoas, porque não sentes no momento de comprar. O foco está orientado em como sobreviver, como pagar essa factura. Nós temos uma situação ainda pior, porque ao tentar lutar pela sobrevivência, tentar afirmar-se com dignidade, vemos obstáculos, somos obrigados a enfrentar desafios que não fazem sentido. Os protagonistas, muitas vezes, são pessoas que ontem foram nossos camaradas, que comungaram os mesmos valores. De um momento para o outro, mudam de ideias, mudam de atitudes e pretendem mudar de estatuto. É aí que entra o papel da cultura. Alguém tem que parar e regularmente lembrar-se a si próprio e aos que estão à volta que o nosso sonho é outro, a promessa que fizemos e que nos foi feita é outra e que não está sendo cumprida. E que há valores e padrões de realização que não são necessariamente aqueles baseados no material. Há recompensas que não se exprimem em dinheiro ou em bens materiais. E é preciso que andemos a lembrar-nos disso, para que não sejamos arrastados pela maré, porque é como diz a mulher nesse livro “acham que eu sou doida, mas eu não sou doida”. Essa convicção tem que ter a sua raiz sólida, porque senão desaparece, vergamo-nos. E aí entra a cultura, as artes de uma maneira geral – o teatro, a literatura, a música, a pintura, que são elementos fundamentais para a nossa re-humanização.

Há uma acção constante e implacável, a tentar convencer-nos em todo o momento que nós estamos no caminho certo. Há um provérbio aqui na Guiné-Bissau que é quando chegas a um local de festa e vês todo mundo a dançar com um pé, dança com um pé. Quando esses governantes (e não estou a falar especificamente do meu país, mas África em geral) se esquecem muito rapidamente, que se deixam levar por novos valores, por novos padrões… Imagina uma coisa: devido a essa questão cultural, de adopção de novos padrões de beleza, de realização, sabes quanto isso custa em termos financeiros? Em 2014, os africanos gastavam em produtos que não servem outra coisa senão demonstrar o quanto nos rejeitamos a nós mesmos (com perucas e uma série de objectos que nos aproximam do padrão de beleza ocidental) cerca de seis biliões de dólares por ano. Sabe quanto é que se gasta em livros? Na educação? Não chega a um milésimo. Agora imagina que essas mulheres, essas nossas compatriotas que disponibilizam essas verbas para se tornarem parecidas, mais próximas dos padrões de beleza europeia, se gastassem uma parte disso na educação dos filhos, na própria educação, não teríamos, por exemplo, o nível de terrorismo que temos. Essas crianças-soldado andam perdidas, sem referências. É nessa base que é preciso ver os nossos verdadeiros desafios. Temos de descolonizar as nossas mentes, que há valores que contam mais. Temos de ir buscar na nossa história, no nosso passado, na nossa cultura elementos para nos tornarmos mais humanos, mais cultos.

 

M.L. — Eu concordo com tudo o que disseste, essa falta de autoestima incutida, não só endogenamente, é todo um programa que tem séculos de desumanização e de hierarquias em que uns são mais humanos e mais cidadãos que outros. Para já, o próprio paradigma humanista tem problemas, porque coloca Deus/ Homem/Natureza, de uma ideia de superioridade em relação à própria natureza. O humanismo de que estás a falar é totalmente diferente, porque tem a ver com
essa empatia holística também com todos, incluindo não humanos, nesse equilíbrio da natureza também com o Homem em que a cultura e natureza não são coisas opostas, mas que se interligam. Não querendo generalizar, acho que temos de aprender com alguns povos africanos, com esses tais valores que foram reprimidos, mas que sempre resistiram. Nas comunidades que vivem mais por si, esses valores estão lá bem presentes e nós sentimos que temos imenso a aprender. Somos bem
acolhidos, há uma lógica do colectivo que fomos perdendo. Uma lógica da dádiva, de receber bem. Na Europa da pressa e da acumulação, não temos essa maneira de lidar com o outro. Nesse processo de re-humanização, África podia não só apostar nesse processo para si, como deixar de ser um consumidor de tais padrões, sejam de beleza ou outros, como também ensinar ao mundo as coisas que conseguiu salvaguardar, apesar de todas as tragédias que tem vivido (desde serem territórios invadidos, ocupados, colonizados e constantemente extorquidos de pessoas e de recursos).

Tentando fazer o papel da optimista de serviço: essas pessoas que se engalanam todas no seu fato e gravata e que não lêem, e que assentam o seu poder no estatuto político ou no dinheiro, pilares frágeis – o poder do dinheiro ou das armas é algo obsoleto, mas que ainda manda no mundo. Sabemos que ainda são esses que fazem as guerras e fazem com que as sociedades não consigam desenvolver-se. Oprime-se tentativas de recompor, de salvar, de interajuda e de tudo o mais que se possa fazer… Esses militares, esses políticos sem nada na cabeça, que só pensam no clientelismo da política e em enriquecer, não têm essa consciência de que a sociedade só se desenvolve se uns puxarem pelos outros, no bom sentido. Mas apesar dessas figurinhas do poder, acho que há uma massa crítica. Mesmo entre aqueles que só lutam pela sobrevivência, estão nos transportes abarrotados e sem acesso a uma série de coisas e não têm nem tempo para pensar para além de tentar dar comida aos filhos, há ainda sinais positivos.

Contando uma experiência recente que tive em Luanda, cada vez há mais bibliotecas comunitárias na periferia, jovens que querem ler, as tecnologias das redes possibilitaram de facto muito acesso à informação e isso é um dado incontornável. Isso fez abrir para lutas globais, trocas, partilhas, emancipação das mulheres, uma série de áreas que viviam apenas em bolhas de resistência, ganham uma força imensa. Jovens mulheres da periferia, que não são filhas de famílias de elite, a reivindicarem, a quererem sair desse círculo vicioso em que não têm nada para oferecer aos filhos, em que não há a figura do pai, que é sempre ausente e que se descarta completamente da educação. Há alguns rapazes a tentar mudar esse paradigma da masculinidade, o que é muito importante, porque esta luta tem que vir dos dois lados, não pode ser só das mulheres, mas é a própria masculinidade que deve repensar-se. Muita gente a querer fazer cinema, a querer fazer arte, grupos de teatro dos bairros que denunciam uma série de situações políticas e já não têm medo de dizer o que pensam. Então, acho que há aqui uma força quando se perde o medo. No sentido em que já os oprimiram tanto, já impossibilitam que as universidades públicas sejam boas, que o ensino público tenha qualidade e, portanto, fazem o que podem, falam disso, reivindicam, vão às ruas e, muitas vezes, expressam-se na arte. Do spoken word que vem das oralidades antigas, tem a sua história e a sua genealogia. Agarrar o microfone e fazer stand-up ou spoken word, fazer rir e denunciar uma série de situações com muita criatividade, como forma interessante de mexer com a palavra dita, essas expressões mais jovens, de uma geração que não fica à espera daquela oportunidade para ter não sei quantos dólares, kwanzas ou francos para poder trabalhar, mas que estão a fazer coisas e a exigir. Isso pode dar frutos, porque se contaminam uns aos outros. Não é que não sejam também pessoas que ligam muito às redes sociais, ao show-off, às aparências. Claro que isso tudo faz parte de uma cultura do espectáculo na qual todos estamos mergulhados. Tentar aparecer é quase mais importante do que a pessoa estar a fazer aquilo por si e para si, e depois logo divulga. Parece que às vezes o reconhecimento é o objectivo principal, procura-se logo um reconhecimento mediático, antes de se ter obra que se possa justificar. Mas fiquei optimista com uma atitude mais directa, mais informal e mais corajosa também.

As gerações sempre se reciclam e dentro das suas urgências vão tentando furar os muros e as bolhas que os vão comprimindo, mas não podemos achar que, por iniciativas pessoais e boas vontades, se vai resolver a cultura. Se os governos não acordam para a cultura e se não a valorizam, será sempre algo quase da esfera do marketing ou da oposição, como se fossem “aqueles malucos que estão a dizer umas coisas”. Não se deve institucionalizar a cultura para ela se tornar porta-voz dos regimes, por isso é bom termos cultura independente, fora das lógicas do Estado, mas não se deve permitir que os governos se desresponsabilizem. O sector cultural deve ter apoios regulares, concursos literários, apoio ao cinema, apoio aos músicos, porque estas pessoas são profissionais do sector e merecem ganhar a vida com aquilo que fazem, tal como o tipo do banco ou o empregado do supermercado. Portanto, a cultura é um sector laboral, as pessoas devem ser remuneradas pelo trabalho criativo e intelectual, e não se desviar da sua ambição, da sua vontade de escrever, por exemplo.

 

A.S. — E que roubam a criatividade.

 

M.L. — Exacto. Obviamente que uma pessoa que passe a vida inteira em trabalhos precários e desinteressantes, a sua capacidade criativa vai-se perdendo… vai desmoralizando. Essa tal massa crítica em potência que sempre existe, apesar de tudo, é desperdiçada ou então… emigra-se. Até mesmo em Portugal, que é um país na periferia da Europa, o orçamento da cultura não chega a um por cento, mas já está muito melhor do que foi. Temos imensa gente a cada ano a ir embora viver para Berlim ou para Londres, ou tantos lugares, porque sabem que é dificílimo viver da cultura. Agora veja-se os países em que não há apoios para a cultura, como a Guiné-Bissau ou Angola, sem políticas públicas para a cultura sólidas, é muito violento e desmoralizante para alguém que sabe desde cedo o que quer fazer ou pelo menos tentar, e ser logo um sonho impossível.

Não é que toda a gente queira ser artista profissional, mas pelo menos deve poder experimentar, ter ferramentas para aprender um instrumento, poder ler e desfrutar da leitura sem ser só a leitura para a escola. Ler por prazer. Essa maravilha que é poder desfrutar da arte. Portanto, estamos a falar daqueles que fazem e daqueles que querem simplesmente ter acesso. As manifestações culturais dependem uns dos outros. Sem públicos não faz sentido haver criadores. Há toda um ecossistema cultural que ser melhor desenvolvido. Há algumas experiências interessantes, mas há muito caminho para trilhar.

 

A.S. — As experiências que mencionaste aqui são muito relevantes e confirmam aquilo que é também a minha percepção, que é quanto maior é a crise, maior é a vontade de resistir. Não é proporcional, mas contentamo-nos com o facto de vermos que há alguma reacção, e isso manifesta-se, por exemplo, na criação de grupos de leitura em países como o meu, em que não há ensino da nossa literatura no currículo escolar. Devemos ser o único país do mundo onde as pessoas passam pelo circuito escolar, fazem doze anos e saem sem ler uma única obra literária. Continuamos a ser o único país sem um prémio literário. O prémio literário não é para distinguir o autor. É justamente para ajudar a criar
e promover a criatividade. Uma coisa é estar num país onde não há nada, em termos de competição, outra coisa é saber que no próximo ano vai haver um concurso ou um prémio literário e eu vou escrever alguma coisa para concorrer. Ou seja, por um objectivo – vai haver um festival de teatro, vou preparar o meu grupo para participar.

 

M.L. — Mas nunca houve prémios ou concursos literários na Guiné-Bissau?

 

A.S. — Temos um, mas é especial, na medida em que não há envolvimento das autoridades. É um prémio que foi instituído pela Embaixada do Brasil em Bissau e que se deveu a um cidadão brasileiro que foi durante alguns tempos director do Centro Cultural Brasileiro em Bissau, um homem da cultura que entendeu que devia fazer alguma coisa e que a falta de discernimento deixava marcas. Ou, dito de uma outra forma, que podia ajudar a promover a literatura num país que durante muitos anos era um espaço branco, inexistente no mapa literário mundial. Ele institui um prémio, ao qual deu o nome de José Carlos Schwarz, que é um poeta e músico guineense. Depois houve um outro, passado não sei quantos anos, mas que também nunca foi assumido a nível interno. Se a Embaixada do Brasil organiza um evento, tudo bem; vamos lá e batemos palmas. Não há uma política cultural, não há absolutamente nada! E o mais básico não existe: o ensino da literatura nas escolas. Ninguém pode amar aquilo que não conhece.

 

M.L. — Claro. Nem aspirar ou ambicionar àquilo que não sabe, não é?

 

A.S. — Há um distanciamento, que não sei como chamar em relação a esse assunto. Mas que tem um enquadramento. O propósito é claro: minar o desenvolvimento do pensamento crítico. As pessoas passam a acreditar naquilo que ouvem, naquilo que o político A ou B disse na rádio, mas não tem acesso a outros meios que permitam armar-se melhor como cidadão. Portanto, essa atitude não é inocente. Alguém não está interessado no desenvolvimento do pensamento crítico.

Hoje uma boa parte da juventude (não gosto de generalizar, nem de exagerar) prefere ter cartão de militante de um partido que o diploma de uma universidade. Não faz sentido. Vou fazer um pequeno parêntese: mais de dois terços dos deputados são analfabetos funcionais. Nós temos no governo analfabetos funcionais hoje. Alguns deles levam o título de Ministro do Estado. Não tenho nada contra isso. O que eu detesto é esse propósito, cada vez mais reforçado, mais elaborado, de minar o pensamento crítico. As pessoas não têm ferramentas para argumentar. E o único argumento que apresentam várias vezes, perante situações escandalosas é “isso foi feito assim no passado” ou “isso foi sempre assim”. Quando dizem a um indivíduo que vem lá de uma tabanca como a minha: “mas tu não estás preparado para exercer o cargo de governador”, ele responde “mas por que não eu? E outro que esteve lá antes?”. Bem, mas a nossa ambição é criar o bem-estar, fazer com que a vida daqueles que vêm depois seja melhor. E como é que se consegue isso? Com uma boa educação. A expressão “analfabeto funcional” vem do professor Paulo Freire, que disse que, mesmo sabendo ler, se não lê é analfabeto, não sabe interpretar.

 

M.L. — Todo esse sistema de ignorância, que valoriza mais o partido que não o pensamento crítico, para simplificar… Não dá para denunciar concretamente, porque é todo um sistema. Podemos explicar na história, por toda a aniquilação cultural e desvalorização durante tantas décadas que criou sociedades desestruturadas, em que os valores estão todos desorientados. E ainda para mais com a instrumentalização de potências externas e de mil interesses em jogo. Vejo essas pessoas que estão nesse lugar do político iletrado como vítimas desse próprio sistema, se calhar é isso que estás a dizer: não consegues sonhar com aquilo que não consegues imaginar, portanto também não se pode dizer que são os principais culpados.

 

A.S. — Há uma cumplicidade que funciona de uma maneira extraordinária, em duas partes: nós tivemos aqui situações caricatas, uma situação, por exemplo, em que a tal da União Europeia financia projectos de reforço, de ordem, soberania, etc… Tudo muito bonito no papel. Na prática, o que é que fizeram? Uma das componentes era alfabetizar os deputados, ou seja, gente que foi eleita para desempenhar um cargo específico, mas que não sabe ler, não sabe nada. Em vez de usar esse dinheiro para ajudar a acabar com esse mal, fomentam o mal. Aulas de alfabetização aos deputados – até aí tudo bem.

O problema é que quando se fez o recenseamento dos deputados que não sabiam ler, contrataram uma pessoa especialista, altamente qualificada para a alfabetização de adultos, que veio de fora (porque o dinheiro tem de voltar sempre à origem); sabe o que aconteceu? Os deputados, depois da primeira aula, exigiram per diem. E como não tinham previsto pagar per diem, as aulas acabaram. Ou seja, esse dinheiro poderia ser usado para construir escolas onde elas não existem ou para acções que no fundo permitam combater o verdadeiro mal que é a iliteracia, num país em que mais de 17% da população escolar está fora do circuito escolar.

Estamos a fabricar analfabetos. Vamos gastar, com as melhores intenções desse mundo, dinheiro para tentar cobrir o céu com uma mão. Precisamos de alfabetizar, mas não os nossos deputados. Fomentando esse tipo de situações, promovendo essa tal falta de sentido crítico, quem vai para aprovar ou analisar legislação, se não sabe ler um decreto?

 

M.L. — Mas os políticos também estão nesse jogo, o dinheiro está a ser mal gerido e a estratégia de tentar colaborar para menorizar o mal da iliteracia não é minimamente bem pensada, não é? Acho importante ir aos alunos mais novos.

 

A.S. — A classe política está muito interessada em manter o obscurantismo. Por que é que há tantas greves na educação? Por que que o ano lectivo se limita a três meses? Por que é que não há livros nas escolas? Isso tudo tem um propósito. Não nos esqueçamos disso. Como dizia o outro, um povo que não é culto, não pode aspirar a liberdade. Promovendo o obscurantismo, estamos a criar as condições para a manutenção do poder daqueles que estão menos capacitados, menos aptos, para o exercício do poder, na perspectiva de solução dos problemas da nação. Agora se é para fomentar actos de extravagância, isso sim. Mas não é esse o nosso propósito, temos de humanizar as coisas e fazer com que as pessoas sejam sensíveis aos
desafios que temos pela frente.

Quando não há água, não há escola, que alguém diga: eu vou abdicar dos quatro mil dólares que eu tenho de per diem, para pagar o salário de mil professores. Para já, deveria dizer: eu não vou tomar esse dinheiro. Mas queria limitar-me à minha questão de fundo que é procurarmos ser mais solidários uns com os outros. É uma peça fundamental. Porque os outros, os ricos e poderosos, são solidários uns com os outros. Eles fazem isso – são sempre solidários, fecham os olhos quando lhes convém. Aos outros que constituem uma minoria impotente, na perspectiva deles, que não sabem fazer a não ser criar problemas a si próprios, quando podiam estar a fazer coisas mais úteis. Aqueles que se dedicam à cultura, a promover e a apoiar a criação de bibliotecas em zonas rurais, como fazes tu, Marta. São bemvindas essas pessoas, estão a levar livros para a comunidade. Por que é que não arranjas um carro todo o terreno e dás ao chefe da tabanca para ir fazer coisas mais interessantes? Enfim, há um desafio, muitas vezes não tão patente, na perspectiva de alguns, mas para os que convivem com as massas, que vão às tabancas, que não se esqueceram, que são sensíveis ao sofrimento dos outros, que comungam as aspirações mais elementares, essa juventude que anda por aí, meio perdida – colocar um livro na mão desse gente, criar um espaço onde essa gente possa sentar-se ler e desenvolver o seu intelecto, para começar a pensar.

 

M.L. — Abrir os imaginários, é fundamental.

 

A.S. — Ainda nem falei do imaginário. Hoje o tribalismo está na ordem do dia. O que é que conseguimos como conquista? Aquilo que Cabral imaginou, hoje está em vias de extinção. As eleições e as listas de deputados, bem como os partidos, são todos pensados, tendo como base a questão tribal. Isso é triste. Para quem chegou ao ponto em que nós chegámos, para quem vê hoje em dia as
consequências disso noutras partes de África.

Não podemos ficar calados, é preciso agir no domínio da cultura. Porque estamos perante o desafio de antecipação. Essas crianças-soldado que pegam em armas e vão matar o colega da tabanca ao lado, que queimam as casas dos vizinhos, é inconcebível. Alguém se antecipou e meteu na cabeça dessa gente que fazer um acto desses dá-lhe o direito, quando morrerem, a ter 20 miúdas virgens no outro mundo. Podemos opormos a esse jogo e dizer “não precisas de esperar até ao outro mundo. Nem tu, que andas a fazer actos de barbaridade, nem outros miseráveis que atravessam o deserto e pegam num barco para morrer no Mediterrâneo”. É um jogo de antecipação. Se os homens e mulheres da cultura não forem capazes de passar essa mensagem, de vender a imagem de um país que precisa deles e incitar essa gente a abraçar esses ideais, estamos perdidos. Vamos contribuir para explorar o ouro no Mali ou o urânio no Níger para pagar as armas, que são usadas para nos matarmos uns aos outros. E quando é que vai haver espaço para semear as nossas legítimas ambições? Não há. A mente da nossa juventude vai estar cheia de… Não quero usar o termo, mas pode imaginar. Coloquem na cabeça dessa gente livros para ler, para imaginarem. A criação do imaginário colectivo aparentemente é simples, mas é complexo; é uma acção contínua. Precisamos de preencher a mente dos nossos concidadãos mais novos de ideias positivas, de que é possível ser feliz onde se está, agindo de acordo com determinados princípios, cultivando a mente, desenvolvendo pensamento crítico, promovendo a fraternidade.

 

M.L.  — E os que tiveram mais acesso à educação que colaborem para puxar pelos outros, operar a tal solidariedade. Não é preciso estar só à espera da cooperação ou da ajuda externa para desenvolver isso. Com os recursos humanos guineenses podes fazer isso, é uma questão de estratégia e de noção de desenvolvimento.

 

A.S. — É uma questão de opção. Onde vamos colocar o dinheiro? Nós pagamos um imposto particular, que se chama “imposto de democracia”. Todo o mundo paga, porque está no combustível, está na factura da electricidade, está em todo lado. Onde é que vai parar esse dinheiro? É para pagar gás lacrimogéneo, como disse o outro. Um dos propósitos mais nobres seria esse: acabarmos com essa dependência do exterior, para elegermos os nossos órgãos de soberania. Não havendo estímulo ao desenvolvimento do pensamento crítico, estamos a criar uma espécie de ovelhas. Não gosto de menosprezar o trabalho que algumas pessoas têm estado a fazer, mas a verdade é que muitos estão ocupados ou com o desafio da sobrevivência e o que sobrou é o Estado. Tens que encontrar uma forma de agradar a quem está no poder, para teres um tacho e aí alimentação. Logo transformas-te num indivíduo amordaçado. Não podes dizer o que pensas. Não podes fazer o que achas justo, tens de fazer o que o outro quer. Este é um dos dilemas principais da sociedade guineense actual.

 

M.L. — Uma das coisas é mudar o ângulo de visão. Já sabemos que existe esse amordaçamento, quase involuntário, porque as pessoas estão metidas no sistema que fez com que se criasse essas dependências, seja do exterior, seja do Estado… Para mudar essa imagem e ir pelo soft power da cultura, para poder voltar à convicção de que o país é possível e haver mais gente a tentar identificar-se comisso, mais vale então criar um discurso em que se releva as iniciativas positivas, os modelos para a juventude, os que lutam, participam e tentam contornar as adversidades e os constrangimentos no seu contexto.

É mesmo importante mudar o discurso para valorizar aquilo que tem interesse para tornar uma sociedade mais justa e solidária. Porque a crítica aos governos, aos políticos, à inércia e às dependências é muito importante que esteja sempre presente. É um pouco como o alarmismo nas alterações climáticas, é urgente alterar o modo de vida para que a humanidade se aguente no planeta. Mas se dizemos às crianças “a tua vida no planeta não tem futuro”, para que vão lutar se já não vai haver futuro? É preciso denunciar e tentar viver no tal mundo melhor que defendemos, mostrar caminhos para seguir, senão vamos todos cruzar os braços e ser velhos rezingões, não é?

 

A.S. — Cruzar os braços é que nunca. Temos a literatura. A mensagem pode não chegar hoje, mas estará lá.

 

M.L. — E a literatura é uma arte que nem sequer é cara. A pessoa só precisa de escrever, ler e ter contacto com a própria literatura. Ninguém tem uma inspiração divina, o talento é sobrevalorizado. É também uma técnica que se pratica, aprende-se a ler outros. Mesmo assim é a arte mais possível de praticar sem dependência de um colectivo, ao contrário da indústria do cinema ou da música. Como estavas a dizer, é preciso mais pretextos para a pessoa querer ter brio, querer escrever bem, vendo outras referências que escrevem bem. Não é competição por vaidade, é que ao lermos coisas boas nos apetece estar aí também – em concursos de contos, de poesia, de apresentações, dentro do país e depois para fora, porque os escritores são os embaixadores maiores. E nos livros podemos ler o que não está na história oficial, o cinema também. A literatura tem capacidade de contar a história de um país através da memória e das microhistórias, fugindo das narrativas oficiais.

 

A.S. — Queria ainda acrescentar que a questão do mito e da utopia é fundamental.

 

M.L. — Nas universidades portuguesas, há cadeiras na área de mitologia e sobre a importância do mito na literatura. Mas as referências são mitos europeus, não há cá mitologia africana, o que é outra forma de anulação.

 

A.S. — Na construção do imaginário colectivo, o mito é fundamental. E a utopia, para que serve? Perguntaram a isso a um a um pensador, o Eduardo Galleano, e ele disse que a utopia serve para pôr as pessoas a andar. Porquê? Porque quando te aproximas da utopia, ela afasta-se ainda mais. Ela serve para caminhares. Enquanto estás sempre atrás da utopia, estás a andar. É como o mito. Quando esse mito é positivo, quando corresponde à verdadeira definição de mito, então estamos indirectamente a promover o engajamento, o brio, a entrega e a vontade de trabalhar. E no nosso caso, quando se fala da utopia, é preciso ter cuidado, porque muitas vezes é uma coisa tão imediata, tão tangível, que na verdade não deve merecer o nome de mito. Quando um tipo diz “vamos fazer a campanha e vamos fazer promessas utópicas”. Ele promete, por exemplo, aos camponeses comprar castanha de caju a dois mil, quando se vende a castanha a quinhentos. É possível fazer isso. O que para uns é mito, pode não ser mito para outros. Portanto, mito e utopia são dois elementos que, quando colocados no contexto certo, são fundamentais.