Afrodescendência e a Europa do século XXI

Iolanda Évora

É doutora em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo- USP, investigadora do CEsA/CSG, ISEG, Universidade de Lisboa e Professora do Mestrado em Desenvolvimento e Cooperação Internacional do ISEG. É coordenadora do Projeto AFROPORT – Afrodescendência em Portugal: sociabilidades, representações e dinâmica socioculturais e políticas. Um estudo na área metropolitana de Lisboa.

“O anúncio da Década dos Afrodescendentes chamou a atenção para um facto social comum ao continente: a presença dos afrodescendentes como parte da configuração social e confirmação de que a Europa não mais pode ser vista a preto e branco.”

Afrodescendente, afroeuropeu, afropeu, afroportuguês, português negro… nos últimos tempos, várias categorias têm sido experimentadas para indicar a percepção das pessoas sobre a presença africana na Europa e a miscigenação neste século XXI. Apesar da sua adopção tardia, o recurso a novas categorias críticas como afro-europeísmo ou afropeanismo (referentes aos campos do direito, produção cultural, discurso racial, história, formulação de políticas e adopção de estruturas multi-situadas e transnacionais) tem ajudado a circunscrever aspectos culturais e políticos das mudanças sociais que moldam a existência social de africanos e seus descendentes na Europa.

“Em Portugal, o afro como categoria é uma questão muito recente e identificada, sobretudo, na forma como descendentes de africanos ou portugueses negros descrevem a sua experiência social e apresentam-se no espaço público.”

Foto: Ana Cruz

Por seu lado, as referências à afrodescendência e aos afrodescendentes no espaço público começam a ser assumidas, com mais vigor, somente nos últimos anos1 e têm como marco a Declaração da Década dos Afrodescendentes (2015-2024) proclamada pela ONU. Esta admissão recente2 coincide com os diferentes graus de aceitação das mudanças sociais e culturais trazidas por fenómenos que exponenciaram a reconfiguração das sociedades europeias: os processos de descolonização e as dinâmicas migratórias em cada país. Nos seus resultados, estes fenómenos desafiam as pretensões de delimitação da identidade nacional dentro das fronteiras da cor da pele e, na actualidade, trazem para o centro dos debates políticos3, a necessidade de se definir em que consiste um europeu e como criar símbolos comuns e partilhar um sentido da história a fim de se alcançar um amplo apoio à nova ordem continental.

Em geral, considera-se muito limitado o cumprimento das orientações da ONU que pretendem melhorar as condições de vida e de acesso à cidadania dos descendentes de africanos no continente, todavia, o anúncio da Década dos Afrodescendentes chamou a atenção para um facto social comum ao continente: a presença dos afrodescendentes como parte da configuração social e confirmação de que a Europa não mais pode ser vista a preto e branco. Neste sentido, e tal como foi apresentado, desde o início, o projecto Afro-Port 4 que investiga sobre a afrodescendência em Portugal, perante a ausência de uma determinação comum e consensual sobre a sua existência, os desafios que as abordagens sobre a afrodescendência enfrentam começam pelo ponto de partida, ou seja, pela possibilidade da definição de critérios de identificação unificados ou comparáveis, que ultrapassem as fronteiras nacionais no continente. É isto possível e pertinente num contexto marcado pela relutância em admitir que  negros na Europa e não apenas que aqui estão5?

Portugal e os contornos da Black Europe

Em Portugal, o afro como categoria é uma questão muito recente e identificada, sobretudo, na forma como descendentes de africanos ou portugueses negros descrevem a sua experiência social e apresentam-se no espaço público, a partir do activismo, por meio da arte, da cultura, da educação, entre outras dimensões. A adopção do termo afrodescendente representa mudanças tangíveis entre a população negra do país – tradicionalmente nomeada como migrante –, e acontece num contexto em que, para além das denominações que lhes são atribuídas – de acordo com a origem africana dos progenitores –, as pessoas também se anunciam como negras, africanas, portuguesas negras ou portuguesas. Em geral, no conjunto destas denominações, a condição afrodescendente tem-se evidenciado como suporte de formas específicas de resistência e afirmação identitária, adoptadas pelos agentes sociais, para defender a sua narrativa sobre o país, reivindicar políticas públicas que levam em conta a sua comunidade e, ao mesmo tempo, denunciar as discriminações e desigualdades económicas e raciais de que são alvo como minoria. Por exemplo, em 2016, e perante a insistência do governo português em refutar as conclusões do relatório da ONU sobre a fraca intervenção para a melhoria das condições destas comunidades, as 26 organizações que apresentaram queixa formal à ONU autoidentificaram-se como afrodescendentes, e como tal, denunciaram que a perspectiva oficial em Portugal constituía um bloqueio ao reconhecimento dos problemas que apontam e a possibilidade de desenvolvimento de estratégias para a sua solução. As suas reivindicações coincidem, em vários aspectos, com outros colectivos com uma actuação anterior e já consolidada, em Portugal, como é o caso da Plataforma Gueto 6 , e assumem, em conjunto, o compromisso com a luta contra o racismo e as limitações impostas à população negra na sua experiência social em Portugal.

Nos últimos anos, os afrodescendentes têm marcado o espaço público em Portugal, denunciando a inedaquabilidade do sistema de Educação ou as dificuldades de acesso ao mercado de trabalho. Além disso, assumem pautas do feminismo negro e constituíram-se como importantes veículos no posicionamento político e na produção cultural e artística, articulando-se, fortemente, com as iniciativas em outros continentes e países da Europa. Neste sentido, as suas iniciativas e conexões com países africanos ou as demais afrodiásporas na Europa e no mundo (com destaque para o Brasil), representam as dinâmicas mais relevantes que contribuem para o conjunto das produções (materiais e simbólicas) que, na contemporaneidade, definem o lugar de Portugal no mundo globalizado do século XXI.

Fronteiras da nacionalidade: as “interferências” da cor da pele

A relutância em admitir os contornos permanentes da Black Europe ganha várias facetas em Portugal mas, na actualidade, os afrodescendentes é que são directamente questionados, na sua existência, por exemplo, com as diferentes propostas de adaptação da lei da nacionalidade apresentadas ao longo do tempo, ou os esforços em atribuir-lhes denominações (migrantes de 2ª, 3ª e até 4ª geração) que os mantêm associados aos processos migratórios protagonizados pelos seus parentes, no passado. Em síntese, aplicadas às pessoas de ascendência africana nascidas no país, estas iniciativas em torno da atribuição da cidadania formal são esclarecedoras do tipo de discussão dominante sobre a identidade política quando o corpo negro aparece como uma fronteira que marca os limites da inclusão (Spetin, 2018).

A particularidade, neste caso, em Portugal, e no momento actual, é o grau de consciência crítica e de reacção que tais iniciativas provocam nos colectivos negros directamente atingidos pelos seus efeitos. Com efeito, tais procedimentos descrevem os limites impostos pela interiorização da ideia, segundo a qual um negro só pode ser um imigrante, de preferência indocumentado, e não faz parte da narrativa nacional que o país conta sobre si mesmo, a si e ao mundo (Miano, 2012).

Como vem evidenciando a pesquisa Afro-Port, para compreender o alcance social, a complexidade e a abrangência do termo, é necessário conhecer, em primeiro lugar, as atribuições que lhe conferem aqueles que têm sido os principais alvos das tentativas de se fixar a categoria afrodescendente como marcador identitário: as pessoas com ascendência africana nascidas em países europeus. Ou seja, antes de se afirmar a actuação da designação identitária afrodescendente, é necessário compreender se os portugueses negros, actualmente, reconhecem e admitem essa designação de si e para si. Em caso afirmativo, deve-se alcançar, com clareza, se para estas pessoas, tal empreendimento significa adoptar a designação (afrodescendente) e ousar afastar-se ou contrapor-se à estigmatização de que têm sido alvo como pertencentes ao colectivo de negros/ migrantes/ex-colonizados.

​A pesquisa Afro-Port 7 vem mostrando que no processo de autodenominação a cor da pele é um elemento incisivo, pois, é facto que a pessoa negra tem de se explicar quando afirma que é português, ou seja, um português afrodescendente e negro, quando se refere a si, tem de indicar o país e nacionalidade dos pais uma vez que o senso comum não admite a correspondência natural e directa de um negro como nacional português. Como mostram relatos recolhidos no âmbito do projeto Afro-Port, tal o peso da determinação da cor da pele na experiência social e a sua sobreposição ao reconhecimento legal como português que a pessoa pode decidir-se por não solicitar a nacionalidade portuguesa, por ter uma hiperconsciência dos limites desta atribuição: a pessoa compreende que será sempre vista como africana e a cor negra é a prova permanente e mais forte do que qualquer documento. Ou seja, o que está em causa ultrapassa a questão do status de possuir cidadania formal de um Estado europeu, para evocar reacções fortes (e ambivalentes, por vezes), acerca da permissão para ser totalmente europeu e sentir-se e ser tratado como tal.

Por outro lado, a pesquisa vem confirmando que a atribuição do termo afrodescendente determina, em certos contextos, uma disputa terminológica com o termo “preto” e traz a interrogação sobre se se trata de uma diferenciação libertadora ou excludente que pretende suavizar as significações implicadas no termo “preto”. Em certa medida, as diferenças entre os termos mostram-se importantes, uma vez que trazem o problema da hierarquização e a força do argumento da subalternização ou vitimização. Neste sentido, sobretudo os jovens mostram-se atentos às desconstruções dos mitos acerca da negritude e às tensões sociais que envolvem as populações de origem africana. Por outro lado, nos relatos recolhidos, algumas explicações das pessoas sobre o reconhecimento e identificação como afrodescendente baseiam-se em argumentos como: o facto de sermos todos afrodescendentes porque África é o berço da humanidade; a convicção de que afrodescendência nasceu em países que têm algum problema com os africanos; ou, ainda, a ideia de que trata-se de uma identidade com longos anos em Portugal, mas actualizada, por interesses políticos, como se fosse um facto recente.

Black Europe, Afro Europe ou Afro-diásporas. Os marcos de referência

Anteriormente, a denominação `migrante` prometia contemplar todas as dimensões da definição da presença de africanos e seus descendentes na Europa, mas, na actualidade, a afrodescendência marca tais dimensões de forma crescente. Porém, o debate não deve deter-se apenas no potencial da afrodescendência como um possível marcador da identidade de um grupo ou nos processos de afirmação colectiva e de conquista do lugar de enunciação na sociedade. O interesse recai, sobretudo, nas possibilidades e alcance das abordagens às black experiences e à visibilidade política e social actual da Black Europe (Small, 2018), seja sob a denominação de “black”, “Afro-”(afrodescendente, afro-alemão, afro-britânico, etc) ou como “diásporas africanas”. As formulações acerca da Black Europe (Small, 2018; Nimako and Small, 2009; Hine, Keaton, Small, 2009) estão assentes na busca dos marcos de referência que devem ser adoptados para falar de tais populações nos níveis regional, nacional, continental ou transnacional. Neste contexto, a história e as trajectórias sociais das populações negras na Europa encontram um novo destaque à medida que as comunidades negras tornaram-se mais visíveis no espaço público e exigem uma melhor representação política. As abordagens à Black Europe colocam a ênfase na necessidade de explorar, discutir e representar as histórias e culturas de pessoas, cujas trajectórias também foram moldadas na Europa e por ela. Neste contexto, projectos de investigação como o Afro-Port consolidam um novo campo de trabalho, a partir de uma perspectiva predominantemente interdisciplinar, em que os estudiosos buscam intersecções com o activismo político e social e abordam desde as trajectórias dos migrantes à história do racismo ou a estruturação de organizações políticas. Deste modo, procuram esclarecer sobre a pertinência social e política da categoria afrodescendência, cujo surgimento no campo do desenvolvimento das identidades minoritárias, além de documentar heranças coloniais e imperiais da Europa, lança luz sobre as conexões duradouras das pessoas (Small, 2018; Nimako &Small, 2009 ; Thomas, 2014) com a África, o Caribe e as Américas.

 

Referências

​Brancato, S. (2011) “Introduction.” Afroeurope@n Configurations: Readings and Projects. Newcastle upon Tyne: Cambridge Scholars Publishing, 1–15.

Fassin, É (2012). Démocratie précaire. Chroniques de la déraison d’État. Paris: Editions La Découverte.

Hine, D. C.; Keaton, T.D.; Small, S. (eds), (2009), Black Europe and the African Diaspora. Illinois: University of Illinois Press.

Miano, L. (2012) “Les Noires Réalités de la France”, In: Léonora Miano Habiter la frontière. Conférences, Paris, L´Arche Éditeur, 59-88.

Nimako, K. & Small, S. (2009) “Theorizing Black Europe and Africa Diasporas: Implications for Citizenship, Nativism and Xenophobia”, In: Hine, D. C.; Keaton, T. D. and Small, S. (eds.), Black Europe and the Africa Diaspora, Illinois: University of Illinois Press, 212-237.

Rodriguez, R. (2004). “Entramos Negros y Salimos Afrodescendientes: breve evaluación de los resultados de la III Cumbre Mundial contra el Racismo en América del Sur”. In: Revista Futuros, Nº5, Vol.II.

Small, Stephen (2018) 20 Questions and Answers on Black Europe, Amrit Publishers: The Hague.

Spetien, R. C. (2018) “Seguimos más allá del decénio”, In: Spetien, R. C. (ed.) Afrodescendencias, Voces en resistência, Buenos Aires: CLACSO. 11-15. Thomas, D. (2014) “Afroeuropean Cartographies”, In: Dominic Thomas AfroEuropeans Cartographies, Newcastle: Cambridge Scholars Publishing, 1-16.

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1 Este movimento segue a tendência na América Latina e Caraíbas, onde a referência contemporânea aos afrodescendentes acontece em primeiro lugar, e já no século XX, o prefixo afro surge para marcar, pela primeira vez, a componente territorial da negritude.

2 Com frequência, as versões mais correntes da história podem ocultar a contribuição de negros e outros não-brancos, porém, registros desde a época medieval mostram que africanos e seus descendentes viveram na Europa. A partir do fim dos anos 1400 e início de 1500, a maior parte dessas pessoas que chegaram à Europa passou pela península Ibérica; as cortes de Castela e de Portugal tinham já iniciado a expansão colonial em África e nas Américas, e com ela o tráfico de escravos.

3 Após o grande empreendimento da criação da União Europeia (UE) na tentativa de implementação da unificação económica e política.

​4 Projeto AFRO-PORT. Afrodescendência em Portugal: sociabilidades, representações e dinâmicas sociopolíticas e culturais. Um estudo na Área Metropolitana de Lisboa (FCT/PTDC/SOC-ANT/30651/2017).

5 As mais recentes preocupações em harmonizar e estruturar identidades em torno de noções tais como a “Fortaleza Europa” serviram para dificultar, ainda mais, as relações entre populações europeias e as que são consideradas não-europeias. Como mostra Eric Fassin (2012), na atualidade, a identidade europeia é definida, acima de tudo, em termos negativos, e em oposição à “pressão migratória”. Numa delimitação que não leva em conta os numerosos territórios extra- continentais (Canárias, Ceuta e Melilla ou Maiote e Reunião) que pertencem à União Europeia, tem sido reforçado o controle fronteiriço no perímetro sul do continente tendo como alvo específico os migrantes africanos e complicando e agravando as tensões entre europeus brancos e não brancos que já residem na UE.

​6 https://plataformagueto.wordpress.com/2012/01/13/plataforma-gueto/

7 A recolha foi feita durante as visitas exploratórias ou por meio de entrevistas individuais.