Hinacenda, o moribundo está para morrer

António Rodrigues

Cresceu fascinado com os jornais e o jornalismo e aos 16 anos foi para uma rádio-pirata, passando depois por um jornal para a emigração portuguesa, pelo semanário O Jornal, antes de chegar ao Diário de Notícias. Trabalhou no vespertino A Capital, em O Independente, no jornal i e no semanário Sol e hoje é jornalista do Público. Pelo meio foi delegado da Agência Lusa em Angola e editor executivo do jornal angolano Rede Angola.

Foto: Sérgio Guerra

Há homens que adivinhamos sábios antes mesmo de dizerem uma palavra. O seu ar, o seu porte, a maneira como o corpo empresta importância aos passos e aos gestos. Mesmo até quando os olhos vagueiam em busca da pedra certa para se sentar junto à fogueira. Hinacenda, no seu corpo alto, esguio, macilento, mas ainda ágil apesar da parca dieta e da agrura do clima das regiões semi-áridas da província do Namibe, no sul de Angola, é um desses homens.

​De idade indefinida, até para ele, deve andar pelos 70 anos ou um pouco menos que aqui, nestas paragens, a dureza da existência deixa marcas mais profundas no corpo. No entanto, o porte altivo, a elegância dos movimentos, a forma como enche o cachimbo com as mãos longas e bem desenhadas enquanto espera as perguntas, os olhos pequenos, mas atentos, a barba grisalha quase branca, deixam a impressão que está por cá desde o princípio dos tempos e por cá continuará quando já formos pó.

Se calhar é porque Hinacenda, o segundo rapaz de uma mãe que desejava uma filha, quase morreu ao nascer. E quem vive com a responsabilidade do nome que porta, Hinacenda, o moribundo, ressuscitado contra todas as expectativas, comporta-se na vida como se essa fosse já uma recompensa.

Os Herero, do sul de Angola, vivem do pastoreio e o gado é a sua maior riqueza; o tempo, mais que em anos, mede-se em estações. Daí que Hinacenda, ao puxar pela memória, não se lembre dos seus aniversários e sim das cinco secas normais e das outras três extraordinárias pelas quais já passou, tão extraordinárias como a que se vive nos últimos anos no Sul de Angola e o deixou sem nada. Sem gado e sem esperança.

​“Em anos passados, veio seca e morreram. Criei de novo. Veio outra seca e voltaram a morrer. Hoje, com esta seca, não tenho mais nada. Os animais morreram; acabou-se. Boi morreu, carneiro morreu, cabrito morreu, estou sem nada”, contou com a resignação de quem está habituado a nunca dar nada por garantido.

​Hinacenda vive como viviam os seus antepassados. Conhece as modernidades, sabe que o Erora é Angola, mas os Herero sofrem pela desconfiança que os nómadas sempre despertaram e pela lonjura – que com caminhos tão maus para aqui chegar a distância se mede às horas e não aos quilómetros. Mesmo que vivam nesse país que “o partido” (o MPLA, que tem mandado em Angola desde 1975) sempre insistiu indivisível de Cabinda ao Cunene, é como se os Herero vivessem para lá do fim do mundo, umas léguas.

À noite, quando o pó revoluteado pelo vento do fim da tarde já assentou deixando a terra mais refrescada, o imenso tapete de estrelas que olhamos deitados num pequeno promontório parece mais ao alcance dos nossos dedos que as decisões de Luanda. Ao Erora, nem as organizações não governamentais chegam para dar uma mão. E as instituições do Estado no terreno sofrem do constante subfinanciamento que mal lhes dá para pagar os salários dos funcionários. Em Luanda, sonham-se grandes obras, no Erora morre-se por falta das pequenas.

​É, por isso, que Hinacenda diz resignado, sem pingo de raiva ou atribuição de culpa, calcando o tabaco com esse pequeno espeto de ferro que leva preso no cabelo e em muitas ocasiões serve também para separar uma brasa para o acender: “É mesmo a minha morte. Eu cuidava de animais e os animais morreram”. Silogismo tão simples quanto não admite que as premissas pudessem ser outras: se eu cuido de gado, se os meus animais morreram, logo a minha vida deixa de fazer sentido e só me resta morrer. Até porque agora, ao contrário das outras vezes em que a seca lhe levou os outros animais, está velho e já não vai a tempo de recomeçar.

​Quando nasce um bebé do sexo masculino, os Herero costumam saudá-lo com a expressão “nasceu um menino que vai à guerra”. Para existir em território agreste e clima inóspito é preciso ser guerreiro, agarrar a hospitalidade pelos chifres e arrancar-lhe o leite indispensável para a sobrevivência.

​O velho Hinacenda é um pastor retirado de muitas guerras.

​Além de chuva e bois, os Herero pouco mais querem na vida. E só desejam que o céu se lhes verta sobre a cabeça pela importância que isso tem para os bois, como aqueles que o pai entregou a Hinacenda e que este tinha obrigação de cuidar e aumentar.

​Os povos Herero vivem para o necessário e mudar esse paradigma é complicado.

​A vida gira à volta do gado, como giram as conversas em torno da fogueira. O pasto, o leite, o sambo (o círculo onde se constroem as casas da família e a cerca do gado), a água, como antes os seus pais e os pais destes e os pais dos pais. Os Herero de Angola e da Namíbia são os mesmos, e as famílias, como as de Hinacenda, vivem de um lado e de outro do Cunene e o rio é apenas um acidente de percurso.

​Mas sabem como em Luanda ou em Windhoek ligam a essas coisas da fronteira e da nacionalidade, e como uma afirmação de identidade nacional diferente do que o esperado pode ser mal interpretada. O massacre cometido pelo alemães na sua colónia do Sudoeste Africano (nome antigo da Namíbia) ainda presente, dizimando 50% a 70% da população Herero no princípio do século XX, foi passando na tradição oral.

​Daí que Hinacenda, como outros Herero com quem falamos, não hesite em afirmar que é angolano, mesmo que isso de ser angolano não lhe tenha trazido mais que ser esquecido pela gente da cidade grande lá do Norte onde nunca pôs os pés: Luanda. “Nasci na Namíbia, mas saí de lá pequeno. Cresci aqui e habituei-me, não me sinto pertença de lá.”