As vidas de Fatima

Francisca Gorjão Henriques

Licenciada em Ciências de Comunicação e pós-graduada em Jornalismo de Política Internacional. Trabalhou 20 anos no Público. Deixou o jornal para se dedicar à Associação Pão a Pão, que desenvolveu um modelo de integração pioneiro em Portugal criando o restaurante Mezze, que dá formação e emprego a refugiados do Médio Oriente. Mas não abandonou o jornalismo. É agora freelance, para além de presidente da Pão a Pão.

Foto: Mezze

Antes de chegar a Portugal, Fatima nunca tinha trabalhado. Isto é, tinha trabalhado e muito à volta do fogão, cozinhando para o marido e cinco filhos, depois para os netos. A guerra mudou muitas coisas na sua vida, e mudou isso também.

O marido da Fatima até tinha um restaurante em Damasco, mas ela sempre ficara em casa, a cuidar da família, tal como tinha feito a sua mãe. Aliás, até casar, a Fatima nunca tinha sido obrigada a cozinhar. Mas é como diz: “Todas as pessoas na Síria sabem cozinhar. Ninguém nasce sem saber”.

Quando a guerra a tornou precocemente viúva, em 2013, Fatima decidiu fugir da Síria, levando filhos e netos. Primeiro passou pela Jordânia, depois Egipto. Finalmente, e quase por acaso, Portugal. Pela primeira vez, esta mãe de família sentiu que teria de ser ela a levar dinheiro para casa. Mas como, se não tinha qualquer experiência profissional? Quem lhe daria emprego se nem currículo tinha?

Foi para mulheres como a Fatima que o Mezze foi criado. Mulheres e jovens, como o Adam, que fugiu do Iraque sem ter conseguido terminar o curso de Medicina, porque a guerra tornou Mossul num lugar sem futuro. A ideia foi precisamente aproveitar esta herança que a Fatima e tantas mulheres como ela trarão sempre consigo, para onde quer que vão – saber cozinhar – e fazer disso o ponto de encontro com a sua nova comunidade.

Criámos a Associação Pão a Pão – a Alaa Al Hariri, a Rita Melo, o Nuno Mesquita e eu – para fazer acontecer o Mezze, um restaurante que dá formação e emprego a refugiados do Médio Oriente. Mas o Mezze faz muito mais do que servir refeições: põe pessoas em contacto e em partilha. Essa é também a razão pela qual fazemos workshops e promovemos debates. Só assim, com aproximação e conhecimento mútuo, a integração se pode fazer de forma mais plena.

Até agora, cerca de 1400 refugiados chegaram a Portugal ao abrigo do programa de recolocação. A Europa estava a fechar-lhes a porta na cara, mas muitos portugueses quiseram estender-lhes os braços. Formaram-se grupos para participar no acolhimento, garantir que havia casas, roupas, vagas nas escolas, aulas de português. Mas, e depois? O que acontece quando terminam esses primeiros 18 meses de apoio? A proposta da Associação Pão a Pão também responde a isso.

A ideia tornou-se projecto depois de várias conversas esclarecedoras com pessoas que trabalham com refugiados, depois de quadros e planos de negócio, depois de tanta gente ter dito que era uma excelente ideia e, portanto, já não haver volta atrás. Batemos a todas as portas de que nos lembrámos: empresas, instituições, entidades como a Câmara Municipal de Lisboa e o Alto Comissariado para as Migrações…

Activámos todas as nossas redes. Foi um ano e meio de mão estendida, com um pitch (como se diz na gíria do empreendedorismo) sempre na ponta da língua para envolver irremediavelmente todos os que cruzavam o nosso caminho (e foram muitos, e muito generosos). Quisemos ter a certeza de que quando abríssemos as portas, a nossa equipa saberia já as regras do jogo, e por isso estabelecemos uma parceria com o Turismo de Portugal, para um curso de um mês na Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa. Também recorremos a consultores, como cozinheiros (José Avillez deu uma mão; Luís Barradas e Paulo Matias fazem ainda um acompanhamento semanal). Pedimos ainda ao João Catarino que nos ilustrasse os menus, ao Marco Sousa Santos que desenhasse mesas e cadeiras, à SIA que nos fizesse o projecto de arquitectura… Outros deram o tecto, o chão, tijolos, livros, panelas… Houve ainda uma campanha de crowdfunding. E com a ajuda de muitos, o Mezze tornou-se num espaço de todos.​

Começámos por empregar 10 refugiados, vamos agora em 15, todos da Síria à excepção do Yasser, iraquiano, e da Serenah, palestiniana (serão mais quando replicarmos o projecto noutras cidades do país, como pretendemos fazer). E somos já auto-sustentáveis.

Isto não significa que os percalços não tenham estado lá. Houve dificuldades, umas mais inesperadas que outras. Por exemplo: fazer a equipa entender que é mesmo necessário descontar parte do salário para segurança social e impostos. Explicar que para os portugueses é importante acompanhar a refeição com vinho. Ajustar horários e férias, porque no Ramadão, para além do jejum, o tempo dedicado à reza e à família alarga-se substancialmente. Isto, sempre com tradução e comunicações perdidas no processo, porque a maioria ainda pouco fala português.

Hoje, quem entrar no Mezze não dá de caras com um projecto social, mas com um restaurante que é, acima de tudo, um espaço de dignidade. O espaço da dignidade que estas pessoas nunca perderam.

Nas vésperas de abrirmos, quando já estava tudo pintado, mobiliário a postos, equipamento ligado, a Fatima (que pela sua experiência e mão excepcional foi escolhida como chef) entrou no Mezze, olhou atentamente à sua volta e disse: “Esta é a minha segunda casa”.