Bissau-Lisboa-Bissau

Sofia Branco

Trabalha na Agência Lusa, onde é coordenadora de estágios e formação profissional, mas onde antes trabalhou como repórter cobrindo direitos humanos, igualdade de género, minorias e migrações. Trabalhou no Público, tendo recebido vários prémios por artigos publicados, nomeadamente sobre mutilação genital feminina. É autora dos livros Cicatrizes de Mulher e As Mulheres e a Guerra Colonial. É presidente do Sindicato dos Jornalistas.

Lisboa, 2017. Nima debruça os olhos sobre as asas do avião e estranha a cor daquela terra, que a vai receber, cheia de esperança num futuro melhor. Não é da mesma cor do chão que sempre pisou, vermelho-sangue, vermelho-alegria. O ar também é diferente, parece mais leve, mais fácil de respirar, mas ela não deixa de sentir a falta da humidade, companheira de vinte anos.

O avião inicia a descida e ela desfoca os prédios altos, a roçar o céu, para voltar a pairar sobre a tabanca natal, em Bissau, recordando imagens da sua Guiné. Vê o pai, Adulai, fitando a vida, apoiado num cajado, calejado por décadas ao volante de um toca-toca, transporte apinhado de gente, animais, trouxas e o que mais couber, num vaivém diário. Enquanto isso, a mãe, Arassi, vai pilando o arroz, demorada e meticulosamente, bacia de plástico azul entre as pernas musculadas das muitas caminhadas, para ir buscar água, para ir ao mercado. Estão casados vai para 50 anos, mas Adulai tem outras duas mulheres, mais recentes, cada uma com dois filhos, mais pequenos do que Nima e o irmão.

O imã da mesquita mais próxima, Alcorão que não sabe ler debaixo do braço, passa por eles, cumprimenta-os com um salamaleque. Eles retribuem, respeitosamente. Converteram-se ao islão faz tempo, mandingas que são, mas sem deixarem de lado a devoção aos irãs, habitantes dos poilões sagrados, e ao culto dos antepassados. Quanto mais protegidos, melhor.

Surge Romi, a vizinha viúva, marido morto no Conflito de 1998/99, guerra civil que se distingue de todos os outros episódios de instabilidade política e militar que se seguiram na Guiné pelo C grande. “Kuma di kurpu?”, como está o corpo, essa coisa onde habita a alma, pergunta-lhe Arassi. “Kurpu sta bon”, responde Romi, anunciando que vai trazer ali uns estrangeiros que querem conhecer Carlos, o irmão de Nima. Mal sai da escola, intermitente como a electricidade, o rapazito de dez anos aproveita as horas de luz solar para fazer brinquedos de lata, jipes, carros, carrinhas, barcos e aviões feitos de vazias latas de Dum Dum, malas de viagem feitas de esferovite, suspensões de arame, telemóveis, animais e pessoas desenhados com chapa. “Quem diria que alguém se interessaria por esta perda de tempo”, resmunga Adulai. “Quem sabe lhe compram alguns e ganhamos uns trocos com a sua habilidade”, pensa Arassi.

Foto: Ana Filipa Oliveira

“Quem sabe me levam daqui”, sonha Carlos.

Canforé vem interromper os pensamentos familiares internos. Charuto carcomido entre os dedos, chega, mascando cola, e cumprimenta o seu camarada de armas. Combateu com Adulai ao lado do brigadeiro Ansumane Mané e, desde então, ambos foram desmobilizados, mas ainda aguardam as tão esperadas reinserção e reintegração. Enquanto esperam, vão jogando uri, pedrinha aqui, pedrinha ali. Se calhar, um dia serão chamados para um golpe. Ainda sabem onde esconderam as armas, no meio do mato, denso como só ali.

Romi sai e volta com os brancos. Sofia, a cooperante portuguesa, acaba de conhecer Gabriel, menino órfão, apenas com cabecinha e tronco, que brinca rebolando no chão de um orfanato gerido por missionárias italianas onde tudo falta. Os brinquedos de Carlos dão-lhe ânimo, compra uns quantos para oferecer, tentando preencher o vazio deixado pela impotência que sentiu ao ver Gabriel sorrir. Vive na pensão da dona Berta, cabo-verdiana por nascimento, portuguesa por casamento e guineense por adoração.

Nima consegue ver tão bem as gotas de suor que escorrem de todos os corpos, quando é despertada para o presente: “Senhores passageiros, acabámos de aterrar no Aeroporto Humberto Delgado. Bem-vindos a Lisboa”. O controlo de passaportes é demorado, dá para Nima ensaiar vezes sem conta: “Vim para estudar, vou viver com os meus padrinhos. Não vou trabalhar. Voltarei à Guiné quando acabar o curso”. Passa. Mandam-na parar logo de seguida, querem ver o que traz nas malas coloridas, malaguetas, óleo de palma, mancarra. Nima ainda não sabe que a globalização já trouxe (quase) tudo aquilo a Lisboa. Mas o sabor, esse, não será o mesmo.

Os padrinhos esperam-na, num abraço de ausência prolongada, e Nima sente-se protegida. A viagem até à Quinta do Mocho é rápida, mas os transportes públicos vão torná-la bem mais penosa, diariamente. Nima vai estudar Direito, na Universidade Lusófona. Quer compreender as leis para as melhorar. Acha que algo não está a resultar com as leis em África. Ainda está por estudar como é que a Guiné-Bissau, um país onde tudo é tão frágil, a começar pelo Estado e pelas instituições, deu pessoas são fortes.

É de noite na Quinta do Mocho e Nima deixa-se vencer pelo cansaço. Quando acorda, espreita por entre as grades da janela do rés-do-chão para o bairro, observando os movimentos dos habitantes que madrugam com o sol. A madrinha pede-lhe que a acompanhe à Feira do Relógio, muitos mundos num só espaço, babel de línguas e preços de saldo. Nima sorri, recordando a animação da Féra di Praça, em Bissau. Sente-se em casa.

No regresso, carregadas de compras, decidem apanhar um táxi. Passam vários, sem parar. A luz verde não é de livre? Alguns abrandam, mas seguem. Um quase pára, abre a janela e lança: “Vai para a tua terra, preta!”. Nima tem vontade de chorar. Como ousava aquele desconhecido pensar que ela tinha deixado a sua terra de ânimo leve, escolhendo outra para morar? Seria a primeira de muitas reacções que a fariam deixar de se sentir em casa. Nunca seria dali, por isso o melhor era viver qual viajante temporária, até regressar à Guiné. Portugal não a merecia. E nem sabia o que perdia.