Gente de Bissau

Lúcia Crespo

É editora do suplemento Weekend do Jornal de Negócios. Licenciada em Ciências da Comunicação pela FCSH, estagiou no Público, trabalhou no Diário Digital e na revista Fortunas & Negócios, antes de se juntar ao Negócios. É pós-graduada em Economia Social e Solidária no ISCTE e em Marketing pelo GIEM/ISCTE. Em 2007, recebeu o prémio de jornalismo económico do Santander Totta/Universidade Nova de Lisboa.

Antes de mergulhar os pés na terra vermelha de Bissau, a Guiné-Bissau era, na minha memória emprestada, o país da selva, da guerra e da morte. Não adianta limpar a História, a Guiné-Bissau tem estampado em si o selo de vários conflitos. Mas, postas as minhas mãos naquela terra de muitas cores, o país passou a ser também uma outra coisa. Passou a ser terra com gente dentro. Gente com histórias além da História dos meus manuais. Gente grande. Em Bissau Velho, centro original da cidade, feito em quadrícula, de ruas estreitas e rectilíneas, encontrei pessoas com vidas quase mágicas.

Filomena Barreto é uma delas. Conheci-a como guardadora da Casa dos Direitos, um espaço pintado de azul e branco, que foi albergue da 1.ª esquadra policial de Bissau Velho e é hoje uma casa que salvaguarda direitos e resgata passados, presentes e futuros. Filomena nasceu em Cabo Verde, cantou e fez teatro ambulante com o grupo Korda Skrabu, lutou pelas independências, apaixonou-se e passou a viver em Bissau. Ela tem muitas histórias.  Ela e o seu amor, Adriano Gomes Ferreira, o “Atchutchi”, um dos maiores compositores da música moderna guineense. Era ainda um jovem quando, na década de 1970, se juntou à banda Super Mama Djombo, que tomou o nome do espírito que os guerrilheiros do PAIGC invocavam para sua protecção. Politicamente activa no combate pela independência, a banda era um símbolo da resistência ao colonialismo. “Atchutchi” deu-lhe fôlego e colocou a música guineense em muitas digressões além-fronteiras.

Foto: Alain Corbel

Pelas ruas de Bissau Velho, conheci, no meio de um pequeno castelo cheio de livros, Luiz F. M. Duarte, antigo Despachante Oficial, um senhor de muita idade que de si disse: “Sou o indivíduo mais antigo de Bissau Velho. Sou um africano debaixo de um embondeiro a dizer as verdades”. Luiz nasceu a 6 de Outubro de 1922, na Cidade da Praia, Ilha de Santiago, em Cabo Verde. Menino de Madragoa, jogou à bola com Amíl-car Cabral. Estudou, trabalhou no Banco Nacional Ultramarino de Cabo Verde e, em 1946, foi transferido para a Guiné-Bissau, país que adoptou na esperança de um dia ver realizado o seu lema de vida: “Trabalho, Criatividade e Risco = Desenvolvimento. É o Trinómio do Progresso”, lia-se numa folha colada na porta do seu castelo de livros de papel.

Bissau também está cheia de gente nova a contar histórias e a fazer História. Como Demba Sanhá, director da televisão comunitária TV Klelé (TVK), iniciativa nascida do Bairro Quelélé para informar e envolver as gentes locais em assuntos como saúde, nutrição e economia familiar. Dinamizada pela Associação para o Desenvolvimento (AD), a TVK foi deixando marcas em diversos bairros, formando vários jovens na área de produção audiovisual. Quando acabam as chuvas, a partir de Novembro, a equipa da TV Klelé percorre terras guineenses para projectar filmes em comunidades mais distantes e garantir o envolvimento de muitos.

A lutar pela comunidade e pelos seus direitos está, também, Cleunismar Silva, a linda Cleo, nascida em terras brasileiras, mas que, tal como Luiz, abraçou a Guiné-Bissau. Conhecia-a enquanto especialista em Género e então coordenadora do “Observatório dos Direitos” da LGDH (Liga Guineense dos Direitos Humanos), ACEP e CEsA. Há muito para fazer neste país onde 79 % da população vive abaixo do limiar nacional de pobreza e 33 % em pobreza extrema, aponta o Banco Mundial. Um país onde os direitos humanos estão longe de estar garantidos. Onde a mutilação genital feminina, ainda que proibida por lei, continua a acontecer. Assim como o casamento precoce e forçado. Sobre tudo isto há estudos e dados, parte deles trabalhados por Cleo.

No terreno, encontra-se Nelinho N’Tanhá, redactor na publicação Nô Pintcha. Quando o conheci, o jornalista estava a fazer uma reportagem sobre o corte de madeira e a consequente destruição de árvores da selva guineense. Nelinho é também professor de português no liceu e fundador do Teatro Experimental de Bissau (TEB), que tem levado à cena peças de autores portugueses e guineenses para promover a língua portuguesa e a cultura bissau–guineense, dentro e fora do país.

Fiquei espantada com a quantidade de pessoas envolvidas com a sua Guiné-Bissau, fiquei encantada com estes fazedores, a tentar dar à sua terra novas cores e a restaurar-lhe antigos tons. Fiquei ainda mais boquiaberta quando, de forma inesperada, conheci alguns homens “maus” que afinal não o são nem nunca foram, são “apenas” os homens que estavam do outro lado da minha História feita das memórias emprestadas. Percebi, que, se calhar, estamos quase todos do mesmo lado da História, narrativa essa que não precisa de ser camuflada, pintada, limpa, mas antes escavada para nos compreendermos um pouco melhor. O que é preciso é cravar as mãos e os pés na terra. Só assim se pode conhecer um país e as suas pessoas.