Bom dia Bissau: Pintura publicitária da Guiné-Bissau – análise de discurso visual

Piotr Stańczyk e Anita Wasik
2020
313 páginas

Luana Pereira

Nasceu na Guiné-Bissau. Viveu a infância em Lisboa e a adolescência em Bissau. É formada em Relações Públicas e Publicidade pela Universidade de Istambul e mestre em Comunicação para o Desenvolvimento pela Universidade de Malmö. Na sua empresa familiar, Guimedia, e noutras iniciativas profissionais, está focada nas temáticas do meio ambiente e desenvolvimento sustentável.

Os autores de “Bom dia Bissau” Anita Wasik e Piotr Stanczyk cumprimentam-nos começando por explicar que o livro é uma “reportagem científica”. Dão a si mesmos a tarefa de escreverem equilibrando a objectividade da pesquisa com as vivências e emoções das pessoas encontradas durante a recolha de dados para o livro. Anunciarem desde as primeiras páginas o seu envolvimento emocional com o objecto de estudo de certa forma tira o peso da objectividade dos ombros deles e promete, a nós leitores, a chance de nos envolvermos emocionalmente também, além da análise científica, aproximando-nos desde o início dos autores desta reportagem.

Como guineense que mora em Bissau, folhear o livro traz de imediato uma sensação de proximidade e calor. São as cores que representam bem as altas temperaturas do período de recolha de material ou sou eu quem está a transferir a minhas vivências para o livro? Começo aqui a perceber a dificuldade de manter uma distância científica na elaboração do livro. As imagens põem na minha cara um sorriso, pela simplicidade com que representam o dia-a-dia guineense, e despertam a minha curiosidade, porque me dão a oportunidade de ver a minha cidade com os olhos de outros. Vou jogando sozinha, tentando reconhecer placas e lugares, enquanto descubro o livro.

O uso da ingenuidade deliberada, da indução, e da interdisciplinaridade como ferramentas de pesquisa e interpretação é, de acordo com Wasik e Stańczyk, a melhor maneira de abodar a pintura publicitária guineense na sua qualidade de elemento da cultura popular. Os autores começam por fazer uma revisão da literatura existente no campo da análise de discurso visual. Esta literatura, porém, não é focada no discurso visual na Guiné-Bissau, devido à ausência de fontes relevantes. Neste aspecto, Bom dia Bissau já traz novidade, tomando lugar como uma fonte a consultar por futuros pesquisadores ou curiosos da matéria e começando a preencher o vazio da análise de discurso visual na Guiné-Bissau. Estas ferramentas mantêm-se em uso enquanto os autores nos levam junto de si a passear pelas diferentes localidades, a assistir ao Carnaval (também ele cultura popular), a conhecer o contexto histórico da Guiné-Bissau, conversar com artistas publicitários, e observar cuidadosamente as diferentes placas de publicidade.

Wasik e Stańczyk escrevem que a “pintura publicitária tem como pano de fundo a urbanização, o fluxo de pessoas da tabanca para a cidade, bem como a modernização acelerada” sob a foto de uma placa que anuncia a venda de frangos. Ao longo do livro lembram a relação entre o capitalismo, o crescimento da indústria e do sector dos serviços, a modernização e a necessidade da publicidade. A placa na foto tem os logos de duas ONG e de um parceiro bilateral de desenvolvimento da Guiné-Bissau. Além do óbvio valor informativo da presença dos logos, nota-se o valor comercial também. Este género de placas é omnipresente no país, inclusive nas localidades mais isoladas. Nos projectos e organizações activos no país, há conflito e tensão constante para que logos sejam colocados, no tamanho certo, na posição certa, por questões de visibilidade e representação dos parceiros financiadores e implementadores.

O livro de Florencia Enghel e Jessica Noske-Turner “Communication in International Development: Doing Good Or Looking Good?” (Comunicação no Desenvolvimento Internacional: Fazer Bem ou Aparecer Bem, minha tradução do inglês) de 2018, vem à mente. O texto crítico fala das dificuldades de se comunicar sobre e para desenvolvimento num contexto de aproveitamento da comunicação.

Como alguém que trabalha no sector de desenvolvimento e da comunicação não posso deixar de achar irónico e simbólico que os logótipos do desenvolvimento apareçam mesmo num estudo sobre pintura publicitária. Daí aproveitar a oportunidade para questionar a relevância e benefício para a Guiné-Bissau do domínio dos logos. O fenómeno das placas de visibilidade é tão grande que material dito de visibilidade para o desenvolvimento aparece num estudo sobre pintura comercial. O que é que as inúmeras placas de visibilidade e o seu conteúdo dizem sobre os parceiros financiadores e implementadores? E sobre o setor de desenvolvimento na Guiné-Bissau?

Deixo para outros momentos esta indagação e continuo na exploração do “Bom dia Bissau”. Wasik e Stańczyk viveram o Carnaval enquanto se encontravam em Bissau. Através das fotos deles, também eu o vivo. Vejo as máscaras no desfile, e noto algo novo ou que antes me passou despercebido. Uma das máscaras é de Amílcar Cabral, mas tem pele branca. Porquê? Talvez nem quem pintou saiba responder. A questão da cor da pele é analisada nas páginas finais, mas aparece antes disso, em imagens ainda no primeiro capítulo. Os autores abstêm-se de passar julgamentos, limitando-se a apresentar os números saídos da pesquisa e a compará-los com a realidade por eles vivenciada. Notam o alto número de personagens desenhados nos anúncios de pele clara ou branca, em situações de lazer, num país de gente de pele maioritariamente negra escura. Notam também a alta representação da mulher de pele negra escura em posição de trabalho.

Estas anotações podem ser interpretadas de várias maneiras. Seja pela consciência da sua qualidade de quem vem de fora, seja para manter uma distância científica e não imbuir os resultados de noções pré-concebidas que afetem os leitores, ou por as conclusões parecerem óbvias, Wasik e Stańczyk não se demoram em indagações destes resultados. Como leitora, teria apreciado ler o parecer deles quanto a estes dados, mas também acredito que a discussão de como nós, guineenses, nos vemos e representamos deve ser liderada por nós mesmos. O que se pode entender de uma sociedade negra que representa o líder negro do seu movimento de libertação colonial como branco? Pessoalmente, reforça em mim a ideia de que a libertação da Guiné-Bissau ainda não está finalizada. A descolonização das nossas mentes é um processo em constante construção, mas, nesta fase, talvez em retrocesso pois Cabral não deveria ser considerado “branku”. A palavra é usada no crioulo da Guiné-Bissau para descrever quem vem de fora do país, um estrangeiro. “Branku” é usado (por vezes como ofensa) para quem tem a pele branca ou simplesmente quem não se adapta muito bem ao espaço em que está. É um julgamento quanto à fisionomia, e quanto à adaptação e pertença social e cultural de uma pessoa. Desde quando é que Amílcar Cabral é branco?

Para além do olhar que temos quanto à nossa negritude e os privilégios e posições que subconscientemente atribuímos a ela como sociedade, os resultados da pesquisa também me fizeram questionar o olhar sobre a mulher guineense. Apesar da abordagem de interdisciplinaridade, as questões de género foram marginalmente mencionadas no capítulo final. Os três artistas entrevistados eram homens. Também pareciam ser os únicos encontrados, devido ao carácter usualmente anónimo do objeto de pesquisa. Ainda assim, teria sido interessante ver essa questão abordada diretamente. Como e quanto é que a representação da mulher na pintura publicitária guineense é condicionada pelo facto de os autores serem, pelo menos no estudo em questão, todos homens? Esta pergunta de pesquisa não poderia ter sido respondida em “Bom dia Bissau”, mas poderiam ter convidado o público guineense a esse debate. Mas, tal como a descolonização e negritude, e a invasão dos logos de organizações de desenvolvimento, quiçá é uma conversa a ser tida internamente.

Espero que autores futuros se debrucem sobre questões de género e descolonização noutras análises, visuais, textuais ou híbridas. Do seu lado, os autores já fizeram o corajoso trabalho de abrir o debate da pintura publicitária no país. Para mim, “Bom dia Bissau” foi um bocado como o Carnaval da Guiné-Bissau. Uma demonstração da cultura popular guineense, competição amigável pela atenção do público, combinação de elementos da nossa sociedade e realidade, expostos como arte e produto comercializável. Parabenizo Wasik e Stańczyk pelo trabalho bonito (pois o livro o é), de fácil leitura e informativo que conseguiu capturar o panorama da pintura publicitária na Guiné-Bissau, e, tangencialmente, tocar em outras problemáticas da nossa realidade. As dificuldades financeiras dos artistas, a baixa industrialização do país, a beleza da cultura popular guineense, associada à desorganização e incerteza proveniente das nossas instituições, a força da camada jovem e esperança na concretização de um futuro melhor… Espero que continuem a cumprimentar cidades e que o estudo deles seja inspiração para que mais investigadores cumprimentem a Guiné-Bissau.