Pedro Rosa Mendes [PRM] – Trabalho na área do desenvolvimento humanitário transversal para a paz, sobretudo em deslocação forçada, actualmente mais centrado em soluções para os deslocados internos [os chamados IDP – Internal Discplaced People]. Tenho trabalhado também em questões relacionadas com a reforma do sector da segurança, sobretudo na aplicação da lei pela polícia e no sistema de justiça criminal. Uma nota de rodapé aqui para dizer que isto não tem nada a ver, provavelmente para a maioria dos leitores do Mundo Crítico, com o que eu fiz antes, durante a maior parte de 15 anos ou mais, quando eu fazia jornalismo de reportagem na linha da frente e jornalismo de investigação, e que deixei há algum tempo.
Sara De Simone [SDS] – Sou uma investigadora académica; trabalho actualmente na School of Advanced Studies em Pisa, mas começarei a trabalhar na Universidade de Trento em Setembro. A minha área de especialização é a dos Estudos Africanos, centrando-me sobretudo na história política africana, em relação com a política internacional. Tenho trabalhado em vários projectos de investigação sobre diferentes temas, mas a maior parte da minha investigação incide sobre as interacções entre os actores africanos e internacionais a diferentes escalas, centrando-se na agência dos actores africanos a nível estatal e social. Tenho trabalhado sobretudo na África Oriental, no Sudão e no Sudão do Sul, em particular, mas também no Uganda (com um projeto de investigação sobre refugiados), na Etiópia e, recentemente, tenho investigado a interacção entre conflitos locais e as alterações climáticas na Costa do Marfim.
É o que tenho feito durante a maior parte da minha vida profissional, mas também tive alguma experiência de trabalho como consultora em ONG e agências internacionais de desenvolvimento, principalmente no Sudão do Sul. Este último é o país onde mais trabalhei, porque fiz o meu doutoramento sobre a construção do Estado no Sudão do Sul.
PRM – Considero particularmente instrumental a triangulação que faz sobre os diferentes níveis de governação e o exercício do poder. O nível nacional, mas presta muita atenção também às dinâmicas a nível local, à governação local. Outro ponto que considero interessante na sua reflexão, porque normalmente é muito compartimentado, é a centralidade das extracções, desde a exploração mineira, no sentido clássico, até às outras formas de extracção de tudo o que são recursos naturais que podem conduzir também a diferentes formas de poder. E depois penso que mencionou uma palavra-chave – agência – e a dinâmica entre a agência de grupos e indivíduos e os recursos para exercer essa agência e que é, para mim, muito interessante.
Actualmente, tem estudado o Sudão do Sul como um dos seus países temáticos. Por isso, gostaria de saber como vê a interacção entre um processo endógeno de formação do Estado, grupos e sociedades que evoluem para uma certa coesão que os aproxima de um projecto de soberania política, e esse processo em contraste com influências exógenas e apoio de “actores externos”, nomeadamente a comunidade internacional, incluindo multinacionais económicas, por exemplo, em contextos ricos em recursos que também influenciam, moldam e apoiam esses processos de soberania política. E que apoiam também a estruturação da construção do Estado. Como é que vê a evolução dessa dinâmica? Como é que a encara actualmente, também em relação ao que aconteceu há meio século, no sentido das grandes independências em África, na África pós-imperial/pós-colonial?
SDS – Há uma coisa que é muito importante ter em conta quando começamos a falar de construção e formação de Estados… Estes conceitos vêm da história europeia, que é uma história em que a construção e a formação de Estados andaram juntas, porque era uma altura em que o sistema internacional ainda não estava organizado em Estados-nação. O processo de formação destes Estados e de todo o sistema internacional implicou um grande esforço por parte das elites políticas de cada Estado para estabelecer legitimidade, controlo e relações entre si. A construção e a formação de Estados andavam a par. Este contexto alterou-se profundamente no momento da independência do colonialismo. O sistema internacional já funcionava como um sistema constituído por Estados-nação, e essa era a única forma de participar no sistema.
Por isso, quando falamos de construção e formação do Estado e dos constrangimentos à agência local, há um grande constrangimento que temos de ter em mente – por volta dos anos 60, quando muitos países africanos se tornaram independentes, não havia outra opção para a independência que não fosse o estabelecimento de um Estado-nação, porque o sistema funcionava dessa forma. Não havia espaço para diferentes tipos de processos políticos e de autodeterminação que pudessem conduzir a outras formas que não o Estado. Mas isto também implicava uma espécie de separação, a meu ver, dos processos de formação do Estado, porque a construção do Estado acontecia de forma sistemática: era preciso ter certas instituições e procedimentos de trabalho para ser reconhecido como tal, aceite dentro do sistema, e ter acesso às finanças internacionais e a este tipo de coisas. Mas, ao mesmo tempo, havia todo um mundo de dinâmicas políticas no interior desses países que não se desenvolveram a par do processo de construção formal do Estado e que não correspondiam necessariamente às expectativas do Norte global, dos observadores externos, que esperavam que essas áreas se tornassem Estados [como os outros].
Há uma série de processos políticos que basicamente se desviam das expectativas de como um Estado moderno deve funcionar dentro desses Estados. E isso implica processos de acumulação de poder, processos de gestão dos bens públicos, a divisão entre as esferas privada e pública, e todas estas coisas que foram estabelecidas muito lentamente, num período de tempo muito longo, na Europa. São expectativas que nem sequer estão completamente estabelecidas, porque, para ser sincera, há muitos países, incluindo Itália e Portugal, onde tenho a certeza de que há áreas em que as coisas funcionam de facto de uma forma diferente da que deveria ser, de acordo com o tipo ideal de Estado moderno.
Este facto é ainda mais visível nos processos contemporâneos de construção do Estado, no Sudão do Sul ou em Timor-Leste, e noutros casos em que se assistiu a um forte envolvimento de organizações internacionais e agências de desenvolvimento no apoio à criação do Estado e de instituições num período de tempo muito curto, com expectativas muitas vezes irrealistas. Por exemplo, pôr em prática processos orçamentais muito complicados ou eleições num período de tempo muito curto.
E depois há a formação do Estado, que é uma coisa completamente diferente, é muito mais lenta e segue dinâmicas estabelecidas de governação local, que são difíceis de erradicar, de alterar, e não pode obviamente manter o mesmo ritmo que a construção do Estado, especialmente se a construção do Estado é imposta externamente. Durante uma das entrevistas que fiz no Sudão do Sul para a minha investigação de doutoramento sobre esta questão, um funcionário governamental de alto nível disse-me on the record “estes doadores disseram-nos ‘por favor, façam isto! Timor-Leste também está a fazer isto, porque não o fazem também?”. E nós fizemos, porque não? Temos todas estas instituições e temos de ver como as fazer funcionar à nossa maneira, embora não fosse isto que queríamos fazer em primeiro lugar. Isto mostra-nos este tipo de dinâmica e tensão entre a construção e a formação do Estado. Também fala da agência dos actores locais: não é por aceitarem realizar eleições dentro de três anos que isso significa que essas eleições irão refletir as expectativas de quem as pede à comunidade internacional.
Por isso, gostaria de lhe perguntar sobre esta dinâmica na reforma do sector da segurança, que penso ser uma das áreas normalmente abordadas neste tipo de programas de construção do Estado, porque manter o monopólio da violência e das forças de segurança é extremamente importante para um Estado moderno, mas é extremamente difícil mudar dinâmicas que estão profundamente enraizadas, por exemplo, na militarização de vários pequenos grupos diferentes dentro das sociedades. Dada a sua longa experiência, gostaria de saber a sua opinião sobre este assunto.
PRM – A reforma do sector da segurança é apresentada como um nicho da cooperação para o desenvolvimento, e devemos ter em conta que surgiu primeiro no âmbito do CAD da OCDE como um novo quadro que remonta de há 20 anos. Há já uma forte externalização de um projecto de mudança no sector da segurança, em relação a muitas dinâmicas, incluindo a economia política do exercício ou o controlo da violência e do exercício da justiça. A parte de tudo o que se relaciona com a governação e o Estado de direito e, portanto, os elementos mais suaves que estão sob a alçada da SSR [sigla em inglês para “reforma do sector da segurança”] é muito mais interessante, na verdade, mas é muitas vezes um exercício frustrante (primeiro na Europa de Leste pós-comunista, e depois numa geografia completamente diferente, principalmente na África Subsariana e noutros contextos como a América Central). Isto porque parte do pressuposto de que se pode fazer uma reforma com base numa abordagem puramente técnica e numa solução técnica também, fazendo tabula rasa e pondo de lado a centralidade da política, até ao nível individual e local. Para mim, isso surgiu como uma primeira desconexão em todos os contextos – e não encontro nenhuma boa excepção bem-sucedida – em que houve uma transição entre a luta armada e os movimentos de libertação armados para uma entidade independente que depois governou o sector da segurança como parte do aparelho de Estado. Na maior parte dos casos, não se conseguiu ver a continuidade da dinâmica política e de poder de antes para depois da independência, em torno do sector da segurança.
Na verdade, há vários casos tristes dessa incapacidade de leitura que remontam a um passado anterior ao desta abordagem de reforma do sector da segurança. Remonta a 40 ou 50 anos atrás. O que também é interessante sobre a ideia de reforma, numa leitura mais recente destes esforços, é aprender algumas lições e tentar precisamente trabalhar a partir da economia política e ver a segurança como parte de uma conversa mais ampla sobre o exercício do poder, o exercício da agência e o exercício de diferentes formas de responsabilidade entre o Estado e as agências de segurança e os cidadãos.
Essa parte da reforma do sector da segurança é o que eu continuo a achar interessante, incluindo a sobreposição da tentativa de conceber formas responsáveis de aplicação da lei e do Estado de direito, em contextos onde há conflitos contínuos e deslocações em massa (quer internas, quer através das fronteiras internacionais), que são cada vez mais frequentes e em maior escala.
SDS – Esta forma de abordar a reforma do sector da segurança parece mais interessante e talvez também mais eficaz até certo ponto. Mas eu penso que durante muito tempo, e talvez ainda em alguns contextos, a reforma do sector da segurança é abordada pelos doadores como uma questão técnica, como o Pedro estava a referir, e também como tendo um carácter altamente normativo. Eu questiono esta atitude de propor ou impor este tipo de quadros na construção de instituições, por exemplo, porque o mundo é realmente diferente do que era há 10 ou 15 anos atrás.
PRM – Sem dúvida.
SDS – Actualmente, existem muitas opções de saída para os países que simplesmente não querem lidar com este tipo de requisitos. Por exemplo, os países da África Ocidental podem decidir, com relativa facilidade, que não se importam com o que a França pensa que devem fazer com o seu sector de segurança, porque podem recorrer a outros parceiros. Não tenho uma resposta para isto, mas pergunto-me o que devemos fazer com a nossa cooperação internacional ocidental nestes aspectos específicos que são também altamente políticos? Temos estado a lidar com eles desta forma, mas isso não é sustentável, nem mesmo para nós, porque simplesmente não conseguiremos lidar com governos africanos assertivos. Isto também nos leva a outra questão que gostaria de partilhar aqui, que se prende com o facto de haver um número crescente de conflitos em que as partes em conflito estão a violar o direito humanitário internacional. Como é que lidamos com isso? Há alguma coisa que a cooperação internacional possa fazer para manter os canais de comunicação abertos sem legitimar esses actores, mas também sem fechar completamente as portas? Porque o risco é não falarmos com essas pessoas, porque estão a violar completamente o direito humanitário, e depois? Será que essas pessoas se importam com isso?
PRM – E depois nada. Partilho totalmente essa opinião e é um ponto muito importante, Sara. Quanto à minha formação académica, estou muito ancorado na história e no direito internacional humanitário. Assim, a minha visão do mundo é, para o bem e para o mal, moldada por um forte sentimento de que existe um corpo de leis, jurisprudência e direito internacional consuetudinário que, para mim, constitui uma base sólida como gramática da decência e da humanidade. E isso é essencialmente normativo, porque há normas que foram difíceis de negociar e que, muitas vezes, tentamos ignorar ou esquecer actualmente. Mesmo os princípios básicos das Convenções de Genebra, os princípios básicos e as revisões básicas foram duramente negociados entre os Estados e isso tem um valor.
Simultaneamente, concordo consigo sobre a visão formalista e estática, que poderíamos dizer puramente normativa, no sentido em que não tem em conta as realidades da economia política e os processos de mudança, que implicam processos de envolvimento e compromisso inteligentes numa negociação. Recordo-me de um rebelde de um país da África Austral que, num contexto político muito adverso de violência política, num espaço não democrático, criou, com colegas e camaradas de longa data dos tempos da luta de libertação, um projecto de construção da paz e de reforma do sector da segurança. A sua primeira regra foi: “É preciso começar com os piores dos maus”. É necessário aceitarmos o desafio, a abertura, o risco, incluindo o risco político de projectar a mudança no tempo, de procurar alianças, de encontrar pontos de entrada (e os pontos de entrada podem ser a nível da comunidade, podem ser a nível local, podem ser com círculos eleitorais como redes de mulheres, por exemplo, ou filiações religiosas)….
São extremamente contextualizados e, nesse sentido, não-normativos e penso que está a demorar muito tempo, certamente para os actores globais no Norte global e nas chamadas agências de desenvolvimento, tanto da ONU como bilaterais, aceitar o que acabou de descrever. O mundo mudou radicalmente, nos últimos 10 ou 15 anos. A natureza dos conflitos é fundamentalmente diferente do que era há 15 anos. Há 20 anos, por exemplo, era impensável ter algo como um movimento armado não estatal, como o Daesh, a controlar vastas áreas do Iraque e da Síria. Os conflitos são também extremamente localizados – são inter e intra-comunitários. A base normativa tem de ter em conta este facto. E concordo consigo: está a demorar algum tempo a evoluir para um discurso e a aceitar coisas que também se baseiam numa verdadeira propriedade local e nacional, que até agora tem sido, em grande parte, uma questão de discurso.
Para fechar o círculo sobre o que é a utilização do DIH [Direito Internacional Humanitário], por exemplo, como base. Eu metaforizaria com uma citação de uma canção de Leonard Cohen, “guided by the beauty of our weapons” (“guiados pela beleza das nossas armas”). Muitos intervenientes no DIH continuam a trabalhar com base na justiça moral, no normativo e dizem “este interveniente não respeita esta ou aquela regra e este interveniente deve ser condenado ao ostracismo” – isso não nos leva a lado nenhum.
Considero mais construtivo e, na verdade, excitante também a nível ético, tentar envolver actores armados não estatais, por exemplo, que não subscreveram nenhuma das normas que constituem os princípios básicos do DIH, que foi negociado e assinado pelos Estados. Devemos ter isso também em mente, envolvermo-nos com actores armados não estatais e encontrar um mínimo de pontos de entrada que possam funcionar com base no seu sentido de legitimidade e não no nosso sentido de quem está certo e quem está errado. Por isso, há muitos esforços no sentido de compreender o conflito no que ele tem de dinâmico a nível local e até comunitário e de encontrar os pontos de conversa para depois trabalhar num processo de mudança de comportamento que não começa, de facto, com uma mudança normativa. “Inscreve-se nesta ou naquela convenção?” – isto significa muito pouco.
Voltando à sua palavra-chave no início da sua introdução – agência –, estudou também a agência dos refugiados em termos das possibilidades de ancorar a integração local. Sabemos que a maior parte dos deslocados forçados de hoje em dia nunca regressará, por isso, quer se trate de deslocados internos ou de refugiados, haverá situações prolongadas em grande escala com muito poucas possibilidades para aquilo a que ainda se chama a solução preferida do regresso, que está cada vez mais realisticamente fora de alcance. Por isso, a integração local e as possibilidades de os refugiados e os deslocados internos terem as ferramentas e as condições para se afirmarem como parte de um novo local são, para mim, muito interessantes.
Queria ouvi-la, porque fez investigação no Uganda, um dos principais países de acolhimento de refugiados de toda a África Oriental e com um quadro jurídico muito aberto. Como é se que articula aquilo a que chama “bem-estar dos refugiados”? E, se me permite acrescentar uma segunda pergunta, que contrasta com a forma como, especialmente no espaço europeu, a UE, as restrições ao asilo e à migração evoluíram nos últimos 20 anos para uma situação muito triste e miserável. Como é que as lições aprendidas na África Oriental, em termos de um espaço para os refugiados e de integração socioeconómica, contrastam com uma abordagem europeia que fecha todas as vias de participação económica através do trabalho, por exemplo, ou da participação no mercado de trabalho?
SDM – Escolhi o Uganda precisamente por essa razão e também porque tinha muitos contactos sul-sudaneses que se deslocaram para o Uganda, por causa da guerra no Sudão do Sul. Não quero parecer apologista do regime ugandês, que tem muitos problemas, mas penso que é importante reconhecer que, com todas as suas deficiências, do ponto de vista da forma como geriu o afluxo de refugiados entre 2014 e 2018, pode ser considerado um exemplo virtuoso, porque tinha uma política de portas abertas, o que não é comum. O Uganda tinha uma política em que era reconhecido aos refugiados o direito de circularem no país, o direito de trabalharem, o direito de se integrarem, em certa medida, na sociedade. Depois, claro, havia os campos de refugiados: os refugiados podiam optar por viver nesses campos e receber ajuda humanitária, mas também podiam ir viver para as cidades, por exemplo, se assim o desejassem.
Também houve muita corrupção relacionada com este facto, houve muitos escândalos, mas penso que o ponto importante a reter aqui é que o Uganda reconheceu que havia um valor que o país podia explorar ao acolher este elevado número de refugiados. E esse valor provinha tanto da contribuição efectiva dos refugiados para a economia local, como do apoio internacional. Em zonas extremamente deprimidas e remotas do Norte do Uganda, a população duplicou e os mercados explodiram. É claro que houve problemas e tensões locais, por exemplo, no que se refere ao acesso à terra e às rendas que começaram a aumentar, mas mesmo assim as relações entre os refugiados e as comunidades de acolhimento mantiveram-se calmas e até amigáveis. Outro benefício foi o apoio internacional à resposta aos refugiados, que foi, pelo menos em parte, utilizado pelo Governo do Uganda para construir infraestruturas que depois permaneceram no país. Podemos discutir a qualidade dos serviços prestados, que era má, mas penso que temos de reconhecer que foi um modelo que funcionou melhor para as pessoas do que outros na região.
A longo prazo, temos de discutir esta ideia de os refugiados não regressarem. Penso que depende muito, porque há muitos casos em que os refugiados querem de facto regressar, assim que lhes seja possível – foi o caso do Sudão do Sul. Demora talvez 10 anos, mas os refugiados do Sudão do Sul começaram a regressar há dois, três anos, talvez quatro, se quisermos ser optimistas.
É realmente possível manter as pessoas sete anos num campo? Quem é que paga isso? O que acontece a essas pessoas? O cérebro fica destruído: temos toda esta população potencialmente produtiva e fechamo-la num campo sem possibilidade de trabalhar. É muito capital humano que está a ser desperdiçado. Quando falamos de “bem-estar dos refugiados”, em primeiro lugar, é claro, é necessário prestar algum tipo de assistência humanitária porque, em comparação com os migrantes económicos, os refugiados são geralmente pessoas que estão a fugir e, por isso, provavelmente não planearam a deslocalização com antecedência, podem não deter grande capital económico para investir, podem não ter capital social, ao passo que os migrantes económicos geralmente têm pelo menos algum capital, que podem utilizar para apoiar a experiência de migração. É necessário prestar assistência imediata a essas pessoas, mas também é necessário proporcionar-lhes um ambiente propício ao trabalho e à participação em funções sociais básicas, como a educação e os cuidados de saúde, que, no final, contribuem para algum tipo de integração. Depois, as pessoas poderão decidir se querem regressar ou se querem ficar, mas a experiência diz-nos que as pessoas que fugiram das suas casas querem regressar.
Isto leva-nos a toda a questão sobre o verdadeiro problema no Norte Global. O verdadeiro problema é que não temos vias legais de migração, especialmente na União Europeia. Se as pessoas querem estar aqui, têm de o fazer ilegalmente e tentar fazer valer o direito de asilo, mesmo quando as provas são muitas vezes inventadas ou não são suficientes, porque essa é a única forma. Penso que, nesse caso, talvez a distinção entre migrantes e refugiados seja menos significativa, porque se um refugiado tem os meios e a capacidade para chegar à Europa, isso significa que deve ter tido algum tipo de capital, que foi completamente dissipado durante a viagem, e as pessoas chegam à Europa destroçadas como seres humanos, porque são sujeitas a condições desumanas durante um período muito longo. E dissiparam o seu capital económico, porque tiveram de pagar milhares de euros para fazer a viagem, quando podiam simplesmente pagar um bilhete de avião e utilizar o seu capital económico para arrendar um quarto e encontrar um emprego, como fazem os italianos quando se mudam para a Alemanha ou para o Reino Unido.
PRM – E quando os portugueses se mudam para França, Suíça e Alemanha. Só para terminar com uma nota: o fechar de todas as portas possíveis é mais do que política. Acho que é uma mentalidade triste e radicalizada que está desligada… Mesmo uma leitura de primeira linha de referências básicas sobre estudos de migração dir-nos-á que, durante provavelmente mais de 20 anos, as políticas de migração da UE e dos Estados europeus têm sido consistentemente piores, mais fechadas e mais conservadoras. A política tem estado desligada da realidade e é cada vez mais imune, não apenas alheia, mas imune a qualquer sentido.
Eu usaria o título do recente livro de Hein de Haas, que é um especialista holandês em migração, um dos meus preferidos (o livro foi publicado há poucos meses e está traduzido em português) precisamente sobre “Como funciona a migração” e ele tenta desmontar as pobres ideias que depois se enquadram no asilo, mas também nas políticas de migração na UE, e que, como ele diz, não estão relacionadas com a economia, a humanidade ou a moralidade, na base puramente do interesse. E o cinismo é espantoso. Como referiu, e gostaria apenas de sublinhar, a migração em si é um empreendimento dispendioso. Por isso, ao contrário de muita da “opinião pública dominante”, certamente na Europa de hoje, os migrantes que chegam são, de certa forma, os que têm mais recursos na origem, porque a esmagadora maioria (85-90%) da migração africana acontece dentro do continente e, na sua maioria, dentro da mesma sub-região, seja a África Ocidental, a África Oriental ou a África Austral. Existe um desfasamento entre as políticas e a realidade que, provavelmente, se aproxima da necessidade de uma narrativa ou de um discurso mais consistente, mais corajoso, mas também mais inteligente, para ajudar a desmantelar este tipo de opinião dominante sobre os princípios básicos do funcionamento da migração e sobre o que deve ser a base e a coerência dos fundamentos do asilo que aplicamos no Sul global.
SDM – Se me é permitido acrescentar uma questão para fechar este tema, penso que é muito importante compreender como funciona a migração. Mas grande parte da política que se desenvolveu em torno da migração nos últimos 30 anos veio das entranhas das pessoas. Não se trata de saber mais, mas sim de uma situação em que o capitalismo neoliberal aumentou as desigualdades nos países europeus. A política começou a procurar bodes expiatórios para esse facto, por não assumir responsabilidades. E, claro, os migrantes são o melhor bode expiatório de sempre, porque não têm direitos e esta é provavelmente uma das razões pelas quais também não estamos a legalizar mais, porque existe esta perspectiva ideológica. Se legalizarmos, teremos pessoas menos vulneráveis e não podemos estar sempre a fazer delas bode expiatório com este nível de impunidade.
Este é o problema de fazer políticas mais ligadas à realidade e que também respondam ao facto de haver um declínio demográfico na Europa, de haver necessidade de mão de obra, de força de trabalho na Europa. No meio disto tudo, há a realidade e as políticas que têm interesse em parar e manipular a identidade e este tipo de discursos em torno da migração para os seus próprios fins, para poderem servir de bode expiatório pelo facto de a qualidade de vida na Europa ter vindo a diminuir cada vez mais nos últimos 30 anos e de a desigualdade ter disparado.