Espaço político, ética, ONGD , sector privado, conhecimento e opinião pública
pelo Conselho Editorial
“Enquanto dinamizadores da Mundo Crítico, partimos das nossas diferentes experiências e opiniões sobre a cooperação para propor 6 questões, entre outras possíveis, como contributo para o debate necessário.”
Espaço Político: Espaço político e arquitectura institucional
O espaço político, entendido no sentido lato de “campo social de reflexão e acção onde todos os actores intervenientes têm poder efectivo de realizar pactos e acordos” (definição inspirada em Hanna Arendt, Qu‘est-ce la politique, Seuil, edição 2014), de uma área de governação ou de uma área social, pode contrair-se ou expandir-se conforme a situação política, económica e social do país. As características dessa expansão ou contracção podem sintetizar-se sobretudo nas noções de credibilidade e atracção social das actividades da área e concretizam-se na maior ou menor possibilidade de captar recursos humanos qualificados, recursos financeiros e ainda de haver maiores ou menores condições para mudanças duradouras na arquitectura institucional de entidades públicas ou privadas, nacionais ou internacionais, mais e menos formais dessas áreas.
Se pensarmos a área da Cooperação Internacional portuguesa podemos afirmar que o seu espaço político se foi sempre expandindo, com um período mais alto (pela teoria e acção prática) entre os anos 2005 e 2011, com uma multiplicação de actores descentralizados, uma progressiva definição estratégica mais coerente, iniciativas de inovação e evolução da arquitectura institucional das entidades centrais configuradoras do espaço – GCC, DGC, ICP, IPAD. A capacidade de atracção de mais atores sociais públicos e privados permitiu uma inserção na sociedade portuguesa de uma forma alargada, indo para além do papel de componente da política externa que os actores políticos, no sentido estrito, lhe atribuíam.
A partir de 2011, com as medidas de ajustamento estrutural imposto pela crise económica e financeira mundial a expansão interrompe-se, com diminuição dos recursos alocados e com a decisão do poder político de fundir dois organismos centrais públicos – o IPAD – Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento, e o Instituto Camões, numa entidade designada como Camões – Instituto da Cooperação e da Língua. Essa fusão, concebida em dois silos organizacionais com uma única direção, com corte orçamental e devolução a ministérios de origem de um número significativo de quadros técnicos qualificados, acentua a redução genérica de espaço político, agravada pela interpretação/opção da direcção então instituída de fazer prevalecer as actividades de promoção da língua portuguesa, tivessem ou não ligação a processos de promoção do desenvolvimento dos países parceiros. Ou seja, opta-se por orientar os recursos disponíveis para atividades onde uma noção limitada de “interesse nacional” (promoção da língua portuguesa) em detrimento de outra, onde o interesse comum a todos os parceiros envolvidos era afirmado como o objectivo mais geral e permanente (Cooperação para o Desenvolvimento).
Com a alteração de ciclo político em 2015 e o início da saída da crise, esse espaço recomeçou a expandir-se lentamente, mas a opção política de não alterar a arquitectura institucional travou o ritmo e a substância a que essa retoma se processou. A recusa em reverter a fusão anterior, justificada pela possível fragilidade institucional que tal processo iria originar, e a escolha estratégica da angariação e gestão de projectos de Cooperação Delegada e de Fundos Fiduciários, como motor do dinamismo e do financiamento mais consentâneo com as expectativas dos actores neste espaço político, teve consequências positivas e negativas. Destaca-se assim, por um lado, a possibilidade de gerir maior volume de verbas e portanto de aumentar o peso político imediato da cooperação portuguesa e de alguns actores nos países parceiros (positiva), mas também a de diluir os critérios de soberania e de coerência com as prioridades da luta contra a pobreza, afastando-se da estratégia definida em 2014, sem que houvesse um processo assumido de reformulação da mesma (negativa). A arquitectura institucional para gerir esta retoma continua a ser feita de forma improvisada, com os serviços completamente “afogados” em processos. O espaço de contacto e de consensualização alargado entre actores – o Fórum da Cooperação – está reduzido a plenários de informações do CICL e da secretaria de Estado da tutela (por exemplo, as promessas/decisões de voltar à dinâmica dos grupos de trabalho, como no período 2005-2011, nunca foram implementadas). Aliás, se pesquisarmos a palavra “Fórum” no Relatório de Atividades do Camões para 2018 não a encontramos.
Não se cumpre assim a função de criar coesão, dinamismo e espaço de diálogo entre os diferentes actores intervenientes na área, que se limitaram a sobreviver ao período de crise diminuindo a actividade, deslocando-se para as subáreas onde tinham valor diferenciador ou esforçando-se por aumentar os financiamentos fora do sistema público português. A retoma com base nesta estratégia tem permitido que haja uma reconfiguração das posições simbólicas de cada interveniente, mas com uma deslocação para o centro daqueles que o Camões identificou como tendo capacidade para executar projectos com financiamentos mais volumosos na Cooperação Delegada e nos Fundos Fiduciários, empurrando tendencialmente para a periferia os outros (veja-se a análise das relações de poder no “campo” da Cooperação em Sangreman et alia, O cluster como instrumento teórico e prático da Cooperação Internacional para o desenvolvimento portuguesa, página 118, 2015, CEsA/ISEG e CEI-IUL).
É neste contexto que devemos colocar três questões que não podem ser respondidas de forma incompleta pelos discursos e decisões dos titulares da pasta, tomadas ao sabor dos ventos do momento: Em primeiro lugar, esta estratégia defende e consolida/desenvolve o reconhecimento da Cooperação Portuguesa nos dois espaços geoestratégicos – a União Europeia e a CPLP – em que participamos? Em segundo lugar, esta estratégia defende e consolida / desenvolve a contribuição de Portugal para o compromisso do processo de Paris sobre a Eficácia da Cooperação (2005, 2008, 2011), nomeadamente no que se refere ao alinhamento pelas prioridades dos países parceiros? Em terceiro lugar, esta estratégia defende e consolida/desenvolve o objectivo interno, no território português, de termos uma recuperação do espaço político da Cooperação para os níveis que já conseguimos atingir antes da crise?
Ética: A moral, a ética e a cooperação internacional
A ética, a moral, os valores e os princípios são conceitos que não reúnem consenso, sendo, no entanto, consensual a sua importância. Ou seja, faz parte da condição humana procurar a coerência e fugir do caos das acções não pensadas, com razões parciais ou sem outra razão que o facto de poderem ser feitas naquele tempo e espaço. A resposta histórica mais frequente a esta indefinição tem sido as religiões e crenças, com os seus dogmas morais e mandamentos éticos, e que na Cooperação Internacional para o Desenvolvimento deram origem ao assistencialismo praticado por muitos.
Assim, para debater a construção de um referencial moral e ético numa qualquer área de conhecimento teórico ou prático, os intervenientes têm de começar por definir o seu objecto de reflexão, como querem considerar e articular os conceitos referidos e escolherem o nível de coerência, o nível de tolerância no relacionamento com outros actores, e por último a “escada lógica” que permite relacionar as acções concretas com esse aparato teórico de referência. Ou seja, como avaliar se uma determinada proposta prática e quotidiana é coerente com as escolhas morais e éticas realizadas?
Para construirmos esse referencial para uma acção política como é a Cooperação Internacional para o Desenvolvimento, onde a relatividade impera e é difícil dizer que uma convicção / posição / opinião é absolutamente verdadeira, e outra é absolutamente falsa, podemos escolher seguir Habermas, J. (ver “A ética da discussão e questão da verdade”, 2007) filósofo que privilegia o relacionamento social sobre o individualismo, é relativista e utiliza como instrumento central de construção de moral e ética a fala/língua. Como ponto de partida consideramos que a moral é o conjunto de valores que a condição humana foi estabelecendo desde que foi capaz de pensar com esse nível de abstracção (para a China Confúcio séc. VI-V AC e para a Europa Aristóteles e Platão séc. V-IV AC). Os princípios são os valores de um indivíduo, ou de um grupo social, numa actividade ou duma sociedade, que essa entidade escolheu para a sua vida no seu espaço temporal, e sendo a ética o conjunto de regras de comportamento decorrentes dessa escolha e que rege a sua vida pessoal e a da sociedade.
Na cooperação internacional para o desenvolvimento intervêm muitos actores sociais, com princípios e éticas diferentes, em grau variável. Pela variedade desses actores é difícil estabelecer uma plataforma comum mas é importante debater e criar essa plataforma. Tal foi sendo feito pelo CAD da OCDE desde os anos 80, no âmbito dos princípios e pela União Europeia com códigos de conduta. Em Portugal, os valores que a Constituição acolheu, determinam as escolhas estratégicas para a Cooperação pública, mas que foram pouco implementadas. É de referir o Código da Avaliação elaborado pelo IPAD/Camões em 2014, com princípios e regras de conduta para os avaliadores. Existe também o Código de Conduta das ONGD Portuguesas elaborado pela Plataforma em
2017. A única investigação a nível individual na área, que conhecemos, e para Portugal, foi feita através de uma consulta alargada a pessoas com actividade de cooperação, sem preocupação de representatividade estatística, sobre Valores na Cooperação (a partir do trabalho de Schwartz, S., cop. 2013, “Human values”, pelo CEsA).
A questão principal, todavia, é a concretização prática desse código, a “escada lógica” de articulação entre níveis de abstracção diferentes, os instrumentos para a sua avaliação, bem como as consequências institucionais por não cumprimento. A tendência é para que esses códigos se mantenham a nível de abstracção tal que os intervenientes têm dificuldade em estabelecer a ponte entre esse nível e as acções concretas, as escolhas quotidianas para cumprir os objectivos assumidos. Por exemplo: ter expatriados representantes de uma organização europeia num país ou ter nacionais desse país a fazer esse papel, é o mesmo eticamente ou não? E quem não cumpre, que consequências enfrenta?
Outra questão a este nível de questionamento é a da tolerância. Ou seja, se não há razão para acreditarmos que contextos sociais diferentes dão origem ao mesmo padrão de escolhas morais e éticas, como nos relacionamos com sociedades onde esses padrões são diferentes dos nossos? A tolerância com a liberdade de expressão da oposição política é igual em Portugal e na Guiné Equatorial? Se não é, como se coloca essa questão no relacionamento da Cooperação entre os dois países? Ou ignoramo-la e fazemos cooperação em áreas em que a questão possa ser evitada?
Mas, se ignoramos esse referencial, então interviremos ou porque somos família, sempre foi assim, temos as mesmas crenças religiosas, existe alguém que paga para o fazermos, é o nosso trabalho, seguimos ordens ou simplesmente porque podemos fazê-lo, sem querer saber da coerência moral e ética. O resultado, em geral, é fazermos mais mal que bem e, acima de tudo, estarmos a negar a nossa condição humana.
ONGD: As ONGD na cooperação portuguesa
As primeiras iniciativas de “cooperação internacional solidária” foram promovidas ainda em 1974, pelo então Centro de Informação e Documentação Anti-Colonial (CIDAC). A participação em “questões internacionais” tornou-se possível com o reconhecimento pleno dos direitos de cidadania em Portugal, estruturando-se a par da transformação das relações externas. O interesse pelo “desenvolvimento internacional” estendeu-se a esferas sociais diversas: colectivos de militância política, grupos profissionais (médicos, professores, experts em áreas como a agricultura, engenharia, relações internacionais), religiosos, associativismo juvenil, sendo actualmente reconhecidas cerca de 170 organizações com fins de cooperação para o desenvolvimento, ajuda humanitária ou educação para o desenvolvimento. Um terço delas é associada da Plataforma Portuguesa das ONGD, criada em 1985. Verificam-se, contudo, importantes hiatos no que respeita à capacidade de dinamizar, de modo sustentado, projectos de cooperação internacional.
O espaço das ONGD tem um percurso de conquistas e desafios. Passaram-se 20 anos até à criação de um estatuto jurídico próprio e quase 30 até aos primeiros concursos públicos para projectos de sua iniciativa. Em 1997, no Exame de Pares realizado pelo CAD/OCDE, as ONGD portuguesas eram consideradas “frágeis”. Na viragem do milénio, Marques & Ribeiro concluíam que tinham baixo capital social, pouca capacidade de mobilização social e eram pouco valorizadas pelo Estado. A avaliação do CAD de 2001 relembrava o papel secundário que lhes era atribuído no sistema de cooperação, quer em Portugal quer nos países destinatários da cooperação portuguesa, e a ausência de meios para reforçar o seu peso político. Em 2006, aquela instituição salientava a necessidade de integrar as ONGD na programação da ajuda ao desenvolvimento. Apenas no exame de 2010 o CAD registou avanços relevantes no diálogo político, através da Plataforma, reconhecendo, contudo, a sua insuficiência. Nas avaliações de 2010 e 2016, concluiu que o financiamento às ONGD permanecia reduzido, mas com maior previsibilidade.
Recentemente, apesar da persistência dos constrangimentos das ONGD, o CAD passou a recomendar a concentração de recursos públicos num menor número de organizações para “reduzir custos de transacção” e “flexibilizar as relações”. Essa orientação, comum a outros países europeus, está associada à tendência de contratualização das ONGD para a implementação de programas estatais, uma abordagem de financiamento que permite maior alinhamento com as prioridades das agências de cooperação, seus procedimentos e cultura organizacional. Este processo contribui para a desvalorização dos concursos públicos onde as ONGD apresentam os seus projectos e comporta riscos de longo prazo para a diversidade e autonomia da sociedade civil, questões já levantadas nos relatórios do grupo AidWatch da Plataforma. Por outro lado, tende a criar organizações não-governamentais “multinacionais” que actuam de modo concorrencial em relação à sociedade civil dos países com os quais se “coopera”, colocando em causa princípios internacionalmente acordados como o do fortalecimento das instituições nacionais.
Se as ONG representam a possibilidade de Estados e instituições multilaterais não serem os únicos intervenientes nos debates internacionais sobre direitos humanos, ambiente e clima, desigualdade e distribuição de recursos ou modelos de desenvolvimento, o seu efectivo reconhecimento é determinante para a existência, e subsistência, de espaços de participação dos cidadãos em processos decisórios que ocorrem na intersecção entre espaço nacional e internacional. No caso português, os riscos de redução do espaço das ONGD decorrentes de políticas de financiamento, mas também da ausência de uma política de diálogo com procedimentos de auscultação, discussão e feedback (apesar da existência do Fórum da Cooperação) são particularmente relevantes se considerarmos o lento e limitado reconhecimento como actores de pleno direito na cooperação para o desenvolvimento. Importa assim perguntar, que princípios sustentam a abordagem do Estado à relação com as ONGD? Quais as consequências das políticas estatais para a diversidade, criatividade e autonomia das ONGD e para as oportunidades de participação cívica dos portugueses nos debates nacionais e internacionais?
Esse contexto, desafiador para o “movimento das ONGD”, coloca a premência de construção de lugares de discussão e alianças dentro e fora do sector, de mobilização de recursos, e de construção de agendas em torno de temas-chave. Como as ONGD portuguesas entendem hoje o seu papel na cooperação? Quais consideram ser questões fundamentais do sector? Que estratégias e alianças para promover a participação dos cidadãos organizados no debate das relações internacionais? No futuro, as respostas a estas perguntas terão efeitos na qualidade da vida cívica em Portugal, nomeadamente na redução das oportunidades e capacidades para pensar, discutir, propor, e fazer parte dos debates sobre temas que parecem distantes, e que aqueles que procuram torná-los mais próximos sejam cada vez menos, com vozes cada vez mais iguais.
Sector Privado: Sector privado e a nova finança para o Desenvolvimento
O sistema internacional de Cooperação para o Desenvolvimento encontra-se actualmente num período de transformação. Fala-se de um futuro “pós- APD” (Ajuda Pública para o Desenvolvimento). Este debate centra-se em quatro dimensões centrais que têm contribuído para uma erosão da importância da APD dentro da arena da cooperação para o desenvolvimento: (1) a proliferação e diversificação de actores e (2) de fontes de financiamento para o desenvolvimento, (3) o surgimento de novas abordagens regulatórias e (4) o aumento da partilha de conhecimento e da tecnologia para o desenvolvimento.
O 4º Fórum de Alto Nível de Busan sobre a Eficácia da Ajuda ao Desenvolvimento, em 2011, veio estabelecer um enquadramento para a Cooperação para o Desenvolvimento que inclui uma multiplicidade de actores e reiterando a ideia de que a APD, embora essencial, constitui unicamente um dos elementos do sistema de Cooperação para o Desenvolvimento. Em 2015, a Conferência Internacional sobre o Financiamento para o Desenvolvimento reafirma o papel do sector privado como um importante parceiro e o potencial da APD como catalisadora de outros fluxos de investimento públicos e privados. Esta visão e narrativa “para além da APD” (beyond aid), que se tem incrustado nos discursos políticos de grande parte dos países da OCDE (incluindo Portugal), tem sido muito criticada, sobretudo pela sociedade civil, uma vez que dilui o papel da APD enquanto instrumento financeiro, subordinando-o a outros interesses (nacionais do país doador e empresariais) e objectivos que não necessariamente a redução da pobreza e das desigualdades a nível internacional.
O envolvimento do sector privado poderá verificar-se em âmbitos distintos. Por um lado, a actividade empresarial, a inovação e o investimento constituem importantes veículos de criação de emprego e de crescimento económico. Simultaneamente, ao sector privado reconhece-se o papel preponderante que poderá desempenhar através da alteração das suas práticas para padrões de consumo e de produção mais responsáveis e sustentáveis. Neste contexto, as Instituições de Financiamento para o Desenvolvimento (IFD), nacionais ou internacionais, são desenhadas para apoiar a actividade do sector privado em países em desenvolvimento. São, por tendência, maioritariamente detidas por governos e capitalizadas através de fundos de desenvolvimento nacionais ou internacionais ou beneficiam de garantias governamentais, o que aumenta a sua credibilidade, permitindo-lhes reunir quantias de capital consideráveis nos mercados internacionais e disponibilizar financiamento em termos muito competitivos. Estas instituições financiam projectos do sector privado através de participações em capital, empréstimos a longo-prazo e garantias. A possibilidade de utilização da APD para alavancar investimento privado terá, forçosamente, que se reger por um conjunto de princípios – como o impacto quantificável sobre o desenvolvimento, a adicionalidade, a neutralidade, o interesse comum, o cofinanciamento e o respeito pelas normais sociais, ambientais e orçamentais – que permitam garantir que o apoio ao sector privado contribuirá para o Desenvolvimento.
No que diz respeito ao caso português, o primeiro documento de orientação estratégica da cooperação portuguesa é elaborado em 1999, a que se sucede um segundo documento estratégico, em 2006, e um terceiro, em 2014. A Visão Estratégica de 2006 faz referência às parcerias público-privadas e à criação de uma nova instituição financeira portuguesa que possa apoiar o investimento do sector privado português nos países parceiros. Este objectivo vai materializar-se, em 2007, através da criação da SOFID (Sociedade para o Financiamento e o Desenvolvimento), que consiste, actualmente, na única IFD portuguesa reconhecida como tal a nível europeu. Dez anos volvidos desde a sua criação é pouco claro qual tem sido o contributo da SOFID neste domínio. Numa declaração feita em Dezembro de 2018 o Secretário de Estado Adjunto, do Tesouro e das Finanças, Ricardo Félix Mourinho, aludiu aos esforços empreendidos pelo governo para reforçar a actuação da SOFID no campo da cooperação para o desenvolvimento, tendo duplicado o seu capital social, reservando, no âmbito do Compacto Lusófono lançado no mesmo ano, 400 milhões de euros para garantias a projectos com o Banco Africano para o Desenvolvimento (BAD) e expressado a intenção de aumentar as linhas de financiamento a vários países africanos de língua oficial portuguesa.
Apesar do reposicionamento estratégico da SOFID, a verdade é que, na prática, os resultados são ainda pouco tangíveis. O Conceito Estratégico português de 2014 atribui um lugar central ao sector privado como parceiro na cooperação para o desenvolvimento. No entanto, na ausência de um plano de implementação concreto do conceito estratégico de 2014, com metas, indicadores e divisão de trabalho e mecanismos de acompanhamento e avaliação, este documento terá sérias dificuldades de operacionalização e materialização. Também uma iniciativa suscitada nessa altura, de diálogo entre responsáveis da Plataforma Portuguesa das ONGD e a associação empresarial ELO não parece ter tido resultados de monta até ao momento.
Os responsáveis políticos portugueses da área têm enunciado orientações que procuram acompanhar estas mudanças na política de cooperação europeia e dos organismos internacionais. Em 2016, a Secretária de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação reiterou que a formulação de um novo modelo para a cooperação português terá que apostar “numa lógica de cofinanciamento nacional, europeu e internacional, público e privado” e interessar “os agentes económicos, o mundo académico, a sociedade civil”. No entanto, em Portugal, o discurso político não parece, por enquanto, estar assente numa reflexão consistente sobre quais os objectivos que se pretendem atingir quando se fala da promoção de sinergias entre o sector público e o privado. A estratégia seguida centrar-se-á no desenvolvimento do sector privado nos países parceiros? Na participação do sector privado português enquanto prestador de serviços, fornecedor de equipamentos e de infraestruturas? No financiamento privado ao desenvolvimento? Na promoção de práticas empresariais mais responsáveis a nível social e ambiental ao longo da cadeia de valor das empresas portuguesas nos países em desenvolvimento? São perguntas que continuam sem respostas.
Conhecimento: Investigação e conhecimento
Em 1974, num tempo marcado pelo processo negocial da descolonização, as primeiras entidades estatais criadas com o propósito de definir e implementar políticas de cooperação com os países africanos de língua portuguesa, definiram o ensino superior e a ciência como sectores-chave. A disponibilização de bolsas de estudo, a recepção de quadros africanos em processos formativos ligados à governação, e o envio de cooperantes portugueses para trabalhar nas administrações públicas africanas, a “assistência técnica”, estiveram entre as primeiras, sendo das mais duradouras, práticas de cooperação. Simultaneamente, universidades e centros de investigação portugueses foram sendo chamados a realizar estudos sobre “temas associados ao desenvolvimento” nos PALOP. A centralidade então atribuída ao eixo educação / ciência / assistência técnica não pode ser dissociada da política de valorização geoestratégica da língua portuguesa como instrumento de influência, considerada elemento-chave das relações pós-coloniais pela generalidade dos governos portugueses, e dos modelos de pensar/fazer cooperação internacional dominantes na década de 1960/1970, articulados pelas ideias de “estágios de desenvolvimento” e “transferência de conhecimento”. A transformação dos “paradigmas da cooperação” no final do século XX e no início do século XXI, a crítica aos modelos de “ajuda”, aos seus resultados e conceitos fundadores, a diversificação dos intervenientes, e as necessidades de especialização, colocam a investigação/educação/ informação no centro do debate, que inclui hoje a própria ideia de desenvolvimento.
A participação de Portugal na comunidade internacional, incluindo no sistema de cooperação para o desenvolvimento, transformar-se-ia após a ditadura, com a mudança nas relações com as Nações Unidas, a adesão à Comunidade Europeia (1986) e, já na década de 1990, o regresso ao Comité de Ajuda ao Desenvolvimento da OCDE. A diversificação de agentes intervenientes no sector (ONG, autarquias, consultoras) contribuiriam para o incremento do interesse de académicos, técnicos e estudantes portugueses por domínios da política internacional e da cooperação.
A partir dos anos 1980, assistiu-se à criação de cursos de Relações Internacionais, com importante procura, a par de cursos de graduação e pós-graduação em Cooperação para o Desenvolvimento, dando origem a um corpo de trabalhos, de licenciatura, mestrado e doutoramento sobre áreas diversas da política externa. A cooperação foi sendo abordada noutras ciências sociais, a partir de questões como “globalização”, “desenvolvimento económico”, “instituições internacionais”. Foram fundados centros de investigação que incluem nas suas linhas de pesquisa, o “desenvolvimento internacional” a partir de tradições teóricas distintas. Para além do ensino/investigação, as universidades portuguesas têm actuado em programas de cooperação com suas congéneres de outros países, e na produção de estudos ou avaliações. Ao longo das últimas décadas, a criação de centros de investigação nas universidades africanas e a sua integração em projectos e redes internacionais de pesquisa tem contribuído para o questionamento epistemológico, conceptual e das relações de poder na construção de conhecimento, também sobre o “desenvolvimento”.
Em Portugal, outros intervenientes têm vindo a produzir estudos e pesquisas, as instituições estatais, ONG, think thanks e algumas consultoras privadas. A par das universidades, que formam os intervenientes, também aqueles promovem espaços formativos (não formais), geralmente articulados com práticas concretas. O panorama de produção de investigação e de formação especializada naquela área apresenta-se assim diverso, e difuso, num contexto em que os espaços de diálogo são limitados. De salientar que nos últimos anos, o Camões, I.P. tem disponibilizado uma linha de financiamento para “seminários e investigação” que constitui uma oportunidade para actores diversos trabalharem em conjunto sobre temáticas associadas ao sector, apesar das limitações de recursos financeiros. Todavia, a ligação entre investigação, diálogo, formulação e avaliação de políticas permanece frágil.
Importa então questionar, de que modo a formação superior e a investigação produzida em Portugal sobre “cooperação para o desenvolvimento” tem contribuído para responder aos desafios que se colocam no sector? Que temas têm sido trabalhados e que lacunas persistem? Qual o papel dos diversos intervenientes no questionamento de representações simplificadas da “cooperação para o desenvolvimento” que limitam o debate público a perspetivas assistencialistas / securitárias, ou de diplomacia económica, e das visões estereotipadas e redutoras do “Outro”? De que modo a política de cooperação no eixo formação / conhecimento integra as universidades e académicos dos países parceiros nos processos de pesquisa, em todas as suas dimensões (conceptual, epistemológica, metodológica) e fases, (desde a definição das questões de pesquisa à publicação dos resultados)?
Opinião Pública: Opinião pública e comunicação
Partimos do pressuposto que a preocupação com a formação da opinião pública, por parte do campo alargado da cooperação para o desenvolvimento, tem por objectivo a “aprendizagem do mundo” (P. Freire, 1972), ou seja, construir uma visão de mundo mais ampla e aprofundada que a limitada às nossas fronteiras ou às camadas superficiais da realidade, e a partir daí uma base de apoio alargada à nossa intervenção, como país e cidadãos, no desenvolvimento e na cooperação. Do mais recente Euro Barómetro sobre “Cidadãos Europeus e Cooperação para o Desenvolvimento” (2018) destacamos dois resultados sobre Portugal, para ponto de partida para a abordagem necessariamente parcelar que aqui fazemos. A primeira tem a ver com motivações: 87% dos inquiridos em Portugal (uma das percentagens mais altas da UE) consideram que se trata de uma obrigação moral; o segundo resultado é o de que a maior fonte de informação sobre a cooperação para o desenvolvimento é a televisão (73%), ou seja, uma informação que por definição é instantânea, assente em imagens, e cada vez mais misturando informação e entretenimento, expressão da “sociedade do espectáculo” (G. Debord, 1972).
Neste contexto, duas preocupações ocorrem-nos: a primeira tem a ver com a “fragilidade” das motivações morais, que, sendo uma base de partida muito positiva em tempo de individualismo e interesses nacionais, tem o risco de reforçar atitudes paternalistas e geradoras de desconfiança sobre os resultados da cooperação (“Understanding UK public attitudes to aid and development”, IPPR e ODI, 2012) e centrar o apoio privado em iniciativas do tipo assistencialista.
A segunda preocupação tem a ver com o peso das imagens (televisivas ou fotográficas) na construção das Imagens do (não) desenvolvimento, relegando para plano muito inferior outros meios que poderiam fornecer leituras mais espessas, consistentes, suscitando reflexão e motivação. Tal é particularmente imperioso numa fase da nossa vida em sociedade / nação / mundo em que cada vez mais a intermediação é feita por profissionais outros que não os jornalistas, nomeadamente por profissionais do entretenimento.
No seu ensaio “Ensaios sobre a Fotografia”(ed. portuguesa 2012), S. Sontag refere a contradição existente de “se na maneira moderna de saber, tem que haver imagens para que uma coisa se torne real”, o inverso – ou seja – tudo o que nos chega sob a forma de imagens, obtidas através de uma câmara, adquire automaticamente o estatuto de “real” e, por analogia, passa à categoria de “verdade”. E este nosso “real” inclui os dois lados de um espelho imóvel: “nós” – altruístas, conhecedores, indispensáveis, e os “outros” – frágeis, necessitadas, dependentes.
E se é verdade que a Cooperação Portuguesa tem apoiado, de forma regular, iniciativas consistentes para a construção da opinião pública, como o apoio a projectos da iniciativa de ONGD no âmbito de uma Estratégia Nacional de Educação para o Desenvolvimento, é também verdade que as iniciativas próprias, ou de outros actores, são episódicas, por vezes contraditórias e com pendor utilitarista – citemos coisas tão díspares como suplementos pagos em jornais, uma revista institucional de pouca dura, edições de Dias do Desenvolvimento (positivas, mas rapidamente abandonadas), um sítio oficial de fragmentos noticiosos sobre língua e cooperação, convites a jornalistas para viagens oficiais e/ou para noticiar os “nossos projectos”. Se este panorama é verdade em relação ao Estado, não deixa também de o ser em relação a outros intervenientes, onde são escassas as iniciativas de qualidade, com a colaboração de profissionais mais atentos, sob a forma de edições, exposições, filmes, criações jornalísticas.
Torna-se por isso muito evidente a ausência de uma visão partilhada sobre formação de opinião pública, e, nesse quadro, de uma estratégia de comunicação que promova valores, princípios éticos, que defina intermediários privilegiados e formas de relacionamento, o papel dos meios públicos de comunicação social, identifique as questões críticas actuais (o estudo realizado pela Plataforma de ONGD e a Universidade de Aveiro em 2005 continua a ser o único, apesar de terem surgido no âmbito da academia e de uma ou outra ONGD iniciativas de investigação e debate, que podem contribuir para uma reflexão estratégica).
Neste quadro, sinalizemos algumas questões para debate e opções políticas futuras: Como vemos o papel dos jornalistas e as fronteiras de relações colaborativas? Qual o papel do serviço público de televisão, incluindo da RTP África? Em temas com riscos tão evidentes de imagens desajustadas, quais os critérios para a escolha de mediadores? Quais os referenciais que devem balizar as iniciativas a promover/apoiar? Qual o lugar das pessoas e instituições dos países com quem cooperamos, em respeito pela sua voz e dignidade? Não será de repensar a abordagem dominante de “Educação para o Desenvolvimento”, tão centrada na vertente ensino, numa estratégia mais politicamente assumida de suscitar a “aprendizagem do mundo” promotora da participação individual e colectiva?