Do embedded militar ao embedded humanitário – o Jornalismo actual e as parcerias no terreno de reportagem

Ana Filipa Oliveira

Trabalha na ACEP, desde 2009, onde desenvolve projectos na área
da comunicação, advocacia e direitos humanos. É responsável pela elaboração dos recentes relatórios AidWatch, em Portugal. Mestre em Ciência Política e Relações Internacionais pela Universidade Nova de Lisboa, é licenciada em Jornalismo pela Universidade de Coimbra.

“O “modelo de negócio” do jornalismo está em declínio (há menos leitores, menos receitas com publicidade, maior dispersão das audiências) e os jornalistas estão cada vez mais pressionados e “amarrados” à agenda do dia-a-dia, sobrando-lhes pouco espaço para se dedicarem a temas que requerem tempo e recursos financeiros, como são os temas internacionais.”

No Hotel Babilónia, um livro de memórias e de histórias de conflitos e acontecimentos marcantes do século XX testemunhados por Carlos Cáceres Monteiro (1948-2006), o jornalista explica o quotidiano dos repórteres que cobriam a Guerra do Vietname: circulavam livremente na frente de batalha, recolhiam depoimentos de ambos os lados do conflito e conviviam no sumptuoso Hotel Rex em Ho Chi Minh, nos fins de tarde. Estávamos na era dos correspondentes internacionais, que permaneciam largos meses no terreno de reportagem e não eram percepcionados (até certo ponto) como ameaça ao esforço de guerra.

À medida que as televisões, os jornais e a rádio mostravam as mortes e a deriva do exército norte-americano face à resistência vietcong no terreno, a opinião pública saía à rua por todo o mundo a exigir o fim do conflito. A intensificação dos protestos, nomeadamente após a Ofensiva de Tet (1968), colocou a guerra sob um intenso escrutínio mediático difícil de controlar. Este conflito representou um ponto de viragem na cobertura jornalística de conflitos, porque, para além de ser a primeira grande guerra  televisionada, foi também a mais longa do século XX (quase 20 anos). Além disso, os jornalistas podiam movimentar-se sem estarem sujeitos a protocolos oficiais, uma vez que o conflito não foi declarado oficialmente. Finda a guerra, a experiência (traumática) do Vietname determinou a urgência de definir uma estratégia política para enquadrar os jornalistas em conflitos futuros.

Na Guerra do Golfo de 1991, por exemplo, os EUA ensaiaram uma abordagem aos media, designada de pool, em que grupos de cerca de 50 jornalistas eram previamente seleccionados e escoltados por militares para cobrir determinadas operações militares e para disponibilizar posteriormente informação aos colegas de todo o mundo que não tinham integrado a pool. Uma forma de cobertura que viria a ser quase totalmente abandonada, sob forte contestação.

O 11 de Setembro e a narrativa de eixo do mal – “nós e eles” – de George W. Bush que lhe sucedeu veio colocar os media sob escrutínio e numa encruzilhada, que coincidiu com a depauperação das empresas de comunicação social e com o encerramento da maior parte das delegações locais. O correspondente e os enviados especiais passaram a ser espécies ameaçadas do jornalismo praticado na Guerra do Vietname e noutras guerras anteriores e o recurso a freelancers uma forma de assegurar, em muitos casos, a cobertura de temas internacionais.

A estes factores, acrescem outros não menos importantes: o mensageiro passou a ser um dos alvos preferenciais das guerras do século XXI, informais por natureza, uma vez que não contrapõem um exército a outro e, por isso, a circulação é particularmente sinuosa e perigosa em países como o Afeganistão, Síria ou Iraque. É neste contexto que o jornalismo embedded com colunas militares se torna uma das formas preferenciais de cobrir os principais conflitos do nosso tempo – é mais económico (é assegurado o transporte, estadia e alimentação aos jornalistas) e, acima de tudo, mais seguro do que a cobertura unilateral. A utilização exaustiva do jornalismo embedded no Afeganistão fez com que o país ganhasse o cognome de Embedistan, entre a comunidade jornalística internacional.

No jornalismo embedded, o repórter integra as unidades militares (pode envergar o uniforme militar) e acompanhá-las na frente de batalha para aí fazer cobertura, muitas vezes condicionada, de forma a não revelar informação sensível a que poderá ter acesso. Embora seja amplamente utilizada, esta modalidade levanta naturalmente questões éticas e deontológicas aos jornalistas,  nomeadamente no que diz respeito à sua independência, ao grau de decisão sobre os aspectos mais relevantes a relatar e à necessidade – imperiosa no jornalismo – do contraditório, dando voz ao outro lado.

É importante, porém, não esquecer que a cobertura internacional, sobretudo em cenários de conflito ou de violência extrema, é hoje em dia mais perigosa, na medida em que o jornalista é percepcionado como um alvo a abater e um instrumento de propaganda. Basta recordar o caso dos jornalistas James Foley e Steven Sotloff, capturados pelo Estado Islâmico na Síria e decapitados numa execução filmada e disseminada pelos seus militantes. De acordo com o Committee to Protect Journalists, desde 2000, morreram 1.025 jornalistas em todo o mundo, com a Guerra da Síria na liderança, mas também países como o Iraque, o Afeganistão e o México. Para além da fragilidade física, as condições económicas a que as redacções e, sobretudo, os jornalistas freelancers estão sujeitos, muitas vezes, impele-os a utilizarem os meios ao seu dispor para fazer reportagem, recorrendo ao embedded militar como forma de aceder a terrenos que, de outra forma, dificilmente teriam acesso.

Podemos falar de um jornalismo embedded humanitário?

“Há hoje muito menos recursos para pagar tempo e para pagar um sentido de fidelidade e de dignidade. Quando nós tentamos resolver isso como repórteres ou como editores ou directores de jornais – e isso tem sido recorrente aqui em Portugal – com recurso a boleias humanitárias (…), qual é o risco de estarmos aqui numa espécie de embedded circunstancial de que ninguém fala e de que, em primeiro lugar, nenhum jornalista questiona, e que é uma espécie de humanitarian embedded”?

PEDRO ROSA MENDES, no debate Media, Cidadania e Desenvolvimento, nos Dias do Desenvolvimento 2010 (1)

A primeira vez que ouvi a expressão de jornalismo embedded humanitário foi num debate promovido pela ACEP, o Centro Norte Sul do Conselho da Europa e o Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento, nos Dias de Desenvolvimento de 2010, no qual o jornalista e escritor Pedro Rosa Mendes questionava se, em termos de deontologia profissional, o embedded militar e o embedded humanitário não seriam a mesma coisa, perante a crescente utilização desta abordagem para fazer reportagem internacional. A par da utilização do embedded militar para cobrir conflitos ou missões militares de paz, diversas organizações internacionais e ONG têm promovido a integração de jornalistas nas suas missões de terreno – seja em tempos de paz, seja em situações de emergência humanitária ou de conflito.

Isto acontece numa altura em que se assiste a um investimento na comunicação por parte de diversos actores que trabalham na Cooperação para o Desenvolvimento (desde as ONG, organizações internacionais, entidades públicas, fundações, entre outros), que, embora numa fase ainda embrionária no caso português, percepcionam que é importante comunicar o seu trabalho e mostrar os processos nos terrenos onde actuam. Em contraciclo, verifica se o emagrecimento progressivo das redacções, sobretudo das editorias de Internacional/Mundo, o encerramento de delegações locais (como aconteceu com a agência Lusa), e a quase-substituição da reportagem por um “jornalismo de secretária”, com recurso a conteúdos de agências internacionais, devido sobretudo a constrangimentos económicos e às alterações do modelo de negócio.

“O jornalismo sedentarizou-se. Neste contexto de múltiplos constrangimentos  – endógenos e exógenos – à prática jornalística, e sobretudo à sua função social de relatar o mundo, há várias questões a colocar: Como manter a diversidade de vozes, de histórias, nos media? Como ir ao fim da rua e ao fim do mundo? Como trazer para o nosso quotidiano os temas de Desenvolvimento?”

in Oliveira, A. F. e Faria, R., O Desenvolvimento nos Media – percepções e visões de jornalistas e profissionais da área do Desenvolvimento, ed. ACEP

Embora não seja uma abordagem totalmente nova, as viagens a convite dirigidas a jornalistas são uma forma de colocar na agenda mediática temas relacionados com o Desenvolvimento que, de outra forma, dificilmente teriam cabimento. No estudo O Desenvolvimento nos Media, diversos jornalistas entrevistados afirmaram estarem muito receptivos a viajar a convite, admitindo que são cada vez menos as oportunidades para sair da redacção e produzir conteúdos exclusivo. O “modelo de negócio” do jornalismo está em declínio (há menos leitores, menos receitas com publicidade, maior dispersão das audiências) e os jornalistas estão cada vez mais pressionados e “amarrados” à agenda do dia-a-dia, sobrando-lhes pouco espaço para se dedicarem a temas que requerem tempo e recursos financeiros, como são os temas internacionais.

“Quanto mais diversidade, mais mundo e mais histórias forem visibilizadas e mediatizadas, mais impermeáveis e menos vulneráveis serão as sociedades a discursos de ódio, ao populismo e ao provincianismo que surgem como reacção ao desconhecimento”

Os convites a jornalistas para cobrir temas internacionais, por exemplo, nos países de língua portuguesa, que são o terreno de actuação da maior parte das organizações de Cooperação para o Desenvolvimento, são uma oportunidade para colmatar a quase ausência de temas relacionados com o Desenvolvimento nos media portugueses. Porém, admitem os jornalistas consultados para o estudo (Oliveira e Faria, 2016), esta relação pode ter consequências na qualidade informativa, uma vez que os jornalistas vão ver uma determinada realidade, muitas vezes, condicionada pelas próprias organizações que endereçam o convite.

A literatura internacional disponível sobre esta questão refere a necessidade de discutir de forma mais aberta e transparente estas colaborações, de forma a calibrar a cooperação entre ambos os campos e não minar a sua independência e integridade, uma vez que são uma tendência que se tem vindo a afirmar cada vez mais. Num artigo de opinião sobre a experiência de trabalho do International Crisis Group com jornalistas, Kimbely Abbott (antiga directora de comunicação do ICG e ela própria jornalista) refere que a colaboração entre ONG e jornalistas, se bem discutida e respeitando as missões naturalmente distintas dos dois lados, pode ser muito importante para produzir reportagem internacional. Não vivemos num tempo em que existem delegações locais e jornalistas com tempo, refere Abbott (2019), e por isso esta colaboração pode ajudar a preencher “o vazio da reportagem internacional”. Além da possibilidade de utilizar as ONG como fontes que conhecem o terreno, as pessoas e os processos em curso (substituindo assim a função de fixer dos jornalistas), estas organizações muitas vezes facultam ainda estadia, segurança e todo o restante apoio logístico necessário à realização de reportagem (Are, 2018), à semelhança do que acontece nas situações de embedment militar.

A grande maioria dos meios de comunicação social (portugueses, mas não só) recorrem a esta abordagem para fazer reportagem e há já vários órgãos que adoptaram mecanismo de defesa da integridade e da deontologia jornalística. Na última edição da International Development Summer Course, que decorreu em Lisboa no final de Maio de 2019, questionei a jornalista responsável pela editoria de Desenvolvimento Planeta Futuro do jornal espanhol El País sobre a forma como se relacionavam com as organizações e lidavam com os convites para fazer reportagem. Lola Huete Machado referiu que o jornal aceita a maior parte dos convites, após uma análise do valor noticioso dos mesmos, e que os jornalistas vão para o terreno sempre uns dias antes ou depois da período proposto pelos organizadores da viagem, de forma a fazerem outros contactos e outros trabalhos. O jornal entende, assim, estes convites como complementares ao seu trabalho de reportagem internacional.

No projecto Aquele Outro Mundo que é o Mundo, discutimos com jornalistas e profissionais da área da Cooperação para o Desenvolvimento esta relação e as “áreas cinzentas” da colaboração no terreno, e com base nas entrevistas, inquéritos e encontros realizados, elaborámos os Referenciais Éticos para as Relações entre os Jornalistas e os Profissionais da área da Cooperação para o Desenvolvimento. Há ainda muitos equívocos e incompreensões de parte a parte sobre as missões de cada um e os objectivos da colaboração. No documento, refere-se a necessidade de “encontrar um terreno de entendimento comum, no qual existe uma separação clara entre aquilo que é a comunicação de processos de Desenvolvimento (…) e aquilo que é o marketing institucional de projectos ou iniciativas específicas desenvolvidas pelas organizações”.

Mais do que ver nas fragilidades do jornalismo actual uma oportunidade para fazer passar a sua mensagem, as organizações deste sector devem estar receptivas a um diálogo e centrar a sua actuação na necessidade imperiosa de colocar os temas do Desenvolvimento internacional na agenda mediática e na discussão pública e política. Quanto mais diversidade, mais mundo e mais histórias forem visibilizadas e mediatizadas, mais impermeáveis e menos vulneráveis serão as sociedades a discursos de ódio, ao populismo e ao provincianismo que surgem como reacção ao desconhecimento.

 

Referências

Abbott, K. (2009), “Working together, NGOs and journalists can create stronger international reporting”, in International Crisis Group Op-Ed, disponível em https://www.crisisgroup.org/global/working-together-ngos-and-journalists-can-create-stronger-international-reporting

Are, C. (2018), “Close ties: the relationship between NGOs and journalism in humanitarian news and picture generation”, in Humanitarian News Research Network, disponível em https://blogs.city.ac.uk/humnews/2018/06/05/close-ties-the-relationship-between-ngos-and-journalism-in-humanitarian-news-and-picture-generation/

Cáceres Monteiro, C. (2004), Hotel Babilónia, Verbo

Green, A. (2016), “The thorny ethics of embedding with do-gooders”, in Columbia Journalism Review, 8 de Fevereiro de 2016, disponível em https://www.cjr.org/first_person/the_ethics_of_embedding_with_do-gooders.php

Nothias, T. (2018), “How western journalists actually write about Africa”, in Journalism Studies, 19:8

Oliveira, A. F. (2010), Media, Cidadania e Desenvolvimento – Triângulos Imperfeitos, ed. ACEP

Oliveira, A. F. (2012), Decisão Política e os Media – A presença norte-americana no Afeganistão, Dissertação de Mestrado em Ciência Política e Relações Internacionais defendida na FCSH/UNL

Wright, K. (2019), “Who’s reporting Africa now?”, in Africa is a country, disponível em https://africasacountry.com/2019/02/whos-reporting-africa-now

Outros recursos
Committee to Protect Journalists – www.cpj.org

(1) Debate transcrito in Media, Cidadania e Desenvolvimento – Triângulos Imperfeitos, coord. Ana Filipa Oliveira, 2010, ed. ACEP