Racismo Estrutural e Apropriação Cultural

Rui Santos

É CEO da consultora CESO, professor convidado na Maastricht School of Management e Colégio da Europa, formador do Conselho da Europa em gestão de projectos de promoção dos Direitos Humanos, autor de Gestão do Ciclo de Projectos de Desenvolvimento e co-autor do Manual de Procurement Internacional, trabalha em cooperação para o desenvolvimento há mais de 25 anos, de África à Europa Central e de Leste, passando pela América Latina e Caraíbas.

“A ignorância sobre as outras culturas e hábitos alimenta o medo e o medo, esse, abre as portas da violência. A linha que separa a curiosidade (…) da exploração e dominação (…) nem sempre é fácil de definir. Mas tem um princípio fundamental: igualdade. Igualdade na capacidade de influenciar e ser influenciado.”

O fenómeno da apropriação cultural transformou-se num gerador de publicações virais, cancelamentos instantâneos e outras indignações que tais. Todavia, o tema da apropriação cultural é cheio de subtilezas que dificilmente são redutíveis ao número máximo de caracteres de um tweet ou à duração de um Tik-Tok.

Há um ano e meio atrás, Portugal “indignava-se” pela apropriação da camisola poveira pela estilista Tory Burch. Aliás, a senhora apropriou-se da dita camisola e “atribui-a” ao México. Perante a indignação geral, a estilista, envergonhada, reconheceu o erro, pediu desculpa, não antes de ser ameaçada pelo Ministério da Cultura e pela Câmara da Póvoa com uma ação judicial para “reparação de danos”. A estilista aceitou pagar uma reparação monetária (de valor desconhecido) ao Estado Português que se comprometeu a utilizar os recursos na preservação e divulgação da centenária camisola (pela qual, de resto, nunca tinha demonstrado especial interesse).

Diria que foi a primeira vez que o tema de apropriação cultural mereceu alguma atenção em Portugal. O que não deixa de ser extraordinário num país que teima em não reconhecer o trauma colonial, glorificando e romantizando-o, e que insiste na negação do racismo que ainda prevalece na nossa sociedade. Sim, conforme descrito por Grada Kilomba no seu magnifico “Memórias da Plantação”, na sociedade Portuguesa, de entre os vários estados do racismo, estamos sempre mais próximo da negação do que da reparação. Grada Kilomba identifica diferentes tipos de racismo: estrutural (a exclusão das pessoas negras da maioria das estruturas sociais e políticas); institucional (um padrão de tratamento desigual no sistema educativo, mercado de trabalho, justiça criminal e serviços, que coloca os sujeitos brancos em vantagem); quotidiano (todo o racismo que acontece na vida quotidiana e que se revela nos discursos, no vocabulário, imagens, gestos, ações, olhares que colocam o sujeito negro na posição de “outro” em relação ao sujeito branco). Infelizmente, reconheço a presença destas três formas de racismo no nosso país.

Contudo, nos últimos anos o Estado Português tem vindo a assumir posições relevantes no reconhecimento de crimes cometidos durante o período colonial. O pedido de desculpas do primeiro-ministro pelo massacre de Wiriamu, ou o reconhecimento do terrível papel de Portugal na escravatura em plena ilha de Goré, pelo Presidente da República, constituem momentos cruciais que nos afastam colectivamente da negação. Mas não foram, nem de perto nem de longe, momentos de consenso nacional.

E sim, apropriação cultural e racismo mantêm uma ligação umbilical. O antropólogo Rodney William, autor do livro, “Apropriação Cultural”, define o conceito como “… uma estratégia de dominação que visa apagar a potência de grupos histórica e sistematicamente inferiorizados, esvaziando de significados todas as suas produções, como forma de promover seu genocídio simbólico…”. Portanto, a apropriação desses símbolos colabora para a manutenção do racismo estrutural na nossa sociedade e para a continuidade de diversos estereótipos sobre determinadas culturas. Atentemos na expressão “Descobrimentos” que coloca o centro do universo da Europa e que apaga a relevância histórica das culturas que habitavam as “terras descobertas”, esvaziando de significado as suas tradições, histórias e hábitos. O grupo hegemónico apropria-se de vestuários, objectos e linguagens dos grupos marginalizados, desinvestindo-os do seu significado sagrado ou político e substituindo-os por outros significados, geralmente ligados à estética e ao entretenimento, promovendo o esvaziamento e colonização desses elementos sem, em contrapartida, gerar benefícios ao grupo que produziu a cultura.

E não faltam exemplos desta “superficialização” da cultura, história e tradições de grupos marginalizados. Quem pratica desporto conhecerá, certamente, a linha de vestuário “Kalenji”. Mas quantos saberão que os Kalenjin (sim, a marca em causa suprimiu o n final) são uma comunidade originária do Grande Vale do Rift, no Quénia? Quantos saberão que 13 dos 20 melhores tempos de sempre da maratona pertencem a atletas originários desta comunidade? E quantas teorias já não ouvimos sobre as condições “físicas inatas” e os “benefícios da altitude” que concedem aos atletas Quenianos vantagem sobre os restantes? E quantas vezes não enaltecemos o treino científico, a disciplina, espírito de sacrifício que conduziu, por exemplo, Cristiano Ronaldo ao sucesso desportivo? Para muitos, Kalenjin é sinónimo de sapatilhas vendidas numa grande superfície comercial. E contudo, por detrás encontra-se uma comunidade que pouco ou nada beneficiou com a utilização do seu nome. Para muitos, o sucesso de uns é justificado pelas vantagens do meio e da biologia, enquanto outros percorrem os trilhos da ciência, método, disciplina para lá chegarem.

Quéchua é uma marca conhecida por todos os amantes da vida ao ar livre. Tendas, mochilas, botas, toda uma parafernália de produtos transporta a designação Quéchua. Mas Quéchuas são os povos aborígenes da América do Sul que partilham as línguas Quéchuas e se distribuem pelo Peru, Equador, Bolívia, Chile, Colômbia e Argentina. Constituem uma cultura rica e diversa, marcada por perseguições e violência étnica. Durante o conflito que opôs o Governo do Peru aos guerrilheiros do Sendero Luminoso, três quartos das 70 mil vítimas era de origem Quéchua. Entre 1996 e 2001 o governo de Alberto Fujimori implementou uma política de esterilização forçada que teve como vítimas, quase exclusivamente, mulheres Quéchua e Aymara. Acrescentemos à violência psicológica as condições desumanas em que foram realizadas as  esterilizações por médicos pressionados por objectivos irrealistas definidos pelo Governo Central e temos um cenário de verdadeiro horror. E, todavia, a maioria da população europeia está convencida que Quéchua é uma marca de tendas.

Esta ligeireza na apropriação da história e cultura, a banalização de hábitos e costumes e sua transformação em produtos e veículos de entretimento adiciona violência e discriminação a um passado tantas vezes já marcado por segregação e sofrimento. Esvazia a cultura do outro, subjuga-a, infantilizando-a, reduzida a estética e consumo.

Mas a apropriação cultural é uma questão complexa. Elvis Presley cresceu em Tupelo, Mississipi, bairro pobre e predominantemente afro-americano de Memphis. Foi profundamente influenciado pelos espirituais negros das igrejas que frequentou na sua infância. Na adolescência ouvia as rádios locais em que B.B King e Rufus Thomas actuavam ao vivo. O seu estilo único, inconfundível resulta da apropriação de múltiplas referências culturais que vão desde o Godpel à música country. Sendo certo que o seu sucesso na América segregacionista dos anos 50 e 60 reflete o “privilégio branco” de poder cantar e dançar o que a muitos outros era vedado, não deixa de ser verdade que contribuiu para o reconhecimento do carácter excepcional da música e cultura afro-americana do Sul dos Estados Unidos.

A “base de apoio” da subcultura do heavy metal tem as suas origens na working class, branca e masculina, tradicionalmente apelidada de White Trash. Quem já foi a um concerto de heavy metal deparou-se com uma plateia esmagadoramente branca. Mas no início dos anos 90, o rapper Ice-T decidiu percorrer território virgem e criar uma banda de fusão entre rap e heavy metal, cujos integrantes era maioritariamente afro-americanos. O resultado foi (e é) absolutamente explosivo, influenciou profundamente o Nu Metal e vários sub-géneros que prosperaram à sombra dos caminhos (difíceis) trilhados pelos BodyCount.

 

Orlando Garcia

Esta ligeireza na apropriação da história e cultura, a banalização de hábitos e costumes e sua transformação em produtos e veículos de entretimento adiciona violência e discriminação a um passado tantas vezes já marcado por segregação e sofrimento.

É indiscutível o contributo de Elvis Presley e dos BodyCount na eliminação de barreiras e estereótipos. E isso só foi possível porque na base esteve a genuína curiosidade por  culturas ou subculturas diferentes. E essa mesma curiosidade abriu portas e esbateu diferenças.

Vivemos numa era em que o espaço digital é patrulhado por milícias ávidas do sangue da polémica. A apropriação cultural tornou-se arma de arremesso, de expressão de ódio por figuras ou grupos que ocupam o espaço público. Tanto pode ser o “cancelamento” de um comediante como a sanção pública de umas meras tranças. E aqui radica a complexidade do tema da apropriação cultural que, por isso mesmo, é pouco dado às simplificações exigidas pelas redes sociais. O interesse, a curiosidade pela cultura, hábitos e história do outro são saudáveis e desejáveis. Sem eles, acantonamo-nos no nosso grupo, tememos a diferença e reagimos, na melhor das hipóteses, com indiferença. Na pior das hipóteses, a ignorância sobre as outras culturas e hábitos alimenta o medo e o medo, esse, abre as portas da violência.

A linha que separa a curiosidade (primeiro passo para a tolerância) da exploração e dominação (consequências da intolerância) nem sempre é fácil de definir. Mas tem um princípio fundamental: igualdade. Igualdade na capacidade de influenciar e ser influenciado. No aceso aos benefícios que resultam desta mútua influência. E a igualdade exige respeito pela cultura, hábitos e tradições. Respeito pela forma como tratamos a diferença, a aceitamos e a integramos.

E qual tem sido o contributo da cooperação para o desenvolvimento no combate ao racismo nas suas variadas formas (estrutural, institucional e quotidiano) e à apropriação cultural que tantas vezes dele deriva? Lamento, mas temos feito pouco. Demasiadamente pouco. O combate, sem quartel, ao racismo tem de constituir uma temática transversal na cooperação Portuguesa. A Estratégia da Cooperação Portuguesa 2030 define um conjunto de princípios orientadores que deverão ser integrados de forma transversal na política de cooperação a todos os níveis e considerados pilares estruturantes desta política na medida em que constituem condições determinantes para os progressos de desenvolvimento. São eles: (i) o respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais, (ii) a promoção e consolidação da paz e segurança, da democracia e do Estado de direito, (iii) a igualdade de género, o empoderamento e direitos das mulheres e raparigas, e (iv) a proteção do ambiente e o combate às alterações climáticas num quadro de promoção da sustentabilidade.

Não constituirá o racismo (em todas a suas formas) um dos maiores condicionantes do desenvolvimento? Não envolverá o desafio do desenvolvimento um esforço conjugado entre a nossa sociedade e a dos nossos parceiros no combate quotidiano ao racismo como bloqueador do desenvolvimento? Não será possível fazer mais (muito mais) para combater o racismo, seja no âmbito de projectos de cooperação nos países parceiros seja a nível da intervenção cívica na sociedade portuguesa? Não deveríamos ser mais activos no empoderamento que ataca preventivamente o racismo e na informação que o ataca correctivamente?

Compete-nos, agentes da cooperação para o desenvolvimento encarar a questão do racismo de frente, colocá-la na agenda e discuti-la. Temos especiais responsabilidades nesta matéria e devemos exercê-las sem tibiezas e receio de ferir as suscetibilidades. Apetece-me dizer que podemos ajudar a uma reflexão conjunta sobre o nosso passado, “comprar” as discussões difíceis sobre a colonização, sobre o racismo quotidiano de que são vítimas as comunidades mais frágeis e expostas da nossa sociedade. Contribuir para que a sociedade portuguesa se afaste cada vez mais da negação do seu passado colonial e se aproxime da reparação. É também nossa obrigação pugnar por políticas públicas consequentes e determinadas no combate ao racismo estrutural e institucional.

As agências internacionais de apoio ao desenvolvimento também podem e devem fazer muito mais. Começando pela valorização das competências e conhecimentos dos nossos parceiros. Basta olhar para as grelhas de avaliação de propostas submetidas a concurso internacional e ver a reduzida (e tantas vezes nula) valorização das parcerias com empresas e ONGs locais. Que razões se escondem por detrás desta desconfiança? Por que razão persistem na criação de barreiras cada vez mais complexas no acesso ao mercado, beneficiando grandes ONGs e empresas multinacionais? Perante a enormidade destas barreiras, qual poderá ser a esperança de uma jovem empresa ou ONG local de aceder ao mercado? Quem é beneficiado e quem é prejudicado por este tipo de práticas que se escondem por detrás de supostos critérios de eficiência? E já agora, não servirá esta suposta “eficiência” mais os interesses de quem financia do que os interesses de quem beneficia?

 

ACEP

O combate, sem quartel, ao racismo tem de constituir uma temática transversal na cooperação Portuguesa.

E relativamente à apropriação cultural, tantas vezes manifestação surda do racismo latente, também podemos e devemos fazer mais. É nesta matéria chocante a insensibilidade de muitos agentes da cooperação na apropriação de símbolos, tradições, histórias, de elementos culturais das comunidades com as quais é suposto cooperarmos. E que são tantas vezes utilizados como meros adereços de “comunicação e visibilidade”, despidos do seu contexto e valor simbólico, para benefício exclusivo de ONGs e empresas. E, lamentavelmente, ninguém se questiona por um instante sobre a legitimidade na utilização destes elementos. E que dizer da forma despudorada como alguns colocam frente a câmaras quem não pediu para lá estar e ser exposto, tantas vezes em situação de fragilidade?

Creio que nos devemos questionar mais. Acredito que este deve ser o ponto de partida. A esmagadora maioria dos voluntários e profissionais que trabalha no nosso sector é composta por pessoas genuinamente empenhadas e solidárias. Arriscaria mesmo que o nosso sector é um dos derradeiros redutos do idealismo. Da convicção que podemos construir um mundo melhor e que podemos ter um papel a desempenhar nessa extraordinária empresa. Mas tem de existir mais espírito critico e, sinceramente, mais coragem. Confrontar as narrativas vigentes (começando desde logo pela romantização do nosso passado colonial), os detentores de poder, correndo os riscos inerentes.

De acordo com o Eurobarómetro sobre Cooperação para o Desenvolvimento, 80% dos cidadãos europeus consideram que o combate à pobreza nos países parceiros deve ser uma das principais prioridades da UE, um aumento de três pontos desde 2020. Os entrevistados em Portugal estão entre os que se mostram mais favoráveis à Ajuda ao Desenvolvimento. Quase todos (99%) os entrevistados em Portugal pensam que é importante estabelecer parcerias com países fora da UE para reduzir a pobreza em todo o mundo, um resultado inalterado em comparação com o de novembro‐ dezembro de 2020. Esta é a proporção mais elevada de qualquer Estado‐Membro e notavelmente acima da média da UE de 89%.

Este resultado reflecte o trabalho sério e comprometido dos agentes da cooperação em Portugal. Fomos nós que criámos esta imagem positiva. Que a utilizemos para transformar a sociedade portuguesa e curarmos as feridas que persistem quase meio-século depois do 25 de Abril. 50 anos é mais do que tempo.