Emergência climática: entre a necessidade da preservação e os desafios de responder ao desenvolvimento

Charlotte Karibuhoye Said

Diretora de programa da Fundação MAVA para a África Ocidental. Supervisa os projectos de conservação e as relações com os parceiros na subregião. Trabalha há 30 anos em governança de áreas protegidas e biodiversidade, financiamento durável, sustentabilidade e em programas multi-actores de conservação. É médica veterinária e é doutorada em Biologia da Conservação pela Universidade de Göttingen, na Alemanha.

João José Fernandes

Licenciado em Teologia e Humanidades (1996), concluiu o Curso de Doutoramento em “Alterações Climáticas e Políticas de Desenvolvimento Sustentável”, em setembro de 2010. É Director Executivo da Oikos – Cooperação e Desenvolvimento (ONGD), desde 2004. Entre 1994 e 2004, foi responsável pela gestão dos projectos e programas desta ONG em vários países de África e América Latina.

A emergência climática, as sucessivas crises alimentares e o açambarcamento de recursos, sobretudo por parte dos países mais ricos, exercem pressão sobre territórios preservados, pertencentes, muitos deles, a comunidades locais. A tensão do equilíbrio entre o desafio da preservação e o desenvolvimento estão em discussão nesta conversa

 

CHARLOTTE KARIBUHOYE SAID (C.K.S.)  — Neste momento, estou a trabalhar no domínio da conservação, mas não comecei por aí. Trabalhei primeiro no desenvolvimento rural na Guiné-Bissau e isso foi uma experiência muito interessante, porque nessa altura já falávamos da gestão racional dos recursos. Depois disso, passei por uma formação adicional, porque sou médica veterinária de formação. Entrei no mundo da conservação da natureza, através da gestão da fauna comunitária, sempre na Guiné-Bissau, na zona costeira, e foi depois disso que comecei a trabalhar com a Fundação internacional do Banc d’Arguin (FIBA, na Suíça). A ideia era apoiar projectos, no domínio da conservação da natureza, na zona costeira – envolvia a zona que vai da Mauritânia até à Serra Leoa. Trabalhei sobretudo sobre as áreas marinhas e costeiras, no apoio aos países para a criação de novas áreas protegidas, a questão da governança e na criação de uma rede de áreas marinhas protegidas. Foi uma experiência muito interessante, no trabalho com vários actores. Fiz depois uma transição para a Fundação MAVA, quando houve uma fusão com a Fundação FIBA.  Trabalho desde 2014 para a da Fundação MAVA, sou directora do programa ocidental, agora já no papel de financiador. Não damos apenas financiamento, porque achamos que o nosso papel deve ser de trabalhar junto, discutir, aconselhar os nossos parceiros. Neste momento, de facto estamos no último ano de intervenção desta fundação que vai fechar no fim deste ano. É uma experiência interessante, esta perspectiva de doador, porque procura responder às necessidades e prioridades dos parceiros.  O que achei interessante é que a fundação insistiu muito em pôr as pessoas juntas, para juntas trabalharem, identificarem os problemas e juntas chegarem a soluções a serem implementadas colectivamente. Tenho também trabalhado como membro voluntária da Comissão Mundial da UICN para as Áreas Protegidas, que é uma rede mundial de profissionais das áreas protegidas e estive lá durante muitos anos como ponto focal para a África Ocidental e Central.

 

JOÃO JOSÉ FERNANDES (J.J.F.) — Devo confessar que em tempos cruzei-me com o trabalho da Fundação MAVA, que apoia uma organização em Portugal, que tem uma reserva privada, na Beira Interior, e que acho muito interessante aquele desafio que está a ser feito numa zona de fraca densidade populacional. É a única reserva privada no país, num projecto de conservação da natureza e, de alguma forma, de rewilding, mas sem pôr em risco os meios de vida das comunidades.

Comecei o meu percurso a África em 1990, ainda era estudante universitário, quando interrompi os meus estudos para ir para África como voluntário. Fui numa das primeiras vagas de jovens voluntários portugueses a ir para África e fui quase por acidente; de facto, havia planeado ir para o Peru. Só retomei a minha ligação à América Latina nos anos 2000, já na Oikos. A partir dessa experiência, acompanhei sempre a realidade africana, sobretudo os países de língua oficial portuguesa (mais Angola, Moçambique e S. Tomé e Príncipe) e mantenho essa ligação, porque na Oikos, onde agora sou director executivo, temos também trabalho em África. A minha formação de base é Filosofia e Teologia e em 2010 resolvi, fruto do trabalho que a Oikos estava a fazer, entrar num programa de Doutoramento na área da Sustentabilidade e das Alterações Climáticas (foi o primeiro Doutoramento integrado em Portugal com três universidades – a Universidade Técnica, a Universidade de Lisboa e a Nova). Nunca tive tempo para terminar a tese, mas foi uma boa experiência, porque praticamente todos os doutorandos éramos profissionais há muito tempo, e queríamos aprofundar alguns temas e parar um pouco para pensar. A Oikos é uma organização de tradição do desenvolvimento, onde o desenvolvimento rural foi sempre a principal área trabalho; sobretudo a partir dos anos 2000 começámos a trabalhar muito a questão do ambiente, porque não havia ONG em Portugal (e poucas eram na Europa) que reunissem estas duas vertentes – ambiente e desenvolvimento. Há uma clara divisão entre ONG de desenvolvimento e ONG de ambiente (há inclusive plataformas diferentes – uma Plataforma para as ONGA’s e outra para as ONGD’S, o que pessoalmente sempre achei redutor e tentei sempre fazer a ponte). A Oikos, trabalhando no desenvolvimento rural, era impossível não se cruzar com questões como alterações climáticas, gestão de recursos naturais, e por isso senti essa necessidade. Fruto do trabalho da Oikos e também da ligação a algumas fundações privadas, no início dos anos 2000, comecei a interessar-me pelo trabalho do sector privado nas questões do desenvolvimento e do ambiente. Comecei pela responsabilidade social das empresas, depois pela finança ética e acabei por, antes do tempo, denunciar o que estava para acontecer no BES e no BPN. Mais tarde, desiludido pela incapacidade de fazer a mudança a partir de dentro, e do movimento da responsabilidade social das empresas se renovar, desliguei-me um pouco e voltei a ligar-me mais recentemente. Apesar de tudo, acho que numa altura em que o sector privado começa a assumir um papel importante no desenvolvimento económico – também em África -, não temos como fugir dessa questão. Por isso, achei que era necessário a partir das organizações da sociedade civil pensar como é que o sector privado pode dar o seu contributo em termos de desenvolvimento, sem deixar o nosso papel de watchdog do que se passa no terreno. Ultimamente, para além do trabalho normal da Oikos, também me tenho dedicado a um negócio social criado por esta ONG, que é o SmartFarmer, que tem a ver com o apoio a pequenos produtores em Portugal e o escoamento directo para os consumidores finais, que é uma área da economia social que me tem interessado.

Gostava de desafiar a Charlotte para falarmos de duas questões que têm hoje mais relevância e mais ligação àquilo que está a acontecer neste momento no mundo do que possa parecer. Uma primeira, obviamente fruto dos Acordos de Paris e da necessidade que é sentida de mitigação das alterações climáticas e de procurar que o planeta fique com um clima em que a temperatura não suba além dos 2º (o desejável era 1,5º, mas é uma miragem). Este desafio prende-se com o esforço por parte das organizações ligadas à conservação da natureza de encontrar soluções na área da energia (maior eficiência energética, alteração de padrões energéticos), mas também soluções de aumentar as áreas protegidas, sejam elas sistemas terrestes ou sistemas marinhos, e também alterar os padrões de consumo, tornando mais atractivo aquilo que são dietas vegetarianas. Isto tem criado algumas tensões a nível internacional, porque se quisermos aprofundar aquele que é o contributo das áreas protegidas, incluindo reservas marinhas, para a conservação da biodiversidade, para a mitigação das alterações climáticas, por via de sequestro de carbono, há um facto que não pode ser escamoteado: 40% dessas áreas que têm esse potencial são territórios de povos indígenas, e aí tem havido polémicas recentes. Uma das situações que tem gerado maior controvérsia, é uma região de florestas tropicais na bacia hidrográfica transfronteiriça do rio Congo. Nesta região, nas fronteiras entre o Congo, o Gabão e os Camarões há três áreas naturais protegidas (Dja-Odzala-Minkebe). Segundo a WWF, a área é habitada por cerca de 25.000 elefantes e 40.000 gorilas e chimpanzés, além de uma série de outras espécies, incluindo búfalos e porcos gigantes da floresta. Porém, este é um território tradicional de povos indígenas Baka (Pigmeus), seminómadas.

Tradicionalmente, os Baka são recolectores e praticam uma caça tradicional de subsistência. Ora, as estratégias de conservação, entram em conflito com este modo de vida. Além disso, os guardas-florestais públicos, com financiamento de projetos internacionais geridos pela WWF, são recrutados entre povos de origem Bantu, de tradição sedentária. Os conflitos e abusos de autoridade são frequentes, tal como os programas de relocalização dos Baka em aldeias de populações agrícolas, situadas nas imediações das estradas.  A Survival International (SI), uma ONG de defesa dos povos Indígenas, acabaria por confrontar a WWF e os seus doadores internacionais, face aos abusos sofridos pelos Baka. Esta ONG realizou uma queixa formal junto da SECO, a Agência Suíça responsável pela Monitorização da aplicação das Orientações da OCDE paras as Empresas Multinacionais. Foi a primeira vez que este mecanismo foi utilizado numa queixa contra uma Organização sem Fins Lucrativos. A Survival International acabou por desistir da queixa formal, mas veio a público com relatórios e com pressão, levando o PNUD e a UE a diminuírem o financiamento a um projecto da WWF neste território.

Esta é uma situação complexa, porque são zonas de grande relevância em termos de biodiversidade, intervencionadas com programas de conservação da Natureza, maioritariamente financiados pela Cooperação Internacional e por contrapartidas privadas de empresas com conceções para exploração de recursos naturais (exploração de minerais e extraçao de madeira).. Há ainda as grandes infraestruturas, como vias férreas e barragens no rio Djá, que atravessam o território. Temos aqui ingredientes que reforçam o clássico conflito entre populações sedentárias e seminómadas. Os Baka (pigmeus) viviam tradicionalmente da floresta, onde iam buscar proteína animal, frutos e extractos de plantas medicinais que estão a desaparecer indiscriminadamente, algumas fruto de atividades extractivas ilegais por parte das empresas que exploram as conceções. Há aqui uma série de problemas, que vão desde a esfera política, aos relacionados com o modelo de desenvolvimento, que tem transformado os seminómadas em comunidades sedentárias, mas muito pobres. Em paralelo, hoje há uma tendência em torno da economia azul e verde, que vai criar condições para que haja maiores investimentos quer em zonas portuárias e zonas marinhas, quer em termos daquilo que é a infraestruturação que atravessa áreas florestais continentais, nomeadamente de vias-férreas e barragens. Depois há ainda a crise alimentar, agora agravada por mais hotspots por causa da guerra na Ucrânia, ainda que, em meu entender, as explicações sejam muito anteriores a essa guerra, que veio apenas agravar a situação. As sucessões de crises alimentares mundiais, na última quinzena de anos, tem originado uma corrida ao açambarcamento de recursos, nomeadamente de terras, tradicionalmente pertencentes a territórios indígenas, para garantir a segurança alimentar de países com maior poder de compra, mas menor potencial agrícola. Da sua experiência, como é que acha que esta questão deve ser encarada, para sair deste círculo vicioso que é as populações que protegeram a floresta durante milénios e que hoje são muitas vezes escorraçadas da floresta, sob o lema da conservação, acabando por ser também uma “perda de biodiversidade”?

 

CHARLOTTE KARIBUHOYE SAID (C.K.S.)  — Essa é uma questão para cinco dias de conversa! É extremamente importante esse exemplo que deu e que muita gente ouviu falar. Mas não é só no Congo, esse tipo de conflito acontece em muitas partes do mundo entre aquilo que se quer atingir em termos de preservação da biodiversidade e a necessidade de ao mesmo tempo responder ao desafio do desenvolvimento durável. Aqui, na África Ocidental, nós temos trabalhado muito sobre essa questão dos saberes locais, dessas práticas tradicionais de gestão do espaço e dos recursos, e me parece que se esquece sempre que essas tentativas de querer reconverter as pessoas para mudarem o seu modo de vida e as suas práticas não funcionam. O que temos tentado praticar é promover não só o reconhecimento e respeito dos modos tradicionais de gestão e das práticas locais e tradicionais, mas também a sua integração adequada (não no sentido de as aniquilar), dando-lhes um lugar muito mais forte no sistema existente. Por exemplo, vi algumas áreas protegidas em que havia florestas sagradas, que são muito importantes para as comunidades tradicionais, onde praticam cultos e actividades religiosas, sítios onde vão também procurar comida e produtos medicinais. A questão é: como é que a área protegida vai reconhecer a existência dessas zonas sagradas, aceitar incluir e oficialmente valorizar essas práticas e também aceitar, manter e fortalecer as instituições tradicionais existentes que têm assegurado a preservação e a governança desses sítios. É um dos modelos que tenho visto em alguns países, por exemplo no Senegal ou na Guiné-Bissau. Na reserva da biosfera Bolama/Bijagós, por exemplo, há florestas e sítios sagrados para homens e para mulheres. O que se tentou fazer ali é que essas zonas foram simplesmente inventariadas, reconhecidas e oficialmente nos planos de gestão das áreas protegidas, reconhecendo-se também o papel das comunidades tradicionais que têm gerido e mantido esses espaços, esses recursos e essas formas de fazer e de viver. O João já deve ter ouvido falar muito do consentimento livre, prévio e informado; acho isso extremamente importante e infelizmente temos visto também que essas zonas tradicionalmente protegidas são ameaçadas não só por políticas nacionais de desenvolvimento, mas também por interesses económicos e financeiros que têm a ver por exemplo com alguns acordos que se assinam com concessões, com actividades de agronegócio etc. Não é uma questão muito fácil; a sua resolução passa por muitas coisas, não só ao nível do empoderamento das comunidades, mas também por questões jurídicas, porque enquanto os direitos das comunidades não forem claramente incluídas e reconhecidas num quadro jurídico dos países, também não funciona. Muitas vezes, há leis e não se cumprem, mas imagine quando não há lei nenhuma. Lembro-me de um episódio que aconteceu em Casamança, no sul do Senegal, de um caso de um chefe tradicional que queria proteger o território de pesca da sua aldeia, que tradicionalmente estava muito bem protegido. Há uma lei no Senegal, a lei de descentralização, que permite às comunidades locais decretarem zonas de proteção nos seus territórios. Uma vez entraram pescadores de uma outra zona, que foram pescar a uma zona sagrada em que nem os locais vão pescar e também com equipamentos não adequados. A população local explicou-lhes que aquela zona era sagrada. Só que, nesse preciso caso, eles tinham muita pressa, ainda não tinham adquirido nenhum reconhecimento oficial da sua área, e infelizmente não havia nenhuma base legal para fazer isso. O chefe daquela aldeia é que acabou por ser preso. Há aqui, portanto, várias dimensões a ter em conta – a dimensão jurídica, ética, claro, e uma outra coisa que por vezes a gente não se lembra é que para algumas comunidades, manter esses espaços é também uma forma de manter algum poder sobre o espaço e seus recursos e sobre o seu destino. Estou a ver muito isso aqui nessa região, nas áreas de património autóctone e comunitário, conhecidas por APACs, em que as populações decidiram mesmo criar muitas dessas zonas, porque agora há a lei que permite claramente fazer isso e o governo tem dado alguma flexibilidade e apoiado mesmo a criação dessas zonas. Esses são espaços em que as comunidades podem na realidade manter o poder de decisão, a sua identidade cultural e religiosa também está assegurada, mas sobretudo a segurança fundiária, e o futuro para os filhos. Houve no passado muitas falhas e gostei muito quando o João disse que há ainda em Portugal uma separação entre ONG de ambiente e ONG de desenvolvimento, quando se sabe que é complicado desassociar isso. Em África, em muitas zonas onde trabalhei, as áreas protegidas não são zonas isoladas, são habitadas por comunidades, por isso penso que temos de ter uma abordagem muito mais integrada e há também uma necessidade de reconhecer quem são os verdadeiros gestores desses espaços, mas tenho impressão de que há muitos progressos nesse sentido. Mas às vezes tenho receio que o discurso não se traduza na prática da mesma forma. Não basta dizer às comunidades que têm o poder e não dar os meios, os recursos e a legitimidade para exercer esse poder. Para finalizar esse ponto, há um desfasamento entre os interesses do Estado central, do ponto de vista económico e financeiro, e o interesse das populações. Actualmente na África ocidental está-se a falar muito da questão da farinha de peixe por exemplo, ou seja, do facto de grandes quantidades de pescado serem transformadas por fabricas em farinha para a alimentaçao de peixe na aquacultura. Há localmente uma escassez de peixe, no entanto alguns países por outro lado continuam a assinar acordos de pesca com países estrangeiros, tal como a União Europeia, Rússia ou China, etc. para que os seus navios industriais venham pescar na zona, enquanto os pescadores locais já não têm acesso ao peixe. Isto é um assunto sério, que vai muito para além dessas considerações dos interesses das comunidades locais.

 

JOÃO JOSÉ FERNANDES (J.J.F.) — É muito interessante isso. A Charlotte focou quatro aspectos que são muito interessantes. O primeiro tem a ver com o conhecimento tradicional. Nos anos 90, estive em S. Tomé e voltei em 2013 para uma consultoria de um grupo privado ligado ao turismo, e depois acabei por ficar mais tempo e acabei de formular uma proposta de projecto exactamente de protecção do direito tradicional e da propriedade intelectual tradicional, ligado com a biodiversidade. E foi um projecto que acabou por ser financiado e andámos a fazer inquéritos, quer do ponto de vista científico, quer do ponto de vista etnográfico, para registar as plantas que eram tradicionalmente utilizadas na medicina tradicional. A determinada altura apercebi-me que havia um medicamento que tinha sido patenteado por uns investigadores ligados a uma universidade da Califórnia de uma planta que existia no Gabão e em S. Tomé e Príncipe. Aquilo que me perguntei foi como é que aquela gente tinha chegado àquela planta. E chegaram porque havia investigadores na Califórnia que há 20 anos andavam em S. Tomé e no Gabão a fazer estudos com as comunidades locais. Mas essas comunidades nunca foram ressarcidas do conhecimento que transmitiram e isso é a primeira coisa e é preciso proteger. Aprendi muito isso na Índia, no estado de Goa, onde fui fazer uma avaliação a pedido da Fundação Gulbenkian, ao TERI Institute, uma organização indiana que era então presidida pelo Rajendra Pachauri, à época o cientista-chefe do IPCC. E numa determinada altura, numa reunião que tive com um colaborador dessa entidade, que era um antigo ministro do ambiente do estado federal de Deli, ele disse-me “agora temos de criar o mito da árvore sagrada” e depois explicou-me o esforço que a Índia estava a fazer de regulamentação para a preservação de santuários tradicionais em zonas protegidas, do conhecimento tradicional, criar bases de dados, identificar princípios activos e protegê-los por lei, para obrigar que cada investigador que viesse patentear, tivesse de pagar direitos à comunidade local, porque muito do saber científico depende da sabedoria acumulada nas tradições e práticas locais. Dava um exemplo muito concreto de vários cosméticos utilizados pelo mundo ocidental, a partir da sabedoria Ayurveda tradicional e ele dizia que a questão da vaca sagrada surgiu porque a determinada altura se percebeu que o leite de vaca era a única forma de se conseguir que as crianças pobres tivessem uma alimentação minimamente equilibrada e, portanto, ninguém mais poderia tocar na vaca. Nós precisamos de criar esse mito com a árvore para se proteger a floresta. A partir desse momento interessei-me muito por esta dinâmica e apercebi-me que são poucos os países que têm uma legislação coerente de protecção do conhecimento tradicional. Ainda recentemente, numa experiência de tentativa de criação de áreas marinhas protegidas em que a Oikos está envolvida, percebemos que havia algumas questões que realmente eram complicadas e uma delas era de enquadramento legislativo porque, primeiro, havia a vontade dos pescadores – e foram eles que decidiram –, mediante um estudo prévio realizado, que algumas zonas ficassem como zonas de conservação, até para restaurar o stock de peixe. Chegaram a um consenso, disseram quais eram as áreas importantes, mas depois havia mais duas camadas institucionais que eram importantes. Uma que era o caso da Ilha do Príncipe, que tem estatuto de autonomia, mas que toda a legislação do Príncipe em matéria de conservação, tem de ser ractificada pelo primeiro-ministro, prévio parecer pela direcção geral do ambiente. Esta falta de estruturação e de simplificação do trabalho ao nível das comunidades e ao nível local e regional das instituições políticas e administrativas e depois ao nível do próprio país, acrescenta morosidade e complexidade. Se isto acontece ao nível de um país pequeno e insular como São Tomé e Príncipe, a complexidade deve ser ainda maior no Senegal, por exemplo, em que a conflitualidade latente entre a Casamança e Dacar é muito diferente e há aqui várias questões que se colocam. A interpretação que faço do conflito que mencionei anteriormente e que opôs a Survival International com a WWF, é que o problema que aconteceu não se deveu tanto às políticas de conservação que a WWF estava a implementar, mas ao facto de os guardas florestais (os chamados eco-guardas) serem de etnias sedentárias, com comos de vida muito diferentes da etnia local, dos Baka (pigmeus). Munidos de uma, e com pouca formação e sensibilidade para lidar com culturas e tradições distintas, acabou por gerar abusos de poder. Esse é um segundo tema. O terceiro tema que a Charlotte referiu muito bem, está relacionado com as reservas marinhas. Com efeito, por mais que queiramos definir áreas de proteção marinha com as comunidades locais e os governos locais, chegam depois navios da Rússia ou da Espanha, muitas vezes protegidos por acordos de pesca financiados pela União Europeia, delapidam os stocks de pescado, mesmo que em paralelo a UE financie projectos de conservação. Essa também me parece outra questão que é, para além das camadas legislativas do poder local e central, esses acordos globais de pesca e o papel dos próprios doadores – como a União Europeia –, que por um lado financia projectos de conservação, mas por outro lado “dão tiros” nos projectos de conservação com as práticas comerciais que têm. Finalmente, a Charlotte também referiu algo que considero muito relevante, é que estas comunidades locais estão a aperceber-se que estas estratégias e práticas entre os distintos atores no seu território, configuram uma questão de poder; e assim é de facto. Todos nós temos de encarar isso não como uma coisa má, mas como um exercício legítimo de poder daquele que era tradicionalmente dono da terra e daquele território. Obviamente, tem de ser regulado e legitimado para não haver conflitos com as autoridades policiais ou com outros pescadores como aconteceu em Casamança, naquele caso que relatou. Infelizmente, penso que muitas vezes nós, sobretudo nas organizações da sociedade civil, continuamos a ter um bocadinho de dificuldade em olhar para essas dinâmicas de poder, como se essas dinâmicas fossem apenas entre o Estado central, as autoridades militares, as forças policiais, os blocos como a UE, a NATO ou a Rússia; como se essas dinâmicas de poder não existissem também nas comunidades locais ou fossem necessariamente uma coisa má. Elas existem, devem ser legitimadas e a partir daí tudo se torna mais gerível. Essa é uma das críticas que temos de assumir, ou seja, essa incapacidade de encarar estas questões de frente, em “sujar as mãos” com as questões duras do poder, acabando por fazer muitas vezes um bypass, porque trabalhamos muitas vezes em função de projectos de curta duração e para entender as dinâmicas de poder é preciso estar lá uma década ou bem mais do que isso.

 

CHARLOTTE KARIBUHOYE SAID (C.K.S.)  — O João tinha mencionado uma questão que achei interessante que era como é que o sector privado pode contribuir para essas questões, sem que isso seja recuperado para limpar a sua reputação, etc… que experiência tem o João nesse domínio, em que vemos cada vez mais empresas a implementar acções de responsabilidade social e ambiental, nestes domínios da preservação da natureza, mas ao mesmo tempo há organizações que dizem que não podem receber dinheiro de uma empresa privada de petróleo ou de gás por exemplo, porque não é compatível. Como é que o João vê isso?

 

JOÃO JOSÉ FERNANDES (J.J.F.) — Isso é uma questão interessante. Aquilo que frequentemente acontece é que quando há a aprovação de um projecto, como a construção de uma barragem, exploração da indústria extractiva, exploração florestal, etc… há um estudo de impacto ambiental que tem dentro medidas sociais e ambientais de mitigação. Normalmente são chamadas organizações para o diálogo com as comunidades na criação de projectos de mitigação. Isso não é fácil, já estive envolvido em alguns desses projectos, alguns que rejeitámos e outros que não (não só em África, como no Peru), exactamente por acharmos que nuns casos havia a possibilidade de fazer um trabalho sério e consistente e noutros era puro greenwashing. Mas não é uma questão fácil, porque por um lado se uma organização vai receber anualmente meio milhão ou 800 mil euros para projectos de conservação que são financiados por causa da construção de uma barragem, a probabilidade de ao longo do tempo fechar os olhos a determinado tipo de abusos e atrocidades é bastante elevada. Por conseguinte, esse tipo de compensação exige claramente duas salvaguardas. A primeira é que a participação da comunidade seja efectiva, e não é em termos de ser ouvida ou auscultada. Isso não chega. Não é só em África, em Portugal, por exemplo, as políticas públicas têm grandes processos de auscultação da sociedade civil no mês de Agosto, quando está toda a gente de férias. É preciso participar em estruturas de decisão e em estruturas de watchdog, de observação daquilo que está a acontecer, e que existam mecanismos que envolvam empresas, estado, organizações da sociedade civil e comunidades locais que possam resolver conflitos e encontrar soluções. Todo o desenho de projectos de desenvolvimento está feito para funcionar até ao momento em que são definidos os planos de mitigação dos estudos de impacto ambiental. E depois volta-se a pensar, quando se fecha uma mina, como voltar a reflorestar aquela zona; isto é, 20 anos depois. A outra salvaguarda está relacionada com os processos de due dilligence. A União Europeia, por exemplo, e vários Estados-membros, têm feito esforços de legislação para processos de due dilligence no âmbito dos direitos humanos que já vão muito mais longe do que iam e até com a possibilidade de processos de denúncia no país de origem de uma multinacional e não apenas no país onde a empresa tem determinado negócio, porque um dos grandes problemas é exactamente a assimetria que existe entre uma comunidade local e uma multinacional, em termos de capacidade de empreender uma luta jurídica. Em qualquer conflito legal que exista, uma empresa multinacional traz um batalhão de advogados que dificulta tudo. Tem de ser garantido que é possível utilizar a legislação dos próprios Estados europeus para equilibrar as regras do jogo. Mas há hoje um problema que é ainda mais grave ao nível do direito internacional, relacionado com uma série de instrumentos transfronteiriços e tribunais que ultrapassam a capacidade dos Estados ou até de blocos como a União Europeia. Acontece, por exemplo, na área da energia, em que uma empresa pode demandar um Estado com alguma facilidade por quebra de determinadas regras internacionais, mesmo que do ponto de vista social, ambiental e económico tenha todas as razões para se queixar. Não estamos a falar apenas de Estados africanos, estamos a falar de qualquer Estado à face da terra. Por um lado, se o multilateralismo é muito importante, por outro lado, do ponto de vista do direito, não se pode sem mais nem menos ultrapassar os Estados, e é aí que têm de se resolver as questões jurídicas que surjam de conflitos entre partes. Depois também penso que há aqui um problema de conhecimento. As empresas, elas próprias, conhecem muito pouco este conjunto de directrizes, legislação, ligada às questões sociais e ambientais, muitas vezes conhecem apenas pela rama, no gabinete jurídico, mas os trabalhadores (não estou a falar dos trabalhadores dos estaleiros, mas ao nível dos directores de recursos humanos) desconhecem em absoluto este tipo de normas e, provavelmente, estão a definir uma política de recursos humanos sem sequer colocar salvaguardas ligados ao respeito pelos direitos humanos. Do lado da sociedade civil organizada, o desconhecimento muitas vezes é ainda maior, sobre os mecanismos de denúncia e litigância que existem e a forma de os utilizar. E aí os maiores doadores, mesmo que isso afecte os projectos que eles próprios ajudaram a financiar, deveriam investir muito na capacitação, quer da sociedade civil, quer dos próprios Estados, nomeadamente as autarquias locais, e mesmo as próprias empresas, porque de facto não basta legislar. Aqui, em Portugal, temos um defeito enorme que é publicar em Diário da República e partir do pressuposto que todos os cidadãos têm de conhecer a lei e se não conhecerem, problema deles. Ao nível europeu, o problema é ainda mais agressivo, porque estamos numa segunda camada de legislação. Quando chegamos a legislação que tem relevância para países terceiros, como é esta ligada aos projectos das multinacionais e investimentos externos, então é navegar na maionese – temos legislação nacional, europeia, internacional, etc… que de facto se torna quase impossível de navegar a esse nível. Ainda assim, sou da opinião que tem havido avanços. Há, porém, um problema adicional, que reside na identificação e responsabilização direta dos proprietários das empresas que prevaricam.  Em cada vez mais situações, desconhecemos quem são os donos, ou verdadeiros beneficiários finais de um fundo de investimento ou de uma empresa multinacional. Posso fazer uma queixa aos administradores, mas estes respondem perante um conselho de accionistas que, possivelmente, são fundos de pensões ou de investimento sem rosto. É extremamente complicado e há muito a fazer nesse âmbito. Por um lado, é necessário fortalecer institucionalmente, quer com conhecimento, quer tornar as ligações legislativas entre os vários níveis políticos mais claras, para que todos os actores, sabendo exactamente as regras do jogo, possam agir e denunciar os eventuais atropelos de forma rápida, de modo a garantir reparações em tempo útil. Ao mesmo tempo que há muita gente que desconhece, há hoje empresas que têm códigos de conduta ética e mecanismos de controlo que muitas das organizações não-governamentais com que interagem não implementaram.

 

CHARLOTTE KARIBUHOYE SAID (C.K.S.)  — O João identificou bem essas ligações. A participação das comunidades e do público é importante, porque muitas vezes ouve-se que não houve nenhum estudo de impacto ambiental e, quando há, o processo de consulta não está bem desenhado, para permitir essa contribuição. E há casos em que os estudos de impacto ambiental são financiados pela própria empresa, e aí há um risco ligado à legitimidade e imparcialidade. A questão da expertise ou perícia local, das capacidades locais, não só dos técnicos do Estado, mas também da sociedade civil e das comunidades locais, é muito importante. Temos, por exemplo, financiado aqui nessa subregião, alguns projectos para reduzir o impacto das actividades de exploração do petróleo e do gás e o que vimos é que a sociedade civil não está bem preparada para intervirem neste domínio: ela não está bem informada sobre os efeitos negativos dessas actividades sobre o ambiente, nem tem conhecimentos sobre as leis existentes, ou sobre potenciais pistas de intervenção nesse domínio. E queria acrescentar a questão de como é que se integra as disposições da regulamentação internacional no contexto nacional. Sabemos que muitas vezes os Estados ractificam convenções internacionais, mas depois traduzir aquilo na prática é uma grande dificuldade, porque precisa-se de recursos, de capacidade de monitorização, para assegurar que as empresas cumpram com essas regulamentações. É uma dificuldade de facto em pôr em prática isso.

 

JOÃO JOSÉ FERNANDES (J.J.F. ) — Acrescentaria um ponto que me parece importante: muitas vezes, nos processos de participação, e sobretudo na altura de definição das medidas de compensação, no âmbito dos estudos de impacto ambiental, mesmo quando são transparentes e muito bem-intencionados, há um problema de valoração económica das medidas. Para um multimilionário, um euro não é nada, para uma comunidade local pode ser muito. Mas também é verdade que para uma pessoa perder um hectare de terra que tinha para cultivar é muito mais do que receber hoje ou amanhã mil euros. Para uma empresa multinacional, o preço da terra está a ser muito bem pago, simplesmente uma família que perde o sustento para a vida futura não é com mil euros que vai resolver esse problema. Há aqui um problema de valoração económica das medidas, que devem ser contextualizadas, à escala local e da comunidade, e não por medidas que são definidas por economistas no escritório do Banco Mundial, em Washington ou em Moscovo, ou seja, muito longe dessa comunidade. Por isso, são utilizadas metodologias de valoração económica que são iguais para todo o mundo, depois há uma actualização de preços à escala do país, mas tudo isto é muito relativo, porque tem a ver com a vida daquelas pessoas. Mais uma vez, acho que todos os que trabalhamos nesta área temos o dever de questionar estas abordagens e as metodologias usadas; muitas vezes é necessário ter a humildade de perguntar às comunidades locais “traduzam-me lá isto em termos da vossa economia”, e não o contrário. Recordo-me de um episódio, no Brasil, quando a determinada altura o país tinha uma inflação brutal e basicamente todos os dias a moeda desvalorizava três ou quatro vezes e tínhamos de andar sempre a trocar dinheiro de manhã, à tarde, à noite, e nunca podíamos transferir demasiado dinheiro do banco para pagar a fornecedores, porque estava sempre a mudar. Estávamos envolvidos num projecto de melhoria da economia rural; a determinada altura alguém disse “esqueçam tudo o que aprenderam e façam um cabaz essencial dos produtos que esta gente produz e consome e meçam a inflação em função desse cabaz”. Foi assim que fizemos um cabaz com vários produtos e o nosso racional económico em relação à inflação passou a estar relacionado com esse cabaz e não com as estatísticas oficiais. Acho que temos de ter essa humildade de perguntar às pessoas “o que é que, perante isto, esta medida vai afectar nos próximos 30, 40 anos?”. E a resposta pode ser tudo menos óbvia, mas exige realmente o desenho das próprias metodologias de forma complemente diferente.

 

CHARLOTTE KARIBUHOYE SAID (C.K.S.) — Estou completamente de acordo, João. Mas, muitas vezes, mesmo perguntando, tenho a impressão que se tem de tomar cuidado sobre o tipo de metodologias e de questões. Por exemplo, há um método que consiste em perguntar às pessoas quanto estão dispostas a pagar por uma determinada coisa, mas é complicado, sobretudo numa zona em que se calhar o dinheiro não é o mais importante. E outra coisa: como é que se vai quantificar o valor de algo que para mim não tem valor monetário – a cultura, por exemplo. Voltando aos sítios sagrados, qual o valor monetário de um sítio desses? Tem razão de mencionar a questão da metodologia e da referência. Lembro-me que uma vez estávamos a preparar um projecto e a desenvolver um sistema de monitorização da eficácia de gestão de uma área marinha protegida. Então estivemos a identificar possíveis indicadores, por exemplo, as espécies de peixe aumentaram, as comunidades têm mais rendimento, etc… Não estávamos muito satisfeitos com esses indicadores, e decidimos perguntar a algumas pessoas chave na aldeia como avaliariam a eficácia de gestão daquela área marinha protegida, ou seja, o que lhe mostra que a área marinha protegida estava a atingir os seus objectivos. Houve então uma pessoa que nos diz que era muito fácil e deu um exemplo que não estávamos a esperar. Disse “sabe que aqui nos Bijagós costumamos fazer algumas cerimónias tradicionais usando espécies de peixes bem particulares. Há uma cerimónia que não fazíamos há dez anos, porque a espécie tinha desaparecido, mas desde há três anos que temos esta área protegida e agora esse peixe voltou e este mês vamos voltar a fazer a cerimónia”. Aquele era o indicador mais importante para eles, e nós a pensar primeiro no tamanho do peixe, o rendimento local, etc… É importante sair do escritório e falar com as pessoas sobre as suas prioridades, porque sabem melhor do que nós avaliar isso.

 

JOÃO JOSÉ FERNANDES (J.J.F.) — Uma última questão tem a ver com a participação da sociedade civil nos fora internacionais, onde se discutem as questões da conservação e das políticas em torno das alterações climáticas e do desenvolvimento. Hoje a participação é mais ruidosa, mas menos efectiva do que foi no início desses processos. Isso é válido para as COP do clima, como para as grandes cimeiras, desde a Cimeira do Rio, a do Habitat em Istambul, de Joanesburgo, etc… No início, havia muita gente da sociedade civil que era cooptada pelas próprias delegações oficiais. Por exemplo, em Joanesburgo, participei sob o chapéu da delegação oficial portuguesa, obviamente não como negociador, mas dava-me acesso ao interior do espaço das negociações. Não estando empossado do direito de estar a negociar, podia falar com a delegação dos EUA, de França, ou da União Europeia, influenciando de alguma forma ou chamando a atenção para determinado tipo de políticas. Hoje em dia, a sociedade civil é remetida para espaços laterais, se calhar com grandes manifestações e com muito mais ruido mediático; porém, aquilo que realmente interessa e onde são tomadas as decisões técnicas está tudo previamente definido e negociado. Ou houve a capacidade da sociedade civil influenciar previamente, ou dificilmente vai conseguir influenciar durante a cimeira. Claro que, no fim do dia, a decisão é política, já assim era. Quem é político de um Estado democrático tem legitimidade para tomar as decisões que tomar e depois pode ser penalizado por essas decisões e é assim que funciona. Por isso, acho que a participação é mais frequente, mais ruidosa, mas menos efectiva. A sociedade civil perdeu qualitativamente um espaço de participação ou pelo menos é menor e isso é preocupante. Por outro lado, muitas vezes esta participação da sociedade civil é cooptada, porque fica num bolo com o sector privado e o poder local, que são três realidades muito importantes, mas muito diferentes e com assimetrias de poder. É uma questão um pouco perversa, porque cada vez há maior capacidade do mundo empresarial, sobretudo das multinacionais, de influenciarem as agendas e de as construírem. Se formos ver quem foi fazendo as grandes contribuições para o códex alimentar da FAO, vamos perceber que muitos dos cientistas pertenciam ao mundo empresarial, ligados a empresas da biotecnologia agrícola, etc… Isso acontece com as questões da biodiversidade e com a influência das farmacêuticas, entre outras. Foi-nos dado maior capacidade de fazer ruido, sim, mas menos capacidade de influenciar onde realmente interessa. E isso tem outro efeito perverso: facilmente as organizações da sociedade civil são ultrapassadas por movimentos mais informais, muitas vezes um pouco anárquicos, frequentemente muito radicalizados, que são mais ruidosos na rua, mas que têm um menor conhecimento e compromisso de longo prazo com as questões. Ou seja, assumindo que não se pode mudar tudo de uma vez, que é necessário ir passo a passo e que há questões complexas. E isso está a acontecer muito hoje em dia com movimentos informais, que têm grande visibilidade na comunicação social, podem defender um leitmotiv muito atractivo para um jornalista, mas que é muito pouco consistente como proposta negocial. Mas, de facto, as propostas que vão com 200 páginas, se calhar não passam pelo crivo de um jornalista que só quer ler uma frase no início de uma notícia.

 

CHARLOTTE KARIBUHOYE SAID (C.K.S.)Daquilo que tenho visto em alguns países há três questões. A primeira questão é a da preparação porque muitas vezes os próprios representantes dos países não estão bem preparados – ou não têm acesso aos documentos ou, quando têm, não têm capacidade ou tempo de fazer uma boa preparação. E às vezes também há mudança de pessoas e não há uma continuidade no processo. A segunda questão tem a ver com a participação da sociedade civil nos processos de negociação. Durante os fóruns em que participei, tenho visto alguns casos em que se conseguiu integrar membros da sociedade civil nas delegações oficiais e aí eles têm a possibilidade de apoiar, de contribuir e de influenciar o posicionamento daquela delegação. E a terceira questão tem a ver com o que acontece depois dos fóruns: como monitorizar a implementação ao nível do país daquilo que se decidiu nesses fóruns? Uma dificuldade ligada a isso está relacionada com o facto de para cada convenção internacional haver uma pessoa ou “ponto focal”; no entanto, muitas das vezes, essas pessoas, mesmo quando são do mesmo ministério, não têm mecanismos para dialogar, se preparem juntas e consolidarem a posição a nível nacional. Isso é a nível dos ministérios, mais também não há um diálogo com a sociedade civil que está a trabalhar nessas questões no mesmo país. Tenho a impressão de que se quisermos ajudar, temos de agir nestas três dimensões: como ajudamos ao nível nacional para que haja uma espécie de fórum ou um quadro de diálogo entre membros da sociedade civil e do governo que trabalham nessas questões, para que se possam preparar de forma profissional (há países que o fazem), permitir a participação da sociedade civil dentro das delegações (e fora delas) e criar um mecanismo para que depois quando regressam, possam  fazer o follow-up ou seguimento das decisões tomadas, ou seja, de forma global, como é que se organizam e trabalham juntos.