O Fórum Social Europeu das Migrações: O direito de migrar e migrar com direitos

Paulo Illes

Filósofo, diretor- -executivo da Rede Sem Fronteiras e representante externo da Organização para Uma Cidadania Universal, é ainda membro do Conselho da Ouvidoria Geral da Defensoria Publica do Estado de São Paulo. Foi Coordenador de Políticas para Migrantes em São Paulo e fundador do Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante (CDHIC). Em 2008, recebeu o Prémio Jaime Wright de Promotores da Paz e dos Direitos Humanos.

Patricia Gainza

Nasceu em Montevidéu, em 1974. Mestre em Sociologia com especialização em Integração, Mercosul e Desenvolvimento, exclusão social e redução da pobreza. Actualmente é diretora da Divisão de Direitos Humanos da Direção Nacional de Promoção Sociocultural, Ministério do Desenvolvimento Social (MIDES), em Montevideo, no Uruguai.

Como tudo começou

O Fórum Social Europeu (FSEM) faz parte dos processos de construção do Fórum Social Mundial das Migrações (FSMM), o qual tem suas origens em Porto Alegre, Brasil, em 2005, durante o Fórum Social Mundial (FSM). Desde seu evento inaugural em Porto Alegre, o FSMM tornou-se uma iniciativa recorrente com o objetivo de buscar e construir alternativas. Nove edições já ocorreram ao longo de 15 anos – Brasil (2005, 2006, 2016), Espanha (2007, 2008), Equador (2010), Filipinas (2012), África do Sul (2014), México (2018), sendo que em 2020 aconteceu o primeiro fórum social américas de migrações em Montevideu, Uruguai e em 2021 o primeiro Fórum Social Europeu das Migrações em Lisboa, Portugal.

Objetivos do FSMM

O Fórum Social Mundial das Migrações tem como objetivo principal criar um processo que reflita sobre os fluxos migratórios e que trabalhe para uma nova visão da migração. Também busca gerar mudanças culturais que garantam o respeito aos direitos humanos das pessoas que se deslocam. As edições anteriores do FSMM se concentraram na criação de um espaço plural e diversificado, um ambiente não governamental e não partidário que se articule de forma horizontal descentralizada.

 

Fórum Social Europeu das Migrações e o contexto pandémico

É fundamental destacar o Fórum Social Europeu das Migrações ocorreu em tempos extremamente difíceis. Desde 2020, todo o mundo tem se preocupado profundamente com os indicadores de deterioração econômica, social e cultural, à medida que a pandemia COVID-19 aprofundou ainda mais as lacunas estruturais de desigualdade e ausência de proteção social já existentes. Hoje, sabemos que a pandemia atinge de forma desproporcional setores e categorias já afetados por situações de exclusão e discriminação estrutural, como as populações indígenas e afrodescendentes. Também estamos cientes do impacto negativo desta situação sobre os direitos humanos e dos limites dos processos de integração regional para encontrar uma solução compatível com a magnitude dessa crise.

A pandemia exacerbou vulnerabilidades pré-existentes associadas ao retrocesso das estruturas de direitos universalmente reconhecidas que afetam a população deslocada, refugiada e migrante, dependendo dos diferentes níveis de proteção social em cada país e da situação do status migratório e da proteção internacional. Observamos que as condições dos migrantes irregulares são particularmente desfavoráveis, uma vez que a maioria deles não está inscrita nos programas de assistência social e sem cobertura do sistema de seguridade social. Eles são rejeitados e discriminados por causa de sua nacionalidade e também temem ser expulsos ou deportados.

Não é novidade que todo o mundo tenha decidido implementar medidas restritivas para controlar e restringir a mobilidade humana devido à disseminação contínua do COVID-19. Nesse contexto de fechamento de fronteiras, várias violações sistêmicas dos direitos humanos têm ocorrido. Desde março de 2020, os migrantes e requerentes de asilo são os que mais sofreram com a falta de garantias para a sua proteção, a criminalização da solidariedade, a necropolítica e a violação dos direitos dos migrantes previstos nos acordos internacionais. A restrição da liberdade de circulação, o encerramento das fronteiras externas e, em certos casos, a suspensão do direito de requerer asilo tanto na América Latina como na Europa, foram contra a prática da migração regular.

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Essas políticas de fechamento, adotadas como parte da luta contra a pandemia, expuseram e continuaram a expor a população migrante e refugiada a vulnerabilidades sociais e econômicas de várias maneiras. Migrantes e requerentes de asilo foram detidos em zonas de trânsito, colocados em quarentena em campos de refugiados ou centros de detenção privados de liberdade, sem acesso a abrigo decente, comida e sem possibilidade de regularização e reconhecimento da sua condição de requerentes de asilo. Os migrantes não têm tido acesso a políticas econômicas e de apoio, muitos deles perderam seus empregos ou fonte de renda e muitos outros foram impedidos de se reunir com suas famílias. Ao mesmo tempo, a população migrante é frequentemente discriminada ou excluída das políticas de apoio social por governos e estados.

 

Legado do Fórum Social Europeu das Migrações

Participantes e objetivos

A 2ª edição regional do Fórum Social Mundial das Migrações realizou-se na Europa, especificamente, em Portugal, entre os dias 15 e 26 de março de 2021, novamente em formato virtual devido à pandemia. No total, 1.000 pessoas, 300 organizações e 40 países participaram das 33 atividades online. Como resultado do processo, 75 propostas finais foram apresentadas pelos participantes. Assim como no Fórum Américas, representantes da sociedade civil estiveram presentes ao lado de sindicatos, autoridades locais, organizações internacionais de migrantes e instituições educacionais. O Fórum Social Europeu das Migrações foi concebido para ser uma oportunidade de pensar coletivamente sobre alternativas para o mundo como o conhecemos hoje, para levantar vozes e demandas de pessoas marginalizadas – especialmente migrantes e refugiados -; para progredir em direção ao objetivo de criar uma cidadania universal. O FSEM foi pensado como um processo autogestionário, um espaço de discussão dos movimentos sociais e organizações da sociedade civil que iria, por meio de intercâmbios democráticos e inclusivos, propor novos conhecimentos sobre o tema migração e refúgio. O desejo do Fórum era também reunir ativistas e migrantes de toda a Europa para criação de um diálogo construtivo, de propostas para uma sociedade mais igualitária bem como para a criação de um espaço para pensar na migração como central no desenvolvimento de um futuro sustentável e socialmente justo. Os objetivos centrais do Fórum Europeu foram, entre outros, 1) analisar as políticas migratórias e pensar sobre o futuro da mobilidade humana, as políticas públicas e as práticas de asilo e integração após o COVID-19; 2) criar uma atmosfera de discussão com diáspora e organizações da sociedade civil para implementar políticas alternativas e participativas; 3) construir uma dinâmica de ação da sociedade civil a nível europeu, envolvendo uma diversidade de atores, tendo como protagonistas migrantes e refugiados. Para isso, o processo foi dividido em três etapas, a saber: pré-fórum, fórum e pós-fórum. Todas as etapas foram mediadas por pessoas indicadas por representantes do Comitê Internacional e lideradas pelos próprios migrantes, para estimular uma reflexão profunda sobre as questões em jogo, os desafios e problemas enfrentados e, acima de tudo, pensar coletivamente sobre possíveis convergências e alternativas.

 

Contexto Regional e escolha do local

O relatório da Agência da ONU para os Refugiados (ACNUR) revela que só em 2018, mais de 1.600 pessoas morreram ou desapareceram tentando chegar à Europa pelo Mar Mediterrâneo (ACNUR, 2018). As políticas orientadas pela Diretiva de Retorno e pelo Regulamento de Dublin, juntamente com uma série de medidas de segurança, incluindo o estabelecimento de ações judiciais e penalidades contra os defensores dos direitos dos migrantes e refugiados, tornaram cada vez mais necessária uma discussão aprofundada na sociedade civil sobre os direitos fundamentais em contextos de migração. Segundo dados do Eurostat (2019), em janeiro de 2018 havia 22,3 milhões de cidadãos não europeus (4,4%) de um total de 512,4 milhões de pessoas a viver na Europa.

Assim como o Fórum Social Américas das Migrações, o primeiro Fórum Social Europeu das Migrações ocorreu em um momento de crise global causada pela pandemia do COVID-19. Ao evidenciar exclusões e desigualdades já existentes, essa crise ampliou as profundas disparidades econômicas e sociais existentes no sistema capitalista. Nesse cenário, migrantes e refugiados são especialmente vulneráveis, pois são forçados a enfrentar barreiras legais e sociais específicas. Hoje, é ainda mais necessário refletir, discutir e propor respostas a esses obstáculos enfrentados pelos migrantes e refugiados, e é exatamente essa a ideia que está por trás do Fórum Social Europeu das Migrações. Este contexto também é uma oportunidade para reinventar o futuro da mobilidade humana para garantir que seja inclusiva, segura e respeite os direitos humanos.

“O papel da população mundial como um todo, e especialmente das duas categorias vulneráveis – mulheres migrantes e jovens migrantes – devem continuar a participar ativamente em formas de organização social de cidadãos para realizar trabalho de defesa de direitos e influenciar governos e instituições.”

Mesmo enfrentando uma crise de saúde sem precedentes, muitos Estados europeus ainda negam não só os direitos fundamentais os quais têm direito as pessoas vulneráveis, mas, também, seus direitos sociais e econômicos. A União Europeia mantém atualmente uma política abusiva de perseguição policial, militarização das fronteiras, não assistência a pessoas em perigo – nomeadamente no Mediterrâneo – e prisão de defensores dos direitos dos migrantes. Estas ações têm consequências desastrosas, como o aumento do número de mortes e desaparecimento de pessoas no Mediterrâneo, o risco de desenvolvimento de surtos de doenças infecciosas em áreas onde as pessoas estão privadas de liberdade – em particular nos “campos da vergonha”, na fronteira entre Grécia e Turquia – e nos campos de desabrigados. Durante o inverno passado, a fronteira entre a Bósnia-Herzegovina e a Croácia foi palco de violações extremas dos direitos humanos. De acordo com a OIM, mais de 8.000 migrantes que embarcaram na chamada “rota dos Balcãs” na esperança de chegar à Europa, foram deixados em condições precárias em todo o país, hospedados em estruturas de acolhimento superlotadas e inadequadas, colocando claramente suas vidas em risco. Alegou-se que essas pessoas incluíam famílias, crianças e menores desacompanhados que não tinham acesso a abrigo, serviços básicos e nenhum acesso a cuidados de saúde adequados. O fracasso na gestão da crise migratória em países que fazem fronteira com a União Europeia, como a Bósnia, deve-se em parte às práticas de repulsão operadas pela polícia na periferia da União Europeia. Desde 2015, quando muitos países da UE (por exemplo, Hungria) fecharam suas fronteiras, mais pessoas tentaram entrar na Europa pela rota dos Balcãs, cruzando a fronteira da Bósnia-Croácia. De acordo com vários relatórios de outubro de 2020, as resistências da Croácia envolveram ocasionalmente abusos sexuais contra mulheres. Esse cenário também mostra uma profunda crise social e a extrema precariedade das famílias migrantes e pertencentes a minorias étnico-raciais. No geral, a pandemia COVID-19 expôs a fragilidade de um sistema político, social e econômico excludente, incapaz de proteger os direitos humanos de imigrantes e refugiados.

À luz do contexto acima mencionado, o FSEM proporcionou uma oportunidade para pensar coletivamente sobre o futuro da humanidade e o futuro do planeta. Iniciou um convite para pensar sobre a migração como central para a construção de uma nova estrutura inclusiva e totalmente ética para um futuro sustentável com justiça social. Foi um Fórum de esperança e um apelo à ação global, responsabilidade compartilhada e promoção da cidadania universal para o bem-estar de toda a família humana, da grande comunidade da vida e das gerações futuras. Algumas das razões que levaram à realização do Fórum Social Europeu das Migrações em Portugal foi o fato de Portugal ter sido o primeiro país a adotar um plano nacional de implementação do Pacto Global para as Migrações (Comissão Europeia, 2019) além do fato de o país ter criado recentemente um Secretário de Estado para a migração e possuir um plano nacional para a integração dos imigrantes (Comissão Europeia, 2007).

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De acordo com o Relatório de Imigração, Fronteiras e Asilo (RIFA) do Serviço de Fronteiras e Estrangeiros (SEF), durante três anos consecutivos, desde 2017, o número de imigrantes em Portugal tem aumentado. O número de estrangeiros que adquiriram a nacionalidade portuguesa passou de 20.396 em 2015 para 28.856 em 2018. Por outro lado, as recusas de entrada em território nacional português também aumentaram de 506 recusas em 2015 para 2.866 em 2018 (dados de 2019 do Relatório de Imigração, Fronteiras e Asilo). Em termos de políticas públicas, Portugal apresenta-se como um país aberto, ávido por criar mecanismos de igualdade e seu governo mostrando preocupação com a necessidade de integração e inclusão social dos imigrantes. No entanto, apesar dos bons resultados ao nível da formulação de políticas públicas, Portugal ainda apresenta muitos desafios no que diz respeito à implementação e garantia da igualdade no acesso aos direitos sociais e fundamentais dos migrantes.

Áreas Temáticas

As discussões compartilhadas durante o FSEM 2021 foram realizadas com a divisão nos seguintes eixos temáticos:

1. Direitos Econômicos: Os conceitos cruciais tratados dentro deste eixo foram extrativismo e apropriação da terra; desestruturação das economias locais; deslocamento forçado; guerra econômica; execução de fundos públicos. Hoje em dia, existe uma tendência generalizada de dissociar os direitos fundamentais dos direitos socioeconômicos, políticos e civis os quais deles decorrem. O pressuposto subjacente a esta área temática é o de que isso nunca deveria acontecer e, por isso, é fundamental defender uma hospitalidade e integração eficazes, bem como condições de trabalho dignas para os migrantes, independentemente do seu estado de migração. O grande problema relacionado a essa questão diz respeito aos governos vincularem a possibilidade de regularização migratória ao trabalho e vice-versa, o que pode gerar vulnerabilidades e dificultar o exercício da cidadania de forma plena para os migrantes, provocando falta de inclusão e igualdade de direitos para os migrantes que não se enquadram nos programas de regularização do trabalho. Além disso, para os países que já estavam passando por uma crise econômica e social, a atual crise de saúde do COVID-19 é um obstáculo adicional. Durante a primeira onda da pandemia, a saúde ocupacional esteve completamente ausente da resposta da saúde pública à emergência. Ainda assim, o direito à saúde no trabalho deve ser reconhecido como fundamental e a COVID-19 como possível doença decorrente da atividade laboral.

2. Direitos Humanos: Centrais foram, neste caso, os temas da criminalização da migração e da solidariedade; militarização e externalização de fronteiras; violação dos direitos dos migrantes e refugiados nos países de origem, trânsito e destino. Em particular, foi realçado que enormes meios financeiros, políticos e judiciais são empregados hoje a nível europeu com o objetivo de garantir que os migrantes permaneçam fora da Europa e que as suas ações sejam criminalizadas. A criminalização da migração pela UE, bem como a criminalização da solidariedade para com os migrantes em trânsito, são vistas como uma forma de gerir os fluxos migratórios e de dissuadir as pessoas de entrar na Europa. Enquanto, por um lado, podemos nos tranquilizar com o Novo Pacto sobre Migração e Asilo, onde a Comissão Europeia explica que o seu objetivo é o de evitar que os apoiantes dos migrantes sejam perseguidos criminalmente; por outro lado, a Diretiva 2002/90, de 28 de novembro de 2002, estabelece que o apoio à entrada, trânsito e permanência de migrantes irregulares é, em certas condições, considerado crime, exceto quando o apoio é prestado para fins humanitários. Outra questão crucial na área é o fenômeno das “invisibilidades” dos migrantes que se deve a vários fatores, como o fato de essas pessoas não serem apoiadas por instituições e sociedade civil, e a existência de barreiras linguísticas as quais não permitem aos migrantes expressarem-se adequadamente.

3. Direitos Ambientais, Sociais e Culturais: Os assuntos debatidos no contexto desta área temática incluem: lutas feministas e LGBTQI+; batalhas ambientais e climáticas; a defesa da ciência, educação e cultura; direito à vida; saúde universal e gratuita. O mundo enfrenta atualmente uma crise econômica e também ambiental com uma luta por recursos no horizonte. A extrema direita da União Europeia, por exemplo, usa novas tecnologias da informação para criar notícias falsas e divulgá-las entre a população. A interseccionalidade seria, então, antes de mais nada, o trabalho de curar e reunir o que os movimentos de extrema-direita buscaram dividir, refletindo também sobre como as opressões existem dentro das opressões. Além disso, o ponto central das discussões nesta área temática foi a questão do cumprimento dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (DESC). Embora os direitos humanos sejam indivisíveis e interdependentes, existe uma falha no cumprimento desses direitos. Exemplos disso são a desnutrição e a falta de acesso à educação para menores migrantes. Negligenciar os regulamentos dos DESC também afeta o cumprimento dos direitos civis e políticos. Um exemplo é que o gozo pleno da liberdade de expressão está vinculado ao direito à educação. Além disso, foi mencionada a questão do racismo ambiental. A questão da migração ambiental também foi abordada uma vez que essa está inserida na intersetorialidade da solidariedade internacional e das mudanças climáticas. A mudança climática provavelmente agravará os desastres naturais, tornando o deslocamento por razões ambientais dependente da solidariedade internacional.

4. Direitos Políticos: Os tópicos discutidos neste eixo temático incluíram a transformação dos sistemas políticos; estratégias alternativas de governança; participação política de migrantes e refugiados; o papel das autoridades locais, o papel das universidades e da sociedade civil; políticas públicas e participação social. Mais especificamente nesta área temática, incluiu-se o objetivo de acolher e incluir exilados e imigrantes em cidades ou territórios que os desejem acolher, ajudando na sua integração, no exercício da cidadania e na garantia dos seus direitos fundamentais. O objetivo nesse eixo foi trabalhar em conjunto com a sociedade no combate à intolerância e incluir o debate sobre imigração nas políticas públicas. Além disso, foi mencionada a importância da participação da sociedade civil junto às autoridades locais, o que deve ajudar na mudança das políticas públicas sobre o acesso aos direitos dos migrantes e exilados. Também foi destacado que, para prevenir políticas anti-imigração, a sociedade como um todo deve se engajar no combate aos estereótipos, mudando a forma como a mídia apresenta esses imigrantes e refugiados e desmistificando a crença de que exilados e imigrantes são a causa de as crises econômicas na Europa.

Para além das áreas temáticas mencionadas, os atores debateram levando em consideração temas intersetoriais como gênero, raça, classe, nacionalidade, identidade e interculturalidade.

 

Propostas

Conforme já mencionado, o Fórum Social Europeu das Migrações conseguiu finalizar 75 propostas, incluindo ações locais e globais.

No que se refere aos direitos econômicos, três conjuntos principais de propostas foram apresentados. Foram sugeridos a defesa, a regularização dos migrantes e o fortalecimento dos canais de migração com direitos. Quanto a isso, a regularização irrestrita e incondicional de todos os migrantes sem documentos em toda a Europa, a fim de acabar com a exploração, discriminação e competição de trabalhadores, foi particularmente demandada. Nesse sentido, medidas políticas e jurídicas são necessárias. Todos os atores sociais, sindicatos e organizações da sociedade civil devem promover a mobilização, tanto a nível nacional como europeu, para exigir dos governos dos Estados europeus uma lei que regularize os migrantes presentes nos seus próprios territórios. Essas leis devem ser duráveis e acessíveis a todos os trabalhadores e não apenas a profissionais altamente qualificados.

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Do ponto de vista jurídico, também foi defendida a ratificação bem como a implementação urgente das Convenções 97 e 143 da OIT e da Convenção 90 da ONU para garantir os direitos dos migrantes e refugiados. Por fim, debates políticos e sociais devem ser promovidos. Do ponto de vista dos direitos humanos, a necessidade de investigar e denunciar as violações desses nas fronteiras externas da UE foi defendida coletivamente. Neste sentido, a criação de uma comissão parlamentar europeia de investigação para verificar incumprimento da lei e dos direitos humanos, tais como a dissuasão de movimentos migratórios, regressos nas fronteiras terrestres e marítimas, deportações em massa, retrocessos forçados, detenções formais e informais, externalização de controle de fronteira. Também foi sugerida a criação de um mecanismo de denúncias sobre a situação nas fronteiras internas da União Europeia. Por fim, foi destacada a necessidade de defender a criação de um Pacto Global de Solidariedade para garantir que a universalidade dos direitos humanos seja respeitada. Foi também proposta a organização de uma conferência com deputados europeus e organizações aliadas para a criação de uma consulta parlamentar europeia sobre as violações dos direitos humanos de migrantes e requerentes de asilo.

Em relação aos direitos ambientais, sociais e culturais, o que mais se destacou foi a necessidade de construir, implementar e comunicar uma narrativa comum na intersecção da justiça migratória, justiça ambiental e justiça social. É crucial fornecer documentação das continuidades históricas entre o domínio colonial e o processo de globalização financeira e econômica, que está intensificando o deslocamento de pessoas em massa. Foi sublinhado igualmente a existência de uma forte necessidade de desconstrução do racismo, do gênero e da discriminação social, o que poderá ser prosseguido através do estabelecimento de um plano estratégico de ação e comunicação, articulando os movimentos sociais europeus envolvidos. Finalmente, houve uma proposta para executar e fortalecer uma educação intercultural sob uma prerrogativa anti-racista para conectar as muitas pessoas que exigem e pressionam por pedagogias alternativas para reaprendizagem cultural mútua dentro dos sistemas de educação nacional formal e locais de educação informal.

Em relação aos direitos políticos, houve um acordo para desenvolver uma rede dedicada às histórias de migrantes e refugiados. Esta iniciativa responderia à necessidade de criação de uma ação coletiva para ampliar a voz dos migrantes e refugiados e para coletar e divulgar suas histórias de vida. Com isso, esta rede pretende humanizar o discurso político e politizar as experiências humanas de migrantes e refugiados. Também foi proposto que o trabalho de advocacy, para garantir uma elaboração intersetorial de políticas de migração que sejam democráticas, participativas e inclusivas, seja intensificado. Neste sentido, o objetivo é conectar e destacar localidades na Europa, em países não europeus afetados pelas políticas europeias e, no resto do mundo, onde as alianças locais entre autoridades, migrantes, refugiados e atores da sociedade civil alcançam mais inclusão e ações de acolhimento. Prevê-se que isto sirva de modelo para outras políticas de migração a nível nacional e europeu.

Destacou-se ainda que os fundos europeus devem ser condicionados à garantia dos direitos dos migrantes e refugiados e distribuídos equitativamente aos atores locais que trabalham para construir políticas em favor dos direitos dos migrantes e refugiados. Por fim, foi sugerida a promoção de um Dia Europeu da Defesa do Acesso aos Serviços Públicos Essenciais.

Impacto do FSMM e futuras ações

Migrantes e organizações envolvidas com migrantes de diferentes partes do planeta estão atualmente transitando por um mundo em um processo tumultuado, onde a questão da migração tornou-se um tema central na agenda internacional. Hoje, quase um em cada quatro trabalhadores no mundo é migrante e enfrenta condições de profunda vulnerabilidade: exclusão, discriminação, racismo, exploração extrema, morte e desaparecimento. Sob a globalização neoliberal, a migração se torna essencialmente um deslocamento forçado, incluindo os fenômenos de migração ambiental, tráfico humano e contrabando de migrantes, migração miserável e deportações em massa.

Desde o seu nascimento, o Fórum Social das Migrações, em sua versão global e regional, tem sido palco de importantes debates sobre questões migratórias e marcos políticos. O Fórum sempre foi concebido como uma encruzilhada que revela que muitos caminhos podem ser realmente percorridos. Um dos principais legados que essa longa história de Fóruns nos deixou é que a migração possui pontos comuns em todo o mundo, mas ainda guarda peculiaridades de acordo com regiões específicas. Essa complexidade exige que as respostas locais, regionais e globais sejam combinadas para lidar com os desafios da mobilidade humana.

No entanto, a diversidade geográfica também é necessária para manter nossa estrutura global, o que implica um fortalecimento dos fóruns regionais. Até hoje, as Américas e os fóruns europeus têm sido realizados destacando as crises e deficiências na política de migração na Europa e na América Latina. É vital agora não deixar outras regiões para trás. Como o espaço do Fórum pretende ser mais influente na arena global, um fórum asiático e um africano precisam ser os próximos passos.

Tivemos ainda a oportunidade de aprender que, embora sejam necessárias respostas locais e globais, a importância das mobilizações sociais em nível local para reforçar as ações globais é crucial. Nesse sentido, o papel das organizações de base na promoção da mobilização é vital e merece destaque. O que precisamos agora para consolidar as estruturas de participação social para garantir a equidade e a justiça é a ambição de promover processos ascendentes de transformação social. A resistência e o conhecimento das organizações de base são vitais para enfrentar os problemas estruturais inerentes à migração forçada e avançar na construção de um outro mundo possível.

“Desde março de 2020, os migrantes e requerentes de asilo são os que mais sofreram com a falta de garantias para a sua proteção, a criminalização da solidariedade, a necropolítica e a violação dos direitos dos migrantes.”

Trata-se de programar e articular mobilizações que promovam a cidadania universal para os 1000 milhões de seres humanos que fazem parte da mobilidade global. Conforme destacado no contexto do Fórum Américas e do Europeu, duas das categorias mais vulneráveis de migrantes são as mulheres e os jovens. Essas duas categorias são, de fato, fortemente impactadas pelas políticas de externalização e militarização que estão sendo implementadas nas fronteiras, tanto na Europa quanto na América Latina. O primeiro papel que as mulheres migrantes desempenham nesta batalha coletiva é denunciar a violência de gênero, além de participar de campanhas de conscientização e assumir posições políticas de liderança, para aumentar a representatividade de si mesmas e de seus interesses nos espaços de decisão e garantir sua autonomia política.

O papel da população mundial como um todo, e especialmente das duas categorias vulneráveis – mulheres migrantes e jovens migrantes – devem continuar a participar ativamente em formas de organização social de cidadãos para realizar trabalho de defesa de direitos e influenciar governos e instituições. A fim de implementar as propostas levantadas durante o Fórum Américas e o Fórum Europeu, as ações devem ser realizadas em nível jurídico, político e social. A ideia fundamental que está na base de todas as propostas é servir os direitos dos migrantes. Nesta ótica, é imprescindível ouvir as histórias da população migrante colocando em primeiro lugar suas demandas e direitos; levando em consideração, principalmente, as das categorias mais vulneráveis.

Mais ainda, é fundamental destacar que as ações futuras devem proteger não apenas os interesses dos países de acolhimento, mas também os dos países de partida e de trânsito. Nessa visão, algo que precisa ser atendido o mais rápido possível é a criação de rotas migratórias regulares e seguras. Este objetivo deve ser alcançado por meio de acordos, programas humanitários, recomendações, parcerias estratégicas. Outra prioridade comum a todas as áreas discutidas nos dois Fóruns é a violação das leis e dos direitos humanos nas fronteiras. Essas infrações devem ser investigadas do ponto de vista jurídico e político pelo Tribunal, e, no nível institucional, os Estados infratores devem ser responsabilizados. Ao mesmo tempo, a participação dos imigrantes na vida política do país de acolhimento deve ser intensificada: os direitos políticos devem ser gozados pelo maior número possível de pessoas, visto que isso aumenta o sentimento de pertença na comunidade de acolhimento.

Para garantir a integração total, deve ser garantido o direito à igualdade de tratamento. Os Estados, tanto na Europa como na América Latina, devem desempenhar um papel fiador nesse sentido e devem promover mais ativamente os padrões internacionais. Isso pode ser alcançado através do desenvolvimento de parcerias com atores internacionais, encorajando o cumprimento, ratificação e implementação uniforme. Acima de tudo, para que qualquer tipo de proposta seja plenamente implementada, a mudança deve começar por baixo, por meio da educação intercultural, com intuito de conectar as pessoas sob a ideologia da inclusão e do respeito. A questão agora é: qual deve ser o papel do Fórum Social Mundial das Migrações neste contexto? Esse processo coletivo compartilhado, que já se arrasta há mais de 15 anos, assumiria, no futuro, a tarefa de influenciar e fazer lobby junto aos governos do mundo, atuando por meio de uma estratégia política? O objetivo deve ser partir do nível local, em uma lógica de baixo para cima.

O Fórum Social Mundial das Migrações deseja funcionar como um convite à mobilização, mas também como um método que conecta respostas em diferentes níveis, a fim de dar-lhes unidade e coerência. Os movimentos de justiça global e as organizações da sociedade civil hoje em dia detêm o poder de compartilhamento de conhecimento, defesa e lobby, que está crescendo ao longo do tempo. Por isso, o Fórum Social deve, no futuro, constituir uma nova forma de fazer política, alicerçada na cultura do trabalho em rede.

Para construir um Fórum plural, horizontal, participativo, mas com compromissos concretos de articulação permanente, os comitês organizadores devem estar cientes de que essa lógica de rede se tornou a base de um poderoso ideal político e cultural: uma lógica norteadora que fornece um modelo para formas emergentes de políticas democráticas diretas de âmbito local, regional e global. Na prática, as interações fluidas dentro da rede que ocorrem no contexto do Fórum deveriam ser combinadas com a existência de uma estrutura mais regular, trabalhando para a criação de um espaço unitário, uma plataforma permanente de lobby, com o objetivo de manter as relações que foram construídas até agora. O Fórum deve ser construído como um espaço para aquelas pessoas que não acreditam em partidos políticos, mas querem ser politicamente atuantes. O desejo para o futuro é que esta instância compartilhada nos ajude a compreender plenamente o fenômeno migratório em seus diferentes aspectos, causas e consequências; contribuir para uma melhor convivência e uma maior garantia dos direitos humanos de todas as pessoas: nativas e migrantes.

 

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Referências

European Commission (2019), Cláudia Pereira named Portugal’s Secretary of State for Integration and Migration. Disponível em: https://ec.europa.eu/ migrant-integration/news/claudia-pereira- named-portugals-secretary-of-state- -for-integration-and-migration#:~:text=- Cl%C3%A1udia%20Pereira%20named%20 Portugal’s%20Secretary%20of%20State%20 for%20Integration%20and%20Migration,- 21%2F10%2F2019&text=The%20 22nd%20government%20of%20Portugal, State%20for%20Integration%20and%20 Migration

European Commission (2007), Plan for Immigrant Integration. Disponível em: https://ec.europa.eu/migrant-integration/ index.cfm?action=furl.go&go=/librarydoc/ plan-for-immigrant-integration

European Commission (2019). Portuguese government approves national plan to implement Global Compact for Migration. Disponível em: https://ec.europa.eu/migrant- integration/news/portuguese-government- approves-national-plan-to-implement- global-compact-for-migration

Gainza, P. (2020), Migrar en tiempo de nuevas xenofobias y viejos racismos. Iniciativa Social para América Latina y el Caribe (2020), Voces y propuestas de America Latina y el Caribe. Transformaciones para salir de la crisis. Disponível em: https://periododesesiones. cepal.org/38/sites/pses38/ files/isalc_voces_y_propuestas_06.10. 2020fin.pdf

The UN Refugee Agency (UNHCR) (2018), Desperate Journeys: Refugees and migrants arriving in Europe and at Europe’s borders. Disponível em: https://www.unhcr. org/desperatejourneys/