Provas de cidadania

Lívia Apa

Nasceu em Nápoles. É investigadora, com trabalho na área dos estudos culturais dos países de língua oficial portuguesa. É também tradutora, tendo publicado em italiano, entre outros, Mia Couto, Ondjaki, Ruy Duarte de Carvalho, Mário Cesariny, Ana Luísa Amaral, Ana Paula Tavares. Faz parte da direcção do Archivio Memorie Migranti de Roma. Colabora com a revista Gli Asini de Roma.

O espaço SpinTime, em Roma, ficou famoso quando Konrad KraJewski, esmoler do Papa Francisco e cardeal da Diaconia Santa Maria Immacolata do Esquilino, se encarregou pessoalmente, acedendo ao precário quadro elétrico do edifício, de devolver o acesso à eletricidade no edifício, ocupado há quase dez anos por um grupo de famílias que ficaram sem casa e por migrantes. Hoje vivem lá cerca de 400 pessoas que todos os dias gerem este espaço comum, onde há também um restaurante, um teatro e uma biblioteca, onde se organizam espetáculos, concertos, debates, lançamentos de livros e iniciativas de solidariedade. O Esquilino é o bairro multiétnico por excelência de Roma, bem no centro da cidade, um espaço de vida real dentro de uma capital cada dia mais engolida pelo turismo descartável. E é também um bairro onde se experimentam formas alternativas de participação cívica, o mais possível inclusiva.

Foto: Alessandra Cutolo e Companhia Women Crossing

Na entrada do SpinTime há sempre um serviço de controle das entradas e das saídas, a segurança de quem lá vive é prioritária, todas as decisões são tomadas em assembleia, tudo se tenta organizar conforme as necessidades de quem lá vive. Há serviço de babysitting, de apoio escolar, uma pequena bolsa de emprego, um banco alimentar para uso interno. As crianças que vivem no edifício, que antigamente era uma sede da segurança social, frequentam a escola primária Di Donato. Foi nessa escola que a encenadora Alessandra Cutolo(1) conheceu um grupo de mulheres nigerianas com as quais fundou a companhia Women Crossing e com elas encenou Storie di sabbia e di mare, uma encenação dos traumas da viagem para chegar à Europa, baseado nas experiências pessoais das protagonistas. Alessandra pratica desde sempre uma ideia de teatro social, comprometido com a ideia que a arte é um direito universal fulcral. Desde há muitos anos que trabalha nas cadeias de Nápoles e em bairros considerados impossíveis, mas afirma que, pela sua experiência, quem se aproximou do teatro raramente voltou a praticar crimes, utilizando, pelo contrário, o que viveu no palco como momento de empoderamento e de viragem nas próprias opções de vida. Os seus espetáculos partem sempre de experiências vividas pelos atores. Ela acredita que é importante combater a ideia que o teatro é só para alguns e propõe uma ideia de teatro que se alimenta e se baseia nas experiências de uma determinada comunidade, defendendo que ele deve ser popular, coisa que, com esta dimensão, é ainda rara em Itália. As suas encenações são limitadas ao essencial, um lençol a evocar o palco, umas cadeiras.

O gesto dramático apresenta-se assim nu, entregue apenas à força representativa de quem está em cena. Uma ideia nova e antiga de fazer teatro, diz ela, que, acredita, pode resgatar quem o pratica do único destino previsto para as mulheres migrantes que é o de limpar as nossas casas. O seu método é partir de um texto e de encenar a situação. Não se escreve nada, não há nada para aprender de cor. É um método que se baseia na identificação e na empatia e que visa responder apenas a uma pergunta: “Que farei nesta situação?” devolvendo assim centralidade a algo de profundo e sentido, fazendo do ator o autor do que diz e não apenas um intérprete de uma determinada pauta. Durante a pandemia, teve lugar em várias zonas de Roma uma série de iniciativas organizadas pelo projeto ConDominio dos Teatros de Roma(2).

Foto: Alessandra Cutolo e Companhia Women Crossing

O projeto, nas palavras das organizadoras, a jornalista Conchita de Gregorio e Sandra Toffolatti, foi pensado a partir da experiência do confinamento, durante a qual os condomínios se tornaram “paisagem, horizonte, janela para o mundo”. ConDominio tenta explorar esta renovada relação com o espaço comum, amado, odiado, redescoberto, amplificado, onde a vida de cada um de nós passou forçosamente a acontecer durante longas semanas, sem possibilidades de fuga para o mundo “de fora”. Foi a partir desta contingência que o projeto escolheu em seis zonas da cidade – Salario, Rebibbia, Tor Pignattara, Mandrione, Esquilino, Tiburtino – espaços de condomínios onde fosse possível explorar, através do teatro, as novas formas de convivência comunitária surgidas durante o confinamento. Criaram-se assim pequenos palcos entre as varandas e os terraços dos prédios, onde foram encenadas pequenas experiências teatrais baseadas em textos muito diferentes entre si, e entre os quais se contaram também clássicos como Mistero Buffo de Dario Fo e Venere e Adone de Shakespeare. O objetivo foi o de reforçar os laços das pequenas comunidades que se reinventaram partilhando o mesmo espaço físico durante a experiência da pandemia, tentando explorar as possibilidades deste novo espaço comum.

O grupo do Esquilino encenou um texto de Chimamanda Ngozi Adichie A embaixada americana, e a partir desta experiência, Alessandra começou a dinamizar uma série de ações teatrais, não apenas nos terraços e nos telhados do Esquilino, mas também nos pequenos parques onde normalmente as crianças brincam ou vão de bicicleta, já que apenas ao ar livre era possível promover ações culturais. Foram espetáculos que não previam acesso à eletricidade, portanto não havia som, nem luzes. Foram sessões pequenas, íntimas, nas quais a distância entre público e atores ficou reduzida a quase a zero, facilitando uma dimensão de comunidade ainda maior.

Foto: Alessandra Cutolo e Companhia Women Crossing

Estas experiências de prática teatral insólitas reforçaram a participação no grupo de teatro. Narrativas Ao primeiro grupo das nigerianas do Spin Time, foram- -se juntando outras mulheres, sobretudo do Bangladesh, que muitas vezes estavam no parque com os seus filhos e que nunca tinham tido antes uma ideia do que é teatro. Aos poucos, também elas começaram a integrar a companhia, e com elas vieram mulheres de outras comunidades. Mais recentemente, juntou-se também um grupo de mulheres etíopes, que vivem no Quattro Stelle, um outro espaço ocupado, desta vez, na periferia de Roma, onde durante a pandemia foram organizadas ações de apoio alimentar. Na base das relações criadas durante a pandemia que as levaram a assistir a alguns espetáculos no Esquilino, as mulheres decidiram inscrever os seus filhos na escola Di Donato e integrar também o grupo, que já se constituiu como Gruppo di Teatro della scuola Di Donato.

Todas as ações são ainda realizadas ao ar livre, em lugares como o pequeno parque de via Statilia, onde teve lugar um laboratório cujo tema central, inspirado numa lenda tradicional, foi o da hospitalidade. Ver as mães etíopes contar esta estória às crianças italianas tem vindo a criar um interessante círculo virtuoso entre os que habitam o mesmo território e que se preparam, também assim, para partilhar os mesmos direitos.

 

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(1) Ver em https://percorsiconibambini.it/ primainfanziasc/2021/05/06/un-palcoscenico-per- -le-mamme-del-mondo-il-teatro-sociale-di-alessandra- cutolo/
(2) É possível ver os vídeos do projeto aqui: www.youtube.com/watch?v=wK_nWEl_LGE&- list=PLRND_muI4JTIR9PKj5Oq2uUypohiVCAtG Referências: https://www.glistatigenerali.com/teatro/ e-il-teatro-italiano-che-se-ne-fa-dellafrica/