O papel das multinacionais nas políticas de igualdade de género

Marianna Leite

Advogada, ativista, feminista, especialista
em género e desenvolvimento. A sua experiência no Direito é abrangente. No entanto, ao longo dos últimos anos dedicou-se
primordialmente à interseccionalidade em especial no que tange às questões de direitos humanos e políticas públicas na América Latina. Actualmente, investiga o impacto das corporações multinacionais no conceito de igualdade de género sob o prisma do pluralismo jurídico.

A retórica dos direitos formais, tal como defendida pelos organismos internacionais de desenvolvimento, nem sempre se traduz numa melhora da realidade quotidiana, em particular no que diz respeito às mulheres

Como é que o conceito de igualdade de género é afectado e/ou prejudicado pelas corporações multinacionais? As teorias do pluralismo jurídico estabelecem que as normas legais têm fontes plurais, são relacionais e não estáticas (Engle Merry, 1981; 1992). À luz das teorias do pluralismo jurídico, é possível afirmar que o Direito Internacional dos Direitos Humanos é tão afectado pelas esferas oficiais do saber como por ordens jurídicas não oficiais. Dado o crescente poder das corporações multinacionais como atores não-estatais, é importante mapear as mudanças sofridas e promovidas por estas em matéria de princípios e conceitos do Direito Internacional dos Direitos Humanos.

A questão visa compreender o papel dos conglomerados globais sobre os discursos de direitos humanos e, consequentemente, no enquadramento das políticas sociais e nos seus resultados. O objectivo é ampliar o nosso conhecimento em matéria de uso dos discursos de justiça social e os seus efeitos sobre as políticas e programas sociais. Tal justifica-se por uma lacuna no estudo sobre enquadramento das políticas sociais. Por outras palavras: embora haja uma literatura crescente na área de elaboração e análise de políticas sociais, não se sabe exactamente o papel das multinacionais nos efeitos do uso da linguagem de direitos humanos na formulação e implementação de políticas. Compreender essa lacuna é importante, porque as políticas sociais são o resultado de lutas políticas e não apenas o resultado delas (Pierson, 2004).

Nesse sentido, a elaboração de políticas pode, então, ser definida como o domínio da acção estatal visando a busca de uma agenda específica, como refere Molyneux (2007). É projectada através de uma série de debates e conflitos entre grupos e indivíduos com posicionamento e interesses específicos (Engle Merry, 1988). Por exemplo, a maioria das políticas sociais da América Latina conta com programas de redução da pobreza que reforçam as construções de género e tendem a re-tradicionalizar os papéis e responsabilidades de género. Assim, parte-se da seguinte premissa: os pacotes e/ou políticas de assistência social devem ser construídos e promovidos por razões além daquelas puramente retóricas, sob pena de não haver mudanças substanciais.

De facto, há uma grande lacuna entre a legislação aplicável e os resultados reais da política, como referem Htun e Power (2006). Problemas controversos de género, como o aborto e o acesso a anticonceptivo de emergência, se beneficiam de uma influência política muito pequena e muitas vezes pouco confiável. Tal pode ser, ainda que só parcialmente, explicado pela influência histórica do sexismo, embora possa, actualmente, ser reforçado por novos atores e dinâmicas, como, por exemplo, as empresas multinacionais. Neste sentido, é importante lançar luz nessas formas de influência formal e/ou informal.

Propõe-se, então, que o sucesso deste tipo de pesquisa depende de um quadro teórico baseado na literatura do pluralismo jurídico e na análise de discurso crítico, no sentido de determinar se os diferentes contextos institucionais e práticas discursivas afectam conceitos específicos de igualdade de género. Caso se responda afirmativamente a essa questão, ter-se-á que ver como afectam novas políticas e práticas e quais os seus efeitos sociais globais. Tal ocorre porque a análise dos processos discursivos considera todas as posições políticas que moldam certas intervenções políticas em termos da sua abordagem a uma questão específica, bem como sua capacidade de promover mudanças.

A Formação de Conceitos

Boaventura de Sousa Santos defende que a “colonização gradual dos diferentes racionais de emancipação moderna pela racional cognitiva-instrumental da ciência levou a concentração de energias e capacidades emancipadoras para ciência e a tecnologia” (2002: 7). No entanto, refere o autor, a promessa tecnicista não só deixa muitas promessas por cumprir como recria excessos de deficits muitas vezes agravando os problemas aos quais se comprometia solucionar. Este seria o que Arturo Escobar cita como um regime cíclico de estímulo de desejos e promessas não cumpridas, características do discurso do desenvolvimento. Desta sorte, podemos inferir que a suposta definição de termos técnicos como, por exemplo, o termo igualdade de género não compartilha da imparcialidade advogada por tecnicistas parte de instituições de desenvolvimento internacional. Partimos, assim, do pressuposto lógico de que não existem discursos e termos apolíticos. Logo, politizar a análise do discurso torna-se imprescindível.

Ao discutir a evolução das práticas de desenvolvimento internacional, por exemplo, Escobar refere que o discurso desenvolvimentista tem origens ocidentais e se baseia na exploração da produção cultural, social e económica do chamado “terceiro mundo” (Escobar, 2007). Dialogando com uma crítica pós-estruturalistas chamada “pós-desenvolvimento”, o autor afirma que as práticas e discursos desenvolvimentistas foram catalisadores para a invenção dessa ideia de “terceiro mundo”, no qual se incluem, na maioria das vezes, os continentes africano, asiático e latino-americano. Por fim, conclui que a profissionalização e institucionalização do desenvolvimento internacional possibilitou a criação de um grande aparato institucional, no qual o discurso é posto como um instrumento real de controlo social capaz de transformar realidades sociais, culturais e políticas. Ou seja, o discurso desenvolvimentista determinou quem era o “outro”, o “exótico”, o “subdesenvolvido”, o “excluído”, de forma a alterar sistematicamente o modus operandi da cooperação internacional. Por isso, se propõe que é absolutamente necessário partir das premissas colocadas.

Análise Crítica e o Discurso Mainstream

Ao elencar casos específicos de discursos do nosso quotidiano, Gillian Rose menciona a linguagem médica e artística como discursos particulares que criam limites e controles sobre quem participa desses discursos, quem tem poder sobre eles e como esse poder será exercido. Assim, a autora admite que uma análise crítica de discurso deve perpassar pelos imaginários verbais, visuais e textuais buscando os seus sentidos (Rose, 2001).

Digamos que um quadro específico retrata uma mulher no centro, sendo admirada por um homem. Pois bem, a autora diz que uma leitura crítica descreveria a mulher como imagem e o homem como o detentor desse olhar que define o quadro. Quer dizer, esse discurso visual tem o efeito de fazer com que a feminilidade e masculinidade sejam relacionais. Ou seja, a mulher não seria definida por si só, mas sim em relação àquilo esperado pelo homem. O mesmo ocorre no nosso imaginário social quotidiano. Para destronar os poderes em acção devemos utilizar-nos da análise crítica do discurso. A análise crítica do discurso requer um olhar que vai além da aparência das coisas, indo ao encontro dos seus significados reais (Rose, 2001).

Já Teun van Dijk (2015) afirma que a análise da crítica do discurso é um método de pesquisa que visa, primordialmente, estudar como o abuso de poder social, o domínio, e a desigualdade são produzidos, reproduzidos e resistidos em textos e conversas em contextos políticos e sociais. Este método requer uma posionalidade reflexiva explícita com o propósito de expor e desafiar a desigualdade social. O teórico elucida que a análise da crítica do discurso não é um método singular e rígido, mas um encontro interdisciplinar de teorias do discurso. Antes de mais nada, este método (ou conjunto de métodos) coloca-se flexível ao dialogar com várias disciplinas e contextos, facilitando, assim, a articulação de propostas e pesquisas voltadas para a redução das desigualdades através de perspectivas críticas.

A análise da crítica do discurso preocupa-se primordialmente com: i) problemas sociais e questões políticas; ii) estudos multidisciplinares; iii) interacções e estruturas sociais e os seus efeitos sobre práticas discursivas; e iv) formação, confirmação, legitimação, reprodução e modificação de estruturas discursivas relativas a abuso de poder na sociedade (van Dijk, 2015). A análise da crítica do discurso propõe-se a fechar a lacuna entre macro e micro-estruturas de formas distintas: estudando membros e grupos; acções e processos; contexto e estruturas sociais; cognitivo social e pessoal. Esta metodologia propõe o estudo de membros e grupos na análise histórica da evolução de significados atrelados ao termo igualdade de género.

Dimensão imaterial ou ideacional das políticas
– O Conceito de Género e Empresas Multinacionais​

Elisabeth Prügl (2017: 40) cita os autores Morrison, Dhushyanth and Sinha (2007) ao propor que o conceito de igualdade de género seja definido como a igualdade nos determinantes dos resultados para homens e mulheres, quer dizer, igualdade de oportunidades ou recursos, direitos e vozes. A mesma autora, ao fazer uma análise discursiva de trinta e quatro publicações do Banco Mundial, concluiu que novos consensos em torno de um “novo” neoliberalismo estão sendo responsáveis pela redefinição do significado do termo igualdade de género.

Desde 2001, o Banco Mundial vem atrelando a igualdade de género ao crescimento económico através do slogan “gender equality as smart economics” (Prügl, 2017: 30). A autora afirma que, neste contexto, o termo igualdade de género fica reduzido à igualdade de oportunidades, o que significa que a igualdade de género é definida em subordinação ao “mercado” e às oportunidades por ele proporcionadas. E, ainda mais preocupante, os próprios economistas do Banco Mundial afirmam que não há dados empíricos consistentes, comprovando que a redução da pobreza e crescimento económico leva à redução das desigualdades de género.

Apesar de abrir espaço para críticas às políticas neoliberais passadas, a definição do Banco Mundial não faz jus a décadas de activismo feminista, pleiteando o avanço de uma agenda progressista e holística. Tal é problemático porque, neste caso, o mercado passa a ser reconhecido como “mediador” das relações sociais, o que, por sua vez, dá margem para a objectifição e monetarização da própria. Esse fenómeno tem sido denominado de “neoliberalização do feminismo”, segundo Prügl (2017: 32). Como resultado desse fenómeno pode-se incluir: a transformação de valores e processos sociais em termos de “mercado”; a privatização de bens públicos; a limitação do comportamento humano em termos empresariais; e a construção de novas subjectividades subordinadas e reguladas pelo “mercado”.

Numa pesquisa realizada por Sofie Tornhill, esse tipo de abordagem paradoxal no que tange práticas e políticas de igualdade de género se mostra evidente. A autora atesta que as práticas e políticas de empresas multinacionais que operam no “sul global”, por vezes promovem demandas feministas e por vezes co-optam demandas feministas em prol de um objectivo neoliberal. A saber, refere, por exemplo, a campanha “5by20” da Coca-Cola Company incentiva o empoderamento das mulheres ao redor do mundo enquanto que foca em estratégias individuais baseadas no “mercado”.  Essa campanha compromete-se a empoderar 5 milhões de mulheres ao redor do mundo até o ano 2020. De acordo com os documentos da campanha, as mulheres seriam vitais no projecto de expansão corporativa da Coca-Cola. Como resultado, as demandas feministas em prol da igualdade de género são transpostas da seara política para a seara económica.

A mesma autora refere que as práticas corporativas acabam por priorizar o capitalismo competitivo (valorizando a igualdade em termos do “capital humano”, por exemplo) e, logo, legitimando as próprias desigualdades as quais se propõe solucionar. Vejamos, outras empresas como a Nike, a Goldman Sachs e o Walmart que também se comprometem a empoderar mulheres porque estas supostamente repassariam mais dinheiro à família do que os homens. Tal não é nada mais do que uma ratificação dos estereótipos de género que servem como obstáculo ao avanço da igualdade. Mais uma vez, as mulheres são essencializadas, definidas apenas em relação aos homens e à família e instrumentalizas em prol de objectivos alheios a elas mesmas.

David e Guerrina (2013) elucidam que até mesmo a nível da União Europeia há um paradoxo entre as políticas de género promulgadas e a praxis. Apesar do Tratado de Amesterdão determinar que a dimensão de género deve ser incluída em todas as áreas políticas europeias, a temática de género continua invisível a nível de políticas mais importantes como a segurança, as relações internacionais e a economia. De acordo com estes autores, o princípio do pragmatismo ganhou precedência sobre valores de base como a igualdade de género colocando este último numa posição mais frágil interna e externamente. Isso porque a União Europeia modificou o seu modus operandi em função da Política Europeia de Vizinhança passando, neste caso, a evitar a imposição de condições em países vizinhos e a aceitar argumentos de relativismo cultural com o propósito de evitar ser taxada como imperialista (David e Guerrina, 2013). Percebe-se assim que o “gender maisntreaming” fica muito aquém das expectativas e promessas criadas enm torno dessa mesma prática. Ao invés de iniciar um projecto revolucionário, o “gender mainstreaming” europeu falha ao isolar essa prática em temáticas menos importantes, logo deixando de desafiar hierarquias de poder responsáveis pelas posições assimétricas de homens e mulheres na sociedade europeia. Em que pese a retórica em prol da igualdade de género por parte de grandes instituições supranacionais e empresas multinacionais, vemos que há de uma maneira geral uma incapacidade em lidar com problemas estruturais e um movimento contínuo em prol de ideologias neoliberalistas que individualizam os problemas de género (logo tirando o peso das reais causas da desigualdade, i.e. as estruturais) e re-definem (co-optam) os termos com base nos ideais de “mercado”.

Conclusão

A retórica dos direitos formais, tal como defendida pelos organismos internacionais de desenvolvimento, nem sempre se traduz numa melhora da realidade quotidiana, em particular no que diz respeito às mulheres. Isso ocorre porque as políticas públicas voltadas para a justiça social não têm efeito se não inseridas numa cultura mais ampla de medidas políticas em prol de mudanças profundas e positivas.

Este artigo buscou chamar a atenção para as relações de poder existentes nos discursos baseados em direitos humanos, tratando de estudos que mapeiam as diferentes estratégias antagónicas, formas de resistência e tentativas de promover a mudança ao conceito de igualdade de género. Os estudos explicitados no artigo não só questionam o uso da linguagem positiva ou negativa, mas também os processos de subjectivação e marginalização de demandas sociais. Em virtude disso, este artigo propõe uma metodologia para a análise empírica do papel exercido pelas corporações multinacionais no desenvolvimento e implementação do Direito Internacional dos Direitos Humanos.

Por fim, esse artigo propõe o uso desta metodologia para análise desses processos. A transmutação dos discursos de género é essencial para o avanço de demandas feministas, pois se compromete a ver como e de onde se originam cada termo, como estes interagem com outros conceitos e como esses mudam ao longo do tempo. Trata-se de se garantir o controle sobre discursos políticos progressistas e as suas agendas e de se denunciar a cooptação desses discursos, quando este for o caso.

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