O Reencontro

Susana André

Jornalista da SIC há 23 anos. Foi pivot na SIC Notícias e esteve 10 anos na Grande Reportagem até integrar a editoria de internacional. Na última década fez grandes reportagens em Gaza, Angola, Venezuela, Turquia e Etiópia. Venceu vários prémios de jornalismo, sobretudo na área dos Direitos Humanos. Em 2017, recebeu o prémio “Cáceres Monteiro” por uma trilogia de grandes reportagens sobre Angola.

Addisalem não sabe quem abraçar primeiro. Dois braços não chegam para abarcar as duas filhas, a mulher e o neto que nunca viu. Passaram 18 anos desde o dia em que o jornalista etíope chegou a casa, no final de um dia de trabalho, e a encontrou vazia. Só dias mais tarde recebeu a carta que Nitsilam lhe escreveu antes de partir, e entregou a uma vizinha.

Eritreia com passaporte etíope, a mulher de Addisalem Hadgu escapou às deportações em massa do final dos anos 1990 provocadas pelo início da guerra entre os dois países. Dois anos de conflito tinham já provocado a morte de milhares de pessoas. Nitsilam Abraha não se sentia segura na Etiópia, mas não o partilhou com o marido. Addisalem não podia atravessar a fronteira e nunca as teria deixado partir. Em Fevereiro de 2000 (Fevereiro de 1995, de acordo com o calendário etíope) Nitsilam pegou nas filhas e voltou à casa de infância, na capital da Eritreia.

Addisalem diz que viveu 16 anos na escuridão. Não podia sequer sonhar com uma carta ou um telefonema. Entre Maio de 1998 e Julho de 2018 a única coisa em comum entre os dois países do corno de África era a tensão fronteiriça. Não havia ligações aéreas, comunicações telefónicas ou correspondência postal.

Foto: Susana André

No papel, as hostilidades terminaram em Dezembro de 2000 com a assinatura de um acordo de paz. Mas a Etiópia acabaria por recusar a decisão de um comité internacional que atribuiu à Eritreia a soberania sobre Badme, a zona no epicentro da guerra. A intransigência dos regimes ditatoriais que governaram o país nas últimas duas décadas fez alastrar o conflito até Julho de 2018 quando, num gesto histórico, o primeiro-ministro etíope, o reformista Abiy Ahmed, no poder desde Abril, prometeu cumprir o Tratado de Argel e retirar as tropas da região de Badme.

Uma semana depois da assinatura da declaração de paz, o jornalista Addisalem Hadgu era um dos 400 passageiros do primeiro voo directo entre Adis Abeba, a capital da Etiópia, e Asmara, a capital da Eritreia. “Foi como se me tivesse saído a sorte grande sem comprar bilhete”, disse entre lágrimas o jornalista da rádio nacional etíope perante as câmaras de televisão que o acompanharam até à casa da família. As filhas, Danayt e Clara, têm agora 30 e 36 anos – uma vida com saudades do pai. Vivem num dos países mais isolados e repressivos do mundo e fizeram ambas o serviço militar, obrigatório para homens e mulheres entre os 18 e os 50 anos. Na Eritreia, o período de recruta, que deveria ser de 18 meses, chega a prolongar-se por mais de 20 anos e a maior parte da população acaba a servir de mão-de-obra em grandiosas obras públicas. No país, sucedem-se as denúncias de mulheres violadas pelas chefias militares.

Clara e Danayt trabalham ambas para o Estado – não há muito mais por onde escolher. Há 7 anos, Clara deu a Addisalem um neto que o avô não sabia ter. Com as filhas nos braços e o neto no colo, o jornalista procura palavras. Como resumir num encontro 20 anos de vidas? Nitsilam é a única que controla as lágrimas. Conta que durante anos procurou refúgio na igreja para que as filhas não a vissem chorar. Agora, diz, “é tempo de sorrir e celebrar”.

Desde que as ligações aéreas entre os dois países foram reabertas, há 5 meses, Addisalem já viajou duas vezes para Asmara. Mas um voo para a capital da Eritreia ronda os 150 euros, pouco menos que o salário do jornalista na rádio estatal.

Addisalem quer trazer a família para Adis Abeba, mas sabe que a mudança tem custos e riscos. “Os governos dos dois países tinham obrigação de nos apoiar”, defende o jornalista, “afinal estas separações entre famílias foram causadas pela intransigência dos regimes”. Addisalem tem 60 anos – está a poucos meses de deixar de trabalhar. Se emigrasse agora para a Eritreia perderia o direito à reforma, por mais pequena que seja (e cujo valor ainda desconhece).

A mulher não trabalha e as filhas têm empregos mal pagos. Addisalem acredita que na capital etíope conseguiriam recomeçar a vida. O país está em crescimento económico e desde que o novo primeiro-ministro chegou ao poder que se respira melhor.

Nos muitos cafés de Adis Abeba voltou a falar-se abertamente de política. A acompanhar o macchiato, herança do curto domínio italiano, no tempo de Mussolini, os etíopes lêem agora jornais que não passariam no crivo da censura. Abyi Ahmed pôs fim ao estado de emergência que durava desde Outubro de 2016 e servia sobretudo para conter protestos populares.

Os jornalistas ironizam e queixam-se de não conseguir acompanhar a velocidade das mudanças. Centenas de prisioneiros políticos foram libertados e dezenas de opositores exilados regressaram ao país. O novo chefe de Estado demitiu ainda o poderoso chefe das prisões, onde a tortura era uma prática quotidiana. Abyi Ahmed promete abrir a Etiópia ao investimento estrangeiro e criar empregos. Adorado pela maioria, o primeiro-ministro tem a imagem estampada em t-shirts e posters que ornamentam táxis e tuk-tuks de Norte a Sul do país.

São 10h da manhã em Adis Abeba. Addisalem Hadgu abre o microfone para dar conta do encontro entre o primeiro-ministro etíope e o presidente francês, em Paris, na primeira visita oficial de Abiy à Europa. As notícias seguem com as declarações de Donald Trump a ameaçar encerrar a fronteira com o México. O presidente dos EUA pondera enviar militares para a zona, para travar a caravana de migrantes.

“Felizmente, o nosso muro caiu”, comenta o jornalista, com o microfone fechado. “Continua a haver centenas de famílias separadas, mas a reabertura das fronteiras já beneficiou muita gente”.

Durante as últimas duas décadas, os cerca de cinco mil cidadãos da Eritreia que todos os meses fogem da miséria e da opressão, rumavam sobretudo à Europa. Uma viagem que obriga a longas caminhadas no deserto até à Líbia e deixa os migrantes à mercê dos traficantes para a perigosa travessia do Mediterrâneo.

Desde que o acordo de paz foi assinado, há cinco meses, muitos eritreus têm optado por um destino mais próximo e seguro – milhares cruzaram já a fronteira da Etiópia em busca de um futuro menos sombrio.