Jamaika: podia ser um final feliz

Rita Colaço

Nasceu em Mação em 1979. Cresceu no meio de rádios-piratas, mas licenciou-se em Geografia e Planeamento Regional, na Universidade Nova em Lisboa. Em 2001, fez o Curso de Especialização em Jornalismo, no CENJOR. Na Antena 1 desde 2003, actualmente é coordenadora do programa Grande Reportagem. Já recebeu duas vezes o Prémio Gazeta de Rádio e esteve nomeada para o Prix Europa, com a grande reportagem “Jamaika também é Portugal”.

Foto: Rita Colaço

 

O presidente está à porta de Adelaide, mas não chega a entrar.

Está colado na fachada cor-de-rosa o rosto de Evaristo Carvalho, presidente de São Tomé e Príncipe. Em 2017, pela primeira vez, um chefe de Estado ousou entrar num bairro que nasceu clandestino há 30 anos. Para os moradores é o Bairro da Jamaika. Com “k”, do graffiti pintado num muro que isola o lugar. Oficialmente, chama-se Vale de Chícharos. Fica no Seixal, às portas de Lisboa.

A cama de Adelaide não tem andar certo. Depende da chuva. Pode ser na cave, aberta ao frio. Pode ser no rés-do-chão, quando a cave inunda com os excrementos da fossa entupida dos vizinhos.

“Eu luto muito para ter isso. Vê? A água vem por aqui, até aqui.”

Adelaide, 56 anos, divide casa com a humidade, os mosquitos, os ratos, as baratas e com o filho Fred, de 37 anos, que tem convulsões quase diárias desde que em pequeno foi vítima de malária cerebral. Enquanto Adelaide viver, tem de viver para este filho. “Mãe, Deus dá paciência. Paciência mesmo. Até a mãe morrer fica com paciência com os filhos”.

Foi por Fred que Adelaide veio há 20 anos para Portugal, ao abrigo de um protocolo de cooperação na área da saúde entre o Estado Português e os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP). Mas hoje está entregue à sorte.

A cave de Adelaide tem duas janelas: uma no quarto, que mal se fecha com a ajuda de um ferro; outra na sala que é um buraco aberto à chuva e ao frio. É por isso que, de vez em quando, dorme aqui em cima, no rés-do-chão. Um antigo pátio que hoje é um café improvisado com telhado de zinco. Adelaide serve bebidas, frango e banana-pão frita “de jeito para ganhar mais um pão” já que recebe quase nada desde que há cinco anos foi obrigada a deixar o emprego de cozinheira para cuidar do filho.

Adelaide vive numa casa que não é dela. Nem legalmente uma casa é.

No bairro da Jamaika vivem 1300 pessoas, mas o número tem sido variável ao longo dos anos.

A maioria tem berço em São Tomé e Príncipe, mas também há angolanos, guineenses, cabo-verdianos e portugueses. Vivem em prédios de sete, cinco, seis andares. A altura vai crescendo à medida das necessidades.

Vale de Chícharos era uma quinta com vinha e árvores de frutos, onde viveu o artista plástico Manuel Cargaleiro durante 15 anos. No final da década de 1970, o empreiteiro Fernando Cardoso comprou os terrenos e começou a construir o que seria um conjunto de nove prédios e mais algumas vivendas, mas acabou por abrir falência no final dos anos de 1980. No lugar, sobraram esqueletos de betão.

Logo depois, vários imigrantes começaram a ocupar a zona, sobretudo africanos vindos das ex-colónias. Ergueram paredes e pisos de tijolos por entre os pilares adormecidos. Fizeram puxadas de luz, de água e usaram as caves como fossas.

O bairro tem vista para casas desenhadas a régua e esquadro, mas os vizinhos não se misturam e chamam a polícia quando a música no Jamaika se prolonga até tarde.

Muitos serviços de telecomunicações ou mesmo de entregas de compras também se recusam a entrar no bairro.

“Por quê? Por sermos pretos? É por isso?” Dumas tem 28 anos e formou-se em Engenharia Eletrotécnica no Instituto Politécnico de Setúbal. Veio de Angola viver para Portugal com o pai quando tinha apenas 10 anos. Chegado à faculdade, estranharam-lhe a presença pelas longas rastas: «Como é que tu com esse cabelo conseguiste vir para a faculdade?»

Vivem assim no Jamaika. Numa geografia de indiferença, arredados da vizinhança e de uma luta de bastidores que desconhecem.

Durante 30 anos, o bairro de Vale de Chícharos esteve refém de um jogo do empurra que se consegue resumir num parágrafo. Os terrenos do Jamaika têm um dono – a construtora Urbangol – que alega não conseguir tomar posse efectiva do lugar e avançar com um projecto de 170 fogos de luxo, enquanto a zona estiver ocupada. A Urbangol alega que o realojamento dos moradores do Jamaika tem de ser feito pela autarquia do Seixal. A autarquia do Seixal alega que essa é uma competência da Urbangol e do governo. O governo central advoga não ingerência autárquica e a câmara sublinha que não pode assumir toda a responsabilidade sobre a habitação.

E vai-se ouvindo no bairro “Jamaika… Jamaika é uma fonte de miséria e de riqueza ao mesmo tempo. Ou seja, miséria para os que vivem cá e uma fartura para os que não vivem cá e que vivem do bairro.”

Entre promessas adiadas ou mesmo evitadas, Vale de Chícharos foi-se tornando num dos maiores núcleos habitacionais precários de Portugal.

Os prédios de tijolo à mostra foram ganhando cada vez mais andares e as varandas foram vestindo a pele de divisões. O risco de colapso sobre 1300 vidas só fez soar a campainha em 2017, quando o governo e a Câmara Municipal do Seixal anunciaram, finalmente, um plano de realojamento para 234 famílias, que só deverá estar concluído em 2022.