O Tempo da Revolta

Donatella di Cesare
Edições 70, 2021,
Lisboa

Ana Luísa Silva

Trabalhou como gestora de projetos de saúde comunitária na Nigéria, em Moçambique e Madagáscar. Tem Mestrado em Estudos do Desenvolvimento pela London School of Economics e é doutoranda na mesma área na Universidade de Lisboa. O seu interesse de investigação é a inovação na cooperação para o desenvolvimento, com foco na sociedade civil.

No ano da pandemia, marcado por episódios de repressão sistemática do espaço público e da sociedade civil um pouco por todo o mundo em nome da saúde pública, a filósofa italiana Donatella di Cesare escolheu escrever um pequeno livro sobre a revolta, publicado em Portugal pelas Edições 70, em janeiro de 2021. O Tempo da Revolta é um belíssimo ensaio para refletir sobre um conceito muito menos presente no debate político-filosófico do que o conceito de revolução, mas não menos importante e pleno de significado.

O livro começa por fazer um paralelo ao mesmo tempo improvável e óbvio sobre um dos episódios mais marcantes de 2020: a morte de George Floyd às mãos de um agente da polícia do Estado de Mineápolis, nos Estados Unidos da América. O episódio tornou-se mediático não só por ser mais um doloroso episódio na história recente de repressão e violência racial da polícia norte-americana, mas também devido ao impacto causado pelas últimas palavras proferias pela vítima: “I can’t breathe” (“Não consigo respirar”). Di Cesare observa que estas palavras “assumiram um valor emblemático graças a uma coincidência não casual, revelada pelo secreto sincronismo da História.

Aquela morte terrível não foi efeito do biovírus que nos impede de respirar, mas obra de um abuso racista perpetrado com técnica policial. De súbito, a respiração surgiu em todo o seu significado existencial e político” (p.12). Aquele que se tornou o hino da revolta durante o ano em que um vírus que afeta principalmente o sistema respiratório abalou o mundo não esteve relacionado com o vírus em si, mas com a asfixia dos mais vulneráveis, das minorias, das comunidades periféricas, que sofrem diariamente a opressão do capitalismo globalizado, seio de desigualdades cada vez maiores e mais evidentes. Di Cesare tem trabalhado nos últimos anos vários temas ligados aos desafios políticos e éticos da globalização, nomeadamente as migrações.

À semelhança de pensadores críticos da área das Relações Internacionais, a autora observa que o atual sistema capitalista, assente na globalização, se expande num contexto internacional ainda organizado em torno da centralidade dos Estados, mas em que os Estados já não são os únicos atores de relevo nem de legitimidade. A revolta, que di Cesare situa na história, na filosofia e na ciência política, não é fácil de se situar nesta arena de várias legitimidades que se confrontam entre si. Afinal, a revolta tem raízes no protesto individual, sendo muitas vezes ligada ao anarquismo e ao protesto violento. Não tem o carisma da revolução, o verdadeiro processo que leva à mudança social, vista geralmente através de um prisma positivo.

Mas seria um erro não olhar para os muitos momentos de revolta do século XXI, das “primaveras árabes aos Indignados, do Occupy ao Parque Gezi, do Black Lives Matter às mulheres de Kobane, a NiUnaMenos – múltiplos, variados, mas inegavelmente intensos” (p.73), como uma manifestação de um sistema doente, desequilibrado na distribuição de recursos e de poder. E apesar das diferenças entre as diversas revoltas e manifestações de descontentamento que acontecem um pouco por todo o mundo, há fios condutores que é importante identificar – e é este o (ambicioso) objetivo deste ensaio.

A opressão do espaço cívico mostra sinais preocupantes de agravamento: o último relatório Civicus Monitor, elaborado pela Aliança Civicus, regista um declínio significativo na percentagem de pessoas que vive em países com um espaço cívico classificado como aberto ou restrito (de 17,6% em 2019 para 12,7% em 2020). Episódios mais recentes (já em 2021), como a viragem anti-demo crática em Mianmar ou a repressão das manifestações contra as políticas económicas do governo da Colômbia, são exemplos sangrentos e representativos de uma realidade cada vez frequente. No entanto, esta realidade também é feita de episódios pacíficos, mas imponentes, como as recentes manifestações contra o governo de Jair Bolsonaro, no Brasil. A revolta é apenas uma das facetas da sociedade civil em ação, mas é hoje em dia uma faceta importante que as reflexões de Donatella di Cesare nos podem a ajudar a navegar a realidade, enquanto pensamos sobre espaço cívico, transformação e mudança social.