Abre a janela

A House Without Windows, de Marc Ellison e Didier Kassaï (Humanoids, 2021)

Pedro Moura

É crítico e investigador de banda desenhada, escrevendo sobretudo nos blogues www.lerbd.blogspot.com e www.yellowfastandcrumble.wordpress.com. O seu primeiro livro de banda desenhada, Os Regressos, em co-autoria e desenhos de Marta Teives, foi publicado recentemente pela Polvo.

Quando se escrevem coisas como “A República Centro-Africana é o pior país para se ser criança no planeta”, há algo que funciona como um adágio, fazendo brilharete em estatística mas revelando quase nenhuma vida em si mesmo. É preciso não ficarmos somente pela rama, não ter medo de perguntarmos algo que faça vibrar as pessoas dessa realidade e as suas vozes. A um só tempo lúdico e lúcido, o artista e autor de banda desenhada da República Centro- Africana Didier Kassaï havia-nos tecido, com Tempête sur Bangui, uma auto-ficção plenamente consolidada na sua própria experiência da guerra civil e dos escolhos sentidos, mas ao mesmo tempo na das resistências e pequenas vitórias, na sua nação. Com ele, regressamos ao país, desta feita na qualidade de repórter gráfico, acompanhando o trabalho jornalístico, textual e fotográfico, do britânico Marc Ellison, repórter para canais internacionais como a BBC ou a Al Jazeera.

Este pequeno livro oblongo constitui- se enquanto documentário, focado exclusivamente nas crianças da República Centro-Africana, de certo modo afastadas daquela série semi-ficcional do artista. Apanhadas pelos conflitos que desde 2013 interromperam as suas infâncias e os obrigam a toda uma vida de medo e soluções rápidas de sobrevivência, espraia-se aqui a vida nas ruas de Bangui, ou em campos de refugiados, ou ainda na miserável indústria mineira de diamantes, que destrói culturas, vidas, biomas. Casos de excepção, reserva-se a fuga constante, toda a espécie de biscates, as mais das vezes perigosos e ilegais e mortíferos, se não mesmo abjectos.

E a abjecção espreita sempre ao virar da esquina. Entre as forças dos Seleka ou dos Anti-Balaka, a violência não é um espectro, é a condição. A falta de segurança, a certeza da fome, a pobreza eterna são os pilares destas vidas, apesar dos pequenos esforços de certas instituições, locais ou internacionais, em criar refúgios e espaços de salvação, dos corpos e das almas, neste país que os abandona órfãos, não apenas de pais, mas de quase toda a dignidade humana. O livro devolve-a, ao endereçar directamente as perguntas, nomeado cada um dos entrevistados, tomando tempo em permitir que eles mesmos se construam textual e visualmente na tessitura deste livro. Acima de tudo, não se permite que ninguém surja como que diluído em estatísticas somente, mas ganhe contornos bem moldados e salientes de pessoas, com os seus elementos internos e dialogantes.

Não se pretende aqui criar grandes contextualizações sócio-políticas ou históricas, nem ancorar curvas de desenvolvimento (ou catástrofe) em comparações macro-económicas. Estamos no rés-do-chão, a olhar as pessoas nos olhos, a testemunhar as suas vidas. A House Without Windows – jogando precisamente com a ideia de ser um país cujo olhar externo não se coalesce numa atenção mais firme – apresenta pequenas sequências de banda desenhada, debuxadas mais livre e esquematicamente, dramatizando os encontros dos jornalistas com os seus interlocutores, das crianças elas mesmos aos professores das escolas-refúgio e médicos no terreno (sendo este um projecto co-financiado pelos Médicos Sem Fronteiras), ou mesmo encenando alguns dos episódios sofridos pelos protagonistas. Retratos abundam, quer dos sketches de Kassaï, mais duradouros, calmos e em aguarelas detalhadas e cuidadas, quer das fotografias de Ellison, assim como os códigos QR para aceder a vídeos em 360º das desoladas paisagens visitadas por ambos.

Tal como outros artistas-repórteres (penso sobretudo em Edmond Baudoin e Troub’s), também este duo parece ter como fito, mesmo que não de modo explícito, inquirir sobre os sonhos e esperanças destes jovens. Talvez o que afirmo revele mais da minha contortável bonomia burguesa do que outra coisa, mas não deixa de ser desarmante a candura com que se alimentam esperanças não apenas de sobrevivência, mas de realização pessoal e futura, no seio destas paragens violentadas por anos de conflitos cuja solução se nos depara como avassaladora, se não mesmo impossível de conceber. Mas no entretanto, escancaram-se as janelas para que possamos também ver, e esperar que a ventania da atenção leve a alguma acção.