Gostaria de iniciar este texto com uma sentida homenagem a António Dias de Deus, que faleceu no passado Novembro, e que nos deixou não apenas o melhor volume sobre a história da banda desenhada portuguesa até à data – Os Comics em Portugal. Uma história da banda desenhada (Cotovia/Bedeteca de Lisboa, 1997) – como encetou, de forma séria, o estudo histórico e balizado desta arte no nosso país. Tive a honra e privilégio de contar com a sua presença no programa televisivo Verbd (RTP 2, 2007), no qual partilhou o seu conhecimento e leitura desta disciplina.
Nesse mesmo programa, o historiador apelida o período dos anos 1920-1930, quando a banda desenhada ganha um papel de meio de entretenimento para as massas, sobretudo infantil, de “Idade de Ouro”. Todavia, paradoxalmente, quereria discordar nesse aspecto. Dias de Deus terá toda a razão quando afirma que esse epíteto se associará a essas décadas, qualificando que “do ponto de vista materialista [marxista]”, foi nessa altura que a banda desenhada mais vendia. Sem dúvida. Mas se entendermos antes como mais significativo, do ponto de vista político e cultural, a exponenciação das vozes que se auto-representam nessa mesma arte, apesar de drasticamente com menor fortuna financeira, é na contemporaneidade que vivemos uma época de diversidade de agentes jamais experienciada antes.
Parte dessa diversidade encontrar-se-á precisamente na quantidade de mulheres autoras de banda desenhada a trabalhar nos nossos dias. Por ocasião da publicação de Nódoa Negra (Chili Com Carne, 2018), uma antologia que reúne várias autoras contemporâneas de banda desenhada a viver e trabalhar em Portugal, cuja chefe de edição foi a artista Dileydi Florez, gostaria de tecer algumas considerações sobre as possibilidades do trabalho de cooperação entre artistas mulheres, e como isso se tem expressado no campo da banda desenhada. Este texto é menos uma crítica e leitura desse volume, se bem que o empregaremos
como “ilustração” de alguns pontos.
Soror
Ainda que a palavra sororidade tenha, naturalmente, uma origem antiga na nossa língua, o seu emprego no presente contexto quer associar-se ao trabalho teórico em torno dos esforços interseccionistas da segunda onda do feminismo, isto é, uma capacidade maior em encontrar em que medida é que a construção de uma comunidade e a convergência de uma luta, construção, contributo positivo, poderá ser mais prolífico do que um foco nas diferenças de contextos, que não devem jamais ser negados, mas tampouco transformados em elementos hiperbolizados que levem à inércia ou incapacidade de diálogo.
Estamos a viver um momento em que não se pode, com rigor, afirmar que não existe acesso a canais de produção e divulgação cultural para criadoras mulheres. Haverá dificuldades específicas? Possivelmente, mas ter-se-ia que argumentar com muito cuidado e precisão em que sentido se operaria essa limitação. É verdade que alguns nomes são ainda virtualmente desconhecidos entre os leitores portugueses de banda desenhada (para não falar dos leitores em geral), como os de Carla Speed McNeil, Liv Strömquist, Geneviève Castrée, Marguerite Abouet, Gabrielle Bell, Julie Doucet, Anke Feuchtenberger, as primas Tamaki, Isabel Greenberg, ou Catel Muller (muito diversas entre si em termos de géneros, humores, estilos e funções), e que a recepção de algumas das obras publicadas por cá – entre outras, as de Alison Bechdel, Marjane Satrapi, Raina Tegelmeier, Noelle Stevenson ou G. Willow Wilson e colaboradoras respectivas – é muito atenuada, face à “vox populi” em torno de produções mais populares. Mas, de uma forma mais ou menos informada, integrada ou diversa, editoras como a Chili Com Carne, a Escorpião Azul, ou a Polvo contam nos seus catálogos com bastantes autoras, sem quaisquer desculpas ou estratégias diferenciadas.
Está fora de questão fazermos aqui uma história enlatada da banda desenhada “no feminino” (seja o que isso for) em Portugal, ou mesmo no mundo, mas se houve já antes esforços de criar espaços exclusivamente femininos de banda desenhada (o fanzine Gasp, de 1992, editado por Diniz Conefrey, ou os All-Girlz Zine, de 2011-2012, editados por Daniel Maia), nos nossos dias não seria necessariamente forçoso, já que tem havido abertura transversal, e sem quaisquer estranhamento. Assim, deve entender-se a antologia Nódoa Negra como tão-somente um gesto de colaboração entre artistas, criadoras de banda desenhada, com o intuito de criarem um projecto em conjunto. Um gesto de colaboração que se quer colectivo, solidário e, devido ao tema, especular na sua resolução. É que Nódoa Negra pauta-se pela participação das suas onze autoras – Cecília Silveira, Patrícia Guimarães, Hetamoé, Inês Cóias, Inez Caria, Marta Monteiro, Mosi, Susa Monteiro, Sílvia Rodrigues, Bárbara Lopes e a própria Dileydi -, e a jornalista Sara Figueiredo Costa com um texto que serve tanto de programa como de prólogo, como resposta à ideia de “Dor”, entendida quer de forma física quer emocional ou psicológica, sem jamais descurar facetas ainda mais alargadas.
“Não há qualquer necessidade de tentar compreender qualquer trabalho feito por uma autora mulher como tendo de fazer forçosamente parte de um conjunto de ‘assuntos femininos’ “
O pessoal é o político
O desenvolvimento da banda desenhada, enquanto produção cultural, não se dá jamais num “vazio ideológico” (Baetens 2004), mas emerge antes num contexto pluridisciplinar fértil, para o qual também contribui. Se exceptuarmos a recepção massiva que tem sido dada à banda desenhada de super-heróis e fantasia pela indústria cinematográfica e televisiva dos nossos tempos (que abordei ligeiramente no último Mundo Crítico), não deverá ser muito surpreendente notar como têm sido, em círculos mais afectos à literatura, academia e debate político, as bandas desenhadas de cariz autobiográfico aquelas com maior fortuna crítica. Há mesmo um prestígio que lhes está associado que têm garantido a atenção de prémios literários e discussões teóricas, sobretudo em centros de produção como os Estados Unidos da América ou França.
E, no seio dessa recepção, têm sido particularmente as bandas desenhadas feitas por mulheres aquelas que têm fomentado uma atenção teórica mais estruturada. As razões são complexas, mas digamos que, em parte, tem a ver precisamente como esses textos complexificam a questão entre a experiência absolutamente individual das suas autoras e a possibilidade de criação de empatia junto aos seus leitores (homens inclusive), conducente a uma solidariedade e à actividade política comum. Uma autora como Lynda Barry (One! Hundred! Demons!, The Greatest of Marlys) propôs mesmo o termo, semi-facecioso, de “autoficcionalografia”, para dar conta da mescla entre a “verdade” dos factos recontados e os filtros de fantasia, de género ou de ficcionalidade que servem para dar melhor conta dos afectos e traumas da vida real. Com efeito, se Nódoa Negra tem poucas histórias claramente autobiográficas (possivelmente apenas a de Dileydi Florez é explícita nesse sentido, mesmo que possamos inferir que outras autoras exploram dimensões auto-referenciais), o tratamento de vidas comuns e quotidianas é proposto como plataforma de expor a dor, nas suas mais distintas vertentes e implicações. E se, com Maria Filomena Molder, aceitarmos que “[a] dor é o nosso fundo, é ela que nos obriga a procurar auxílio, a caminhar ao lado de alguém” (2003: 115), é sobretudo impactante que esse caminhar com alguém esteja sublinhado menos nas histórias individuais do que no facto de estarem juntas neste livro.
De forma alguma a ideia de “trauma” serve aqui uma putativa redução de vitimização das suas autoras, quer as da antologia quer as de todas as que exploraram esse caminho, sendo antes um escalpelo de análise de violências sistémicas nas nossas sociedades. Como afirma Jane Tolmie, em relação a todo um conjunto de textos diversos, dos mais gravemente explícitos aos mais fantásticos, esta produção “assinala traumas repetidos e quotidianos, traumas de desigualdade de sexo [gender], traumas que têm lugar no lar e são levados a cabo e repetidos todos os dias. De certo modo, estes textos falam do que é perfeitamente comum, e o que é perfeitamente comum é que é impossível separar a mente do corpo, a palavra da imagem, a emoção da política” (2013: xvi). Essa inseparabilidade, senão mesmo indiscernibilidade, convida, muitas vezes, a abordagens mais experimentais que desregulam as estruturações convencionais da banda desenhada, e uma análise da participação de Hetamoé, Marta Monteiro, Patrícia Guimarães e, em menos escala, Inês Caria, são prova disso.
É possível, se bem que isso exigiria outra contextualização, identificar uma relação íntima, estrutural, entre a emergência da banda desenhada autobiográfica em sentido lato, quer nos Estados Unidos, em França, no Japão e mesmo em países periféricos como Portugal (se bem que numa escala muito mais reduzida), e os movimentos políticos e artísticos feministas dos anos 1960 e 1970 nesses mesmos locais (veja-se, por exemplo, a discussão de Jared Gardner, 2008: 14). Sem querer excluir os praticantes masculinos, nem eras anteriores ou posteriores, houve um exponencial surgimento de autoras nestes movimentos e forças culturais que moldariam as disciplinas da fotografia, da performance, do teatro, do cinema, em questões implicando os próprios autores no centro da representação das suas respectivas obras. Poder-se-iam arrolar nomes tais como os de Maya Daren, Jo Spence, Carolee Schneemann, Nan Goldin, Sophie Calle, Cindy Sherman, Yoko Ono, Marina Abramovic.
A razão dessa emergência moderna, ainda que permita toda uma história multifacetada e transversal com outros objectos históricos, tem a ver com as próprias características da modernidade, que, nas palavras de Baetens, é “obcecada pelo culto da autenticidade ou, para se ser mais exacto (e a nuance é capital), uma recusa da inautenticidade”. Assim, é menos importante colocar a questão de “mas isto aconteceu mesmo assim?” – algumas das histórias das autoras de Nódoa Negra têm mesmo protagonistas masculinos, como por exemplo as de Mosi e Susa Monteiro – do que “em que medida é que compreendo a experiência da dor que está a ser demonstrada?”
Este é o meu corpo
Uma das vertentes mais significativas da banda desenhada no feminino é atenção para o corpo próprio das autoras. A banda desenhada autobiográfica passa, na sua esmagadora maioria, por um processo a que chamei, noutro contexto, de “torção”: o autor representar-se-á, a si mesmo, não através de um pronome pessoal na primeira pessoa, como acontece nos textos literários (o famoso “pacto autobiográfico”, teorizado por Philippe Lejeune), mas num desenho que está na terceira pessoa, isto é, uma personagem que participa do universo diegético da banda desenhada tal qual outra personagem qualquer. Mas a negociação de representação implica quase necessariamente uma discussão sobre as várias estratégias que se podem empregar ou, nos melhores exemplos, ao emprego de várias formas de auto-representação, que podem levar mesmo a uma aparente incoerência gráfica ou inconsistência na construção da auto-personagem. A razão, todavia, terá menos a ver com uma falta de capacidade de manter essa coerência, que acaba por ser fictícia, mas o respeito pela inconstância das “máscaras” ou “papéis” sociais que mantemos ao longo da nossa vida ou nos vários círculos de relações (familiares, profissionais, sexuais, imaginárias, etc.).
Esta possibilidade de variação, a que a teorizadora Catherine Mao chama de “flutuação de identidade” (flottement identitaire, Mao 2013), está presente desde que a banda desenhada autobiográfica surgiu, se seguirmos uma abordagem mais conservadora, assinalando-a nos Estados Unidos na década de 1960, associada ao movimento dos “underground comix” (v., por ex. Grove 2004 e Chaney 2011). Robert Crumb, na sua história “The Many faces of Robert Crumb”, publicada em XYZ Comics, de 1972, aborda em poucas páginas questões de subjectividade, auto-apresentação e máscaras sociais. Mas, a nosso ver mais importante, em 1975, na revista Arcade Comics no. 3 (republicado em Love that Bunch, Fantagraphics, 1990), a artista Aline Kominsky (que mais tarde iniciaria uma relação duradoura com Crumb), publicou a história “The Bunch Plays with Herself”. A meu ver, esta curta – apenas duas páginas, 18 vinhetas no total – é uma espécie de nexo para a forma como o corpo humano viria a ser considerado pela esmagadora maioria da banda desenhada autobiográfica futura, sobretudo nas mãos de autoras. A personagem Bunch, uma semi-velada versão da autora quando adolescente, explora o corpo sob uma catadupa de “micro-eventos”, coçando-o, cheirando-o, deixando-se queimar ao sol, rebentando borbulhas, comendo, masturbando-se, e terminando com a afirmação, “o meu corpo é uma fonte de inesgotável entretenimento”, celebrando, dessa forma, a um só tempo, um certo grau de autonomia, as capacidades múltiplas do corpo, e as suas características íntimas, independentemente de se integrarem num filtro expectável tal qual disposto pela moralidade, a religião, a educação, ou até a higiene. Se considerarmos o corpo como “talvez a mais estranha das materialidades” (Highmore 2010: 119), a sua exploração por Kominsky abre perspectivas afectivas no que diz respeito ao auto-retrato, auto-reflexão e construção do si.
De certa forma, é no cadinho dos underground comix que surgem os primeiros gestos de solidariedade na criação, produção e circulação de banda desenhada no feminino, enquanto reacção aos projectos da esmagadora maioria dos projectos dos artistas masculinos da época, os quais, se quebravam tabus em relação à expressão sexual, ao consumo de drogas, às sub-culturas musicais mais variadas, ou ao verniz das expectativas da sociedade burguesa norte-americana, acabavam muitas vezes por repetir os mesmos mecanismos de violência e estereotipificação das identidades minoritárias naquela mesma sociedade, como por exemplo a população negra, os homens homossexuais ou as mulheres em geral. O pontapé de partida foi dado por Trina Robbins – a qual se viria a tornar uma das mais influentes activistas e historiadoras de banda desenhada “no feminino” dos Estados Unidos – e Willy Mendes, com a sua antologia de apenas mulheres, publicada em 1970, It Ain’t Me Babe, seguida pela uma série intitulada Wimmin’s Comix, que actuava mais próximo a um verdadeiro colectivo. Uma outra dupla importante de autores-editoras seria aquela constituída por Joyce Farmer e Lyn Chevli, as quais dariam início à série Tits & Clits Comix em 1972, e publicariam a revista fulcral Abortion Eve. Como estes dois últimos títulos dão a entender, as histórias apresentadas focavam-se em abordagens francas em torno da sexualidade, passando pelas dimensões da saúde, liberdades políticas e expressão. Em 1976, Robbins também publicaria a primeira de duas antologias de banda desenhada erótica por e para mulheres, Wet Satin, com fantasias quer hétero quer homossexuais. Esta importante bateria de títulos dos anos 1970 esbater-se-ia um pouco nas décadas que se seguiriam, apesar de se poderem apontar a alguns gestos que, de vez em quando, tentavam recuperar esta força colectiva particularmente focada na identidade feminina, como é o caso de 7 Ages of Woman, publicado em 1990 pela Knockabout.
“Esses textos complexificam a questão entre a experiência absolutamente individual das suas autoras e a possibilidade de criação de empatia junto aos seus leitores (homens inclusive), conducente a uma solidariedade e à actividade política comum”
Regressando à questão do corpo, o mais importante, parece-nos, não é tanto a manutenção de gestos editoriais e plataformas identitárias do que a abertura dos temas, atitudes e capacidades de discutir assuntos de uma maneira mais franca, como fazendo parte da natureza humana. Poderemos encontrar muitos outros autores a explorar questões complexas entre trauma e fantasia (Justin Green) ou entre estilo de desenho e representação (Harvey Pekar et al.), mas aquela forma de explorar o próprio corpo seria quase uma assinatura “feminina”. Não queremos com isto reduzir algo variado e complexo a uma simplista e monomítica “banda desenhada feminina”, mas tão somente acentuar uma dimensão regularmente visitada e pertinente.
Por exemplo, na sua obra mais famosa, Persepolis (Polvo, 2012), Marjane Satrapi cria todo um capítulo, “O vegetal”, em que dá conta da “metamorfose física” que ocorre na sua adolescência: o crescimento em altura, alterações ao nível dos olhos, do queixo, da boca, das mãos, dos pés, do nariz e do sinal por cima deste, do peito e do rabo. Esta enumeração é acompanhada numa página dividida em 15 pequenas vinhetas, na qual na primeira se parece com um Mr. Hyde ou um Hulk em fase de expansão e nas outras evidencia em específico cada uma das partes mencionadas, alterando a imagem anterior, numa deformação humorística. Essa transformação, digamos, intrínseca ao corpo, segue-se por uma outra, mais externa: Marjane corta o cabelo, maquilha-se, obtém nova roupa e bijutarias e assume um “look punk”, que terá repercussões na sua aceitação social em curso.
Durante os anos 1990, autoras como Phoebe Gloeckner, Julie Doucet, Alice Geirinhas, Ana Cortesão, Isabel Carvalho, Ellen Forney, Robert Gregory, explorariam muitos temas ditos “femininos” – isto é, que pertenciam às questões bastamente discutidas em plataformas políticas associadas ao feminismo de terceira geração – nas suas histórias. Desde questões da objectificação sexual dos corpos femininos pelas várias indústrias da moda e do entretenimento, à redução das funções das mulheres a alguns papéis clássicos (mãe, virgem e puta), o aborto, o abuso sexual, a problemas de empregabilidade e possibilidades de auto-representação e determinação política.
Em Nódoa Negra, temos uma história sobre as dores de cãibra durante a menstruação (Dileydi Florez), o aproveitamento político, religioso e social das dores de parto e sua mitigação (Bárbara Lopes), uma possível tematização da auto-mutilação (Sílvia Rodrigues), um questionamento do papel da franca expressão da violência e da sexualidade carnal lésbica (Cecília Silveira), escavações em diverso grau do abjecto possível do corpo (Hetamoé e Marta Monteiro), frutos dos processos de subjectificação social (Mosi) e o domínio psicológico desferido pelas estruturas familiares (Inês Cóias e Patrícia Guimarães, que brilhantemente desconstrói a própria estrutura da banda desenhada em nome da representação da falta de solidez mental e anímica). Muitos destes temas poderiam perfeitamente ser explorados “no masculino”, mas há um espaço de solidariedade feminino que não poderia ser colonizado por uma hipotética “universalidade” da experiência. Um convite à leitura empática, à aliança de compreensão, sim, mas não uma total osmose dessas mesmas experiências.
Dito isto, uma das grandes conquistas da banda desenhada feminista, nomeadamente nestas apresentações francas da materialidade do corpo, têm sido demonstradas precisamente pela sua ausência. Em duas vertentes. Expliquemos. Em primeiro lugar, não há qualquer necessidade de tentar compreender qualquer trabalho feito por uma autora mulher como tendo de fazer forçosamente parte de um conjunto de “assuntos femininos”, fosse isso o que fosse, ou pior, de uma “sensibilidade feminina” (expressão que conotará uma espécie de essencialismo em linhas sexuais incomportáveis). Existem autoras que, trabalhando contemporaneamente na mais total das liberdades criativas, não sentem qualquer necessidade de tematizar os assuntos acima descritos. Autoras como Joana Afonso, Rita Alfaiate, Inês Garcia, Marta Teives, Sónia Oliveira, têm elaborado o seu trabalho a solo ou em colaborações, sem que tenham de colocar de forma explícita ou em primeiro plano esses papéis combativos. Pois, poder-se-á dizer, em parte, essas lutas vêem-se como ganhas. O que não quer dizer, contudo, que não possa ser feita uma leitura feminista das suas produções. Em segundo lugar, tratar-se-á mais de uma reversão. Se admitirmos que a atenção para a materialidade com o corpo próprio (em vez de um corpo outro, idealizado, de desejo, objectual) nasceu na banda desenhada feminina, não deixa de ser surpreendente encontrar o mesmo tipo de exploração junto a autores homens, o que pode dar azo também a questionamentos de feridas psicológicas e emotivas sistémicas. O trabalho de autores como Fabrice Neaud, Marco Mendes e Francisco Sousa Lobo poderiam, deveriam, ser lidos sob um prisma pós-feminista pela maneira como também eles tematizam as questões das dores, transformações físicas e expectativas e pressões sociais que acabam por se consolidar em pequenos traumas sistemáticos nas suas vidas. Mas essa atenção, e capacidade de expressão, é devida às autoras que abriram esse caminho de cooperação e solidariedade, e também nos pedem para que que se caminhe ao lado de alguém.
Referências
Baetens, Jan, “Autobiographies et bandes dessinées”, in Bélphegor vol. 4, no. 1 (Novembro de 2004); [URL: http://etc.dal.ca/belphegor/]
Chaney, Michael A., ed. Graphic Subjects. Critical Essays on Autobiography and Graphic Novels. Madison, WI: The University of Wisconsin Press 2011.
Gardner, Jared, “Autography’s Biography, 1972-2007”, in Biography vol. 31, no. 1 (Inverno 2008); pgs. 1-26.
Grove, Laurent. “Autobiography in Early Bande Dessinée.“ Bélphegor Vol. 4, no. 1. (November 2004). URL: https://dalspace.library.dal.ca/handle/10222/47694 [last access 2013]
Highmore, Ben. “Bitter After Taste. Affect, Food, and Social Aesthetics.“ Gregg, Melissa, and Gregory J. Seigworth, eds., The Affect Theory Reader. Durham/London: Duke University Press 2010; pgs. 118-137.
hooks, bell, “Sisterhood: Political Solidarity between Women”, in Feminist Review no. 23, Socialist-Feminism: Out of the Blue (Verão 1986); pgs. 125-138.
Mao, Catherine, “L’artiste de bande dessinée et son miroir: l’autoportrait détourné”, in Comicalités. (Setembro de 2013); [URL: http://comicalites.revues.org/1702].
Molder, Maria Filomena, A imperfeição da filosofia. Lisboa: Relógio D’Água Editores 2003.
Tolmie, Jane, “Introduction,” in Tolmie, J., ed. Drawing From Life. Memory and Subjectivity in Comic Art. Jackson, MI: University Press of Mississippi 2013; pp. vii–xxiii.