Trazer para o centro dos debates outra ideia das periferias e mudar a imagem construída a partir do que vem de fora

Miguel de Barros

Sociólogo e investigador guineense. É co-fundador do Centro de Estudos Sociais Amílcar Cabral e membro do CODESRIA. É director executivo da Tiniguena – Esta Terra é Nossa, presidente do Comité Nacional dos Membros da UICN, integra a direção da Rede da Sociedade Civil para a Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional da Guiné-Bissau e da Coligação para a Defesa do Património Genético Africano.

António Rodrigues

Jornalista há mais de 30 anos, pertence actualmente aos quadros do jornal Público, onde escreve sobre muitas coisas, mas principalmente sobre África. Autor da crónica semanal “4 Esquinas”, também conduz, junto com o sociólogo moçambicano Elísio Macamo, o podcast “Na Terra dos Cacos”, sobre temas africanos.

A ideia principal é: como é que nós trabalhamos a periferia, não enquanto um contexto de carência, mas enquanto um espaço de potência? Como é que essa potência se manifesta ao nível da ocupação dos espaços, ao nível da arquitectura, da gastronomia, da música, do cinema, do teatro, da educação, mas também ao nível das políticas públicas?

 

ANTÓNIO RODRIGUES (A.R.) – O Trevor Noah, humorista sul-africano, tem um sketch fabuloso sobre a mosca no lábio superior das criancinhas, nos anúncios da UNICEF. O que fomenta na cabeça das pessoas a ideia de que os africanos só aí estão para receber caridade, ou seja, para aliviar a consciência do Norte rico ou do Ocidente rico, através da sua ajuda. Essa imagem é difícil de ultrapassar. Por exemplo, eu estava a ver agora o conflito no Médio Oriente, e temos a Al Jazeera, que é uma televisão pan-árabe, dá-nos uma outra visão do conflito, desde o interior da Faixa de Gaza. Mostra uma outra imagem, ou seja, não é a imagem difundida pela generalidade dos canais ocidentais. Acho que falta em África, essa capacidade de construção da imagem própria, ou seja, falta um canal, um grupo de media pan-africano que pudesse dar as imagens a partir da África olhando o mundo desde o continente. Nos canais de televisão em Moçambique, em Angola, e tudo o mais, o internacional é sempre visto não a partir de um olhar próprio, africano, mas sempre a partir daquilo que vem de fora. Os olhares são sempre condicionados pelo exterior. Acho que deveria haver uma afirmação própria de África. Logicamente que montar um canal pan-africano não é propriamente fácil, é preciso dinheiro logo à partida, mas acho que essa poderia ser uma contribuição para mudar um pouco essa imagem africana, ou seja, de serem os próprios africanos a construir a sua imagem.

MIGUEL DE BARROS (M.B.) – A questão da espectacularização da cooperação foi algo que esteve intrínseco ao próprio valor associado à ideia de desenvolvimento enquanto mercado. E isso levou também à essencialização das pessoas enquanto instrumentos de marketing, influenciando durante décadas a forma como as organizações filantrópicas, como as agências internacionais, como as organizações não-governamentais (ONG), trouxeram para o espaço público o elemento que lhes permitia mobilizar os seus recursos. Mas também há experiências muito interessantes ao nível dos países do Sul, em particular dos PALOP. A Guiné-Bissau foi pioneira, por exemplo, na criação de rádios e televisões comunitárias. Para operarmos transformações à escala global, temos partir da escala local.

Nos anos 90, por exemplo, mesmo perante a ameaça do controlo do Estado, foi possível a emergência de uma rádio comunitária que trabalhou para diminuir os efeitos do impacto da cólera na comunidade local. Isso permitiu legitimar a acção das rádios comunitárias. Contribuiu igualmente para um boom ao nível regional nas estraégias de comunicação das organizações da sociedade civil para a mobilização social, através da elevação de níveis de consciência e trazendo os próprios protagonistas enquanto produtores da sua informação, produtores da sua própria visão sobre o mundo e da projecção da sua condição no mundo.  Hoje, a nova geração está em condições de produzir comunicação ao nível pan-africano e produzir conteúdos que demonstram como é que se está a afirmar exactamente contra essa corrente hegemónica que impõe uma determinada visão e uma determinada narrativa sobre o Sul global.

Hoje na Guiné-Bissau a maior parte das organizações da sociedade civil tem os seus departamentos de comunicação, não na lógica de propaganda, mas sobretudo da construção da narrativa, de como é que trazem a visão dos efeitos daquilo que estão a produzir como mecanismo de construção de uma nova cidadania. Eu acredito que, a partir do momento em que as sociedades, sobretudo os sistemas políticos, se apropriarem dessa dinâmica, nós podemos chegar a canais que são não só contra-hegemónicos, mas sobretudo que sirvam de elementos de aprendizagem e de construção da tal cidadania activa e plena em África. E, ao mesmo tempo, que estejam na vanguarda de produção de conteúdos de carácter não só utilitarista, mas que facilitem a emancipação do próprio continente africano.

Mesmo olhando para o caso do mainstream, aquilo que a Nigéria projectou hoje com Nollywood, comparativamente ao Bollywood, na Índia e Hollywood nos Estados Unidos, demonstra essa capacidade, se houver um compromisso nacional, se houver um consenso em termos de investimento e se decidir avançar na concretização do potencial humano e cultural existente. Eu acho que é dentro dessa linha que nós temos de ir para permitir que a comunicação não seja a essencialização do actor enquanto um produto no mercado, mas sobretudo demonstrar como é que conjuntamente podemos gerar aprendizagens, aproveitar esses conhecimentos e colocar ao serviço da própria sociedade.

A.R. – Como é que uma iniciativa, como a Rede Internacional das Periferias, pode ajudar nesse combate? Como pode trazer para o centro dos debates outra ideia das periferias e mudar essa imagem? Esse é o objectivo desta rede também?

M.B. – A Rede Internacional das Periferias tem uma constituição muito interessante, porque junta os agentes da transformação local, os actores – artistas, produtores culturais –, os activistas, mas também os académicos, investigadores que podem ter esses vários perfis. A ideia principal é: como é que nós trabalhamos a periferia, não enquanto um contexto de carência, mas enquanto um espaço de potência? Como é que essa potência se manifesta ao nível da ocupação dos espaços, ao nível da arquitectura, da gastronomia, da música, do cinema, do teatro, da educação, mas também ao nível das políticas públicas? E como é que a compreensão sobre essa abordagem pode favorecer a construção de relações interinstitucionais, inclusive com as organizações não formais? Esta dinâmica permite que esses cidadãos tenham a capacidade de mobilidade entre diferentes territórios, tanto territórios físicos como territórios psicossociais, mentais e culturais, para compreender como é que os erros nos permitem trazer aquilo que são os elementos mais inspiradores para o centro da nossa acção pública.

A rede pretende perceber ainda como é que essas pessoas configuram também entidades referenciais que possam permitir a ampliação do diálogo e também colocar essas narrativas em espaços onde até aqui não tinham sido pensadas ou onde não se acreditava que se podia chegar. Desse ponto de vista, mais uma vez, é sobretudo a tal comunicação para a mobilização social o elemento determinante que permite dizer: “Nós não estamos a fazer um estudo por fazer; queremos que o estudo sirva de protesto para consolidar os conhecimentos que contribuam para a melhoria de políticas públicas e para colocar essas pessoas no centro de gestão e na liderança na implementação dessas políticas públicas”. O que é que isso permite? Olhar para preferia, não como algo afastado, mas trazer a preferia para o centro – o centro que inova, o centro que cria, o centro que aproveita a experiência do sofrimento para construir a justiça social e, ao mesmo tempo, garantir a equidade entre os povos e a salvaguarda da dignidade humana entre as sociedades.

A.R. – Miguel, esta ideia de as agências internacionais ainda continuarem a olhar para as ONG africanas ou para as organizações da sociedade civil em África como receptores de ajuda internacional e não como actores e como emissores de ideias e de projectos que podem ser financiados externamente mas serem feitos localmente e pensados localmente.  Parece-me que talvez esteja a mudar um bocadinho, mas ainda continua a ser muito grande o peso da ideia de que quem chega de fora é que tem esse know-how e, portanto, ele é que sabe o que é que vai fazer. Ás vezes também é alimentado pelo próprio governo, ou seja, pelos próprios governos que pensam que aquilo que vem de fora é que é o certo e não aquilo que são as organizações locais que podem pensar as coisas.

M.B. – Da forma como as coisas estão estruturadas, o contexto da cooperação, sobretudo ao nível dos PALOP, favorece ainda esta tendência. Por um lado, os nossos países ainda não desenvolveram estratégias nacionais de recuperação. Embora assinem acordos de cooperação ao nível bilateral e multilateral, os nossos países estão desprovidos de estratégias nacionais de cooperação com metas claras e coordenação entre actores. Isso cria problemas enormes. Temos, por exemplo, tanto a União Europeia, a União Africana ou outros actores estratégicos a abrir delegacias ou delegações no país e a lançar concursos para acesso aos fundos muitas vezes sem a intervenção do próprio Estado. Ou seja, os nossos países, mesmo tendo direcções gerais de cooperação, não têm agências qualificadas e capazes de coordenar e facilitar a acção pública na perspectiva da transformação das relações de cooperação. Não têm também políticas públicas que orientem a alocação dos fundos de acordo com as metas nacionais, locais, regionais.

O que é que isso traz? Traz a dificuldade de dialogar com actores, por exemplo, do Norte, que a partir do momento que recebem financiamento dos seus contextos de origem, têm liberdade na escolha dos seus parceiros. Têm liberdade na definição dos actores com quem querem trabalhar e de que tipo papéis querem jogar. E, muitas vezes, o que nós vimos é que recorrem a essas entidades não enquanto actores para pensar em processos de construção da transformação colectiva (tanto no Sul como no Norte), mas enquanto entidades prestadoras de serviços. Esta dinâmica não favorece nenhuma relação interpares nem potencia a própria cooperação, reforçando tanto ao nível da cooperação local como a nível global, a narrativa de que existe uma entidade doadora e a outra que é recipiente e que as políticas de quem faz a doação é que devem ser cumpridas e não aquilo que são as prioridades nacionais com impacto em agendas globais.

Nós temos assistido a vários projectos de vários milhões que são concebidos de fora e que têm um impacto completamente desastroso, porque não dialogam com as estruturas sociais locais, não reconhecem aquilo que são as prioridades, não eternizam aquilo que são as dinâmicas do contexto para permitir com que, no fim desses projectos, se verifique uma apropriação dos processos. E depois há descontinuidades. Essas descontinuidades criam uma representação forte de que a cooperação não é um instrumento de desenvolvimento, mas é um instrumento de manutenção das dependências. Esse elemento cristaliza a tal figura, sobretudo no Sul pobre que tem que merecer a ajuda do Norte, porque há pobreza. Quando vamos analisar as coisas não é bem assim.

Eu posso dar um outro exemplo. A principal causa de mortalidade na Guiné-Bissau é a malária e depois a mortalidade materna infantil. Mas o programa que teve mais financiamento durante décadas foi o combate à VIH/SIDA. Mas porque é que isso aconteceu? Porque era preciso importar antirretrovirais e tem que se importar a partir do contexto de quem financia. Era importante importar assistência técnica e tem de vir a partir do contexto de quem financia. Era necessário fazer a aquisição de equipamentos a países como o Reino Unido, que diz explicitamente que tem de se fazer a aquisição no Reino Unido. Portanto, a cooperação não financiou a transformação do Sul, a cooperação financiou o país ou a empresa que esteve por detrás desse apoio.

Desmistificando isso, o que é que nós podemos dizer? Há organizações que têm outro perfil, há organizações que estão a trabalhar na construção da visão do processo, há organizações que estão na relação interpares. No caso, por exemplo, da Tiniguena, nós temos parcerias com organizações portuguesas, como a ACEP e o CIDAC, desde a nossa criação. Com projecto ou sem projecto, estamos a construir uma visão. Nós pegámos naquilo que foi a primeira prisão colonial da Guiné portuguesa e a primeira prisão da Guiné-Bissau pós-independência, um espaço de negação de direitos, e transformamo-lo numa Casa dos Direitos. Onde está alojada a Liga Guineense de Direitos Humanos, que inclusive defende os direitos políticos.

Nós iniciámos, com o CIDAC, uma iniciativa de promoção local de transformação dos produtos locais, do comércio solidário e justo, para garantir que os agricultores familiares beneficiem de programas públicos de apoio à produção de abastecimento local. Esse processo permitiu-nos chegar depois de 30 anos de intervenção e dizer “Olha, nós saímos de uma visão minimalista de defesa dos direitos para promoção de políticas públicas que levou ao empoderamento das estruturas locais, produtivas e sociais”. Isso sim é cooperação. Quando os povos se encontram a partir de valores e princípios e criam capacidades para não só reduzir pobreza, mas garantir que a participação é efectiva, a democracia é efectiva e o bem-estar é efectivo para todos.

A.R. – O que eu sinto muitas vezes em vários países, países africanos, sobretudo de língua portuguesa, é que por vezes as ONG, as organizações da sociedade civil, acabam por ser interlocutores para o exterior ou acabam por ter uma imagem para o exterior mais sólida do que têm as instituições públicas ou as instituições do Estado, ou o próprio governo. Acaba por haver esse diálogo das instituições internacionais que querem financiar projectos e tudo mais, mais directamente com essas organizações do que propriamente com o Estado, porque às vezes aquilo que sentem é que o Estado é poroso e muitas vezes aquilo que são os projectos, depois não são implementados.

Como é que se consegue gerir isso dentro de um país como a Guiné-Bissau? Como é que se consegue gerir essa relação ao mesmo tempo de interlocutor com o exterior e também com o Governo? Como é que se consegue gerir bem esse equilíbrio?

M.B. – A emergência das ONG no contexto dos PALOP acaba também por sofrer o efeito tardio da própria adesão à democracia liberal no contexto já das transições que tinham sido protagonizadas, sobretudo nos inícios dos anos 90. Em Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique e depois na Guiné-Bissau. Também são países que tiveram um processo de independência muito voltada para o regime de partido único. Esse regime de partido único era bastante centralizador e ao mesmo tempo tinha açambarcado todas as dinâmicas de manifestação social. Então a desconfiança entre os sectores civis, partidários e também militares, relativamente à questão da salvaguarda daquilo que eram os ditames da independência e ao mesmo tempo, aquilo que eram os desafios da própria liberalização económica, condicionaram bastante o diálogo entre esses actores. O nível de profissionalização que se encontrou depois nas organizações não-governamentais acabou também por permitir um aumento do nível de confiança dos actores externos, que correspondia ao nível de fixação nas comunidades locais, sobretudo em zonas onde a presença do Estado não era efectiva.

Essa dinâmica levou a alguma rivalidade em todos esses países, mesmo em regimes que não têm uma sociedade militarizada. Isto porque essas organizações tinham maior impacto a nível de local e tinham maior visibilidade a nível externo. No entanto, o seu alcance em termos de políticas públicas ainda estava aquém daquilo que eram as necessidades reais para fortalecimento do próprio Estado.

Portanto, a perspetiva de “não-governamental” significa pura e simplesmente não partidarizado. E, ao mesmo tempo, a sua acção política era efectivamente no campo cívico pois trabalhavam na provedoria de bens e serviços como o alimento, a educação, a água, o microcrédito, a segurança e a gestão de territórios. Nós estamos a falar de uma dimensão do Estado que já ultrapassa o minimalismo político e democrático e que olha para essas entidades enquanto agências integrantes do Estado.

Essa visão está a reduzir bastante os níveis de competição entre as ONG e as instituições públicas. Os Estados que ainda mantêm uma imagem de desconfiança, como, por exemplo, Angola, Moçambique, onde as últimas manifestações de políticas públicas vão no sentido não só de controlar, mas cooptar essas próprias ONG, condicionam também aquilo que não só é eficiência, eficácia, mas aquilo que é a subjectividade dessas políticas públicas e, ao mesmo tempo, aquilo que é efectividade dessas organizações não governamentais.

No caso da Guiné-Bissau, eu acredito que, ao longo dos anos, devido à própria fragilidade do Estado, compreendeu-se que não se pode ter como adversário nem o Estado nem as ONG se pode marginalizar o trabalho dessas ONG. Dou alguns exemplos. Até 2010 não existia, por exemplo, leis da avaliação de impacto ambiental, que são fundamentais para determinar concessões de licenças para de exploração dos recursos naturais. Foram as organizações da sociedade civil que tiveram iniciativas de construção de anteprojecto de lei para criação de leis de bases do ambiente e de alteração do regime das áreas protegidas.

Um outro exemplo, a partir de 2012, sobretudo após o golpe de Estado às eleições, nós vimos uma desestruturação de políticas públicas relativamente à exploração desenfreada das madeiras. Um forte investimento da China em África, na exploração das madeiras. Na Guiné-Bissau tivemos cortes ilegais, selectivos, por exemplo, da espécie “Pau-Rosa”, conhecida aqui como “Pau-Sangue”, com alto valor económico no mercado internacional. Perdemos florestas primárias, por exemplo, no Norte da Guiné-Bissau. E com concessões para exploração com estudos de inventário de património florestal dos anos 80.

Então o que é que aconteceu? Essas comunidades locais foram consciencializadas por ONG, que se levantaram para defender o património nacional. Foram as associações juvenis, os movimentos cívicos, que tiveram essa cultura democrática, cidadania activa de participação e que vieram à rua promover manifestações. Foram as dinâmicas de florestas comunitárias locais, onde as mulheres aprisionaram os equipamentos dos chineses. Foi graças a esse movimento que, logo após a realização das eleições, se avançou para uma proposta junto do governo para decretar uma moratória à exportação da madeira e assegurar um maior controlo desse património.

Isso demonstra que, no contexto africano e, sobretudo, no contexto aqui da sub-região da África Ocidental, aquilo que é hoje a visão sobre a intervenção na sociedade civil é exactamente essa incorporação enquanto uma dimensão actualizada do Estado na construção do bem colectivo, mas ao mesmo tempo na garantia da participação efectiva das comunidades enquanto actores responsáveis pela sua própria transformação. E não enquanto meros beneficiários ou recipientes de políticas públicas formuladas pelos governos.