A sociedade do espetáculo não deixa de degradar a realidade, ou o porco tecnológico somos nós

Alfonso Armada

Nasceu em Vigo, Espanha (1958) e é jornalista. Director da revista fronterad, trabalhou no El País e no ABC. Autor de livros como Cuadernos africanos, El arte de la entrevista. De David Bowie a Adam Zagajewski e Cuaderno de viaje al país natal. Com Gonzalo Sánchez- Terán, El silencio de Dios y otras metáforas. Una correspondencia entre África y Nueva York, e, com Xavier Aldekoa, África adentro.

A grande intuição de Guy Debord, a sua grande descoberta, foi caracterizar a sociedade do espetáculo, que começou a criar raízes décadas depois do final da Segunda Guerra Mundial, com um capitalismo cada vez mais financeiro e meios de comunicação de massa centrados na aparência, na opinião, em versões da realidade, não em factos. Arquitecto da chamada Internacional Situacionista, procurou articular uma reação lúcida e irónica contra os movimentos de esquerda que acabaram burocratizando-se, estagnando ou tornando-se máquinas obcecadas em manter o poder a todo o custo, ou assassinos, capazes de justificar que o fim justifica os meios.

Debord acabou por suicidar-se, talvez fatigado pela enorme tarefa de corrigir a deriva irreversível do mundo. Nas 221 teses de A sociedade do espetáculo alertou sobre a conversão da política e da história do mundo em espetáculo, que não só não propicia nenhuma forma de emancipação, mas torna-se uma forma, às vezes subtil, às vezes estridente, de alienação.  Um caminho que mais tarde foi explorado por pensadores como Jean Baudrillard ou, mais recentemente, Byung-Chul Han.

Muitas destas teses continuam a ser como lâmpadas que iluminam a muito custo, quase de forma clandestina, no meio da tempestade, de tanto barulho e deslumbramento opaco, dos efeitos oleaginosos da sedução. Como: “Tudo o que foi vivido directamente transformou-se numa mera representação.”, o que se deve tanto a Platão da caverna, como a Calderón de A Vida é um Sonho. E numa intuição elegante da conversão do cidadão em cliente e/ou utilizador, antes da eclosão das redes sociais e da entrega de corpo e alma à internet e ao poder na sombra, das grandes tecnológicas, Debord já esgrimia que a vida social pode ser entendida como “a degradação do ser em ter (…) e do ter em parecer”. Algo que a maioria (apesar do seu desempoderamento) parece não se importar. Não é à toa que uma das profissões mais desejadas por um número cada vez maior de jovens e nem tão jovens é converter-se em influencer. De quê? Do nada, da fama pela fama, do dinheiro pelo dinheiro, de não ter que pensar mais além de como seduzir para atrair mais seguidores.  Um taxímetro (um contador) que justifique que uma marca (ou um meio de comunicação, um editor, alguém com muito ou pouco para vender e muito para ganhar) se sirva da sua intermediação para continuar a entontecer um mundo em que nos empenhamos em descartar abertamente a incomodidade da morte.

O pior é que em grande medida o extraordinário e arrepiante triunfo internacional dos telemóveis e o seu irresistível vício converteram-nos, enquanto humanidade, em mercadoria, em produto. Já não somos nem sequer clientes nem utilizadores, mas a mercadoria somos nós, o rio abundante de informação que começamos a destilar quando ligamos um dispositivo eletrónico. E toda essa massa de dados será processada como um novo porco virtual que de tudo se aproveita para obter benefícios económicos, políticos, estatísticos, comerciais e policiais.

Como fazer frente a um ditador. A luta pelo nosso futuro, o último livro da filipina Maria Ressa, prémio Nobel da Paz (junto com o russo Dmitri Muratov), ​​​​deveria ser leitura obrigatória para jornalistas, é claro, mas também para políticos e cidadãos de toda a índole que querem estar conscientes sobre o lugar em que nos encontramos e quais os perigos que enfrenta agora mesmo a democracia. Muita gente não só não está consciente de como se exploram e extraem os seus dados, mas também como eles são usados ​​para perverter o debate democrático. Isto foi afirmado pela própria Ressa a Guillermo Altares, em entrevista que concedeu ao jornal El País no passado dia 5 de Fevereiro: ”A tecnologia permitiu a ascensão de líderes autoritários, que foram eleitos democraticamente. E isso ocorreu porque o ecossistema informativo está totalmente corrompido. Um estudo do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT em inglês) de 2018 sustenta que as mentiras são distribuídas na web de forma seis vezes mais rápida que a informação verdadeira. E outro estudo demonstrava que os algoritmos do YouTube promoviam as teorias da conspiração mais delirantes. Tudo isto deu-lhes muito poder, no mundo real, mas também no digital. As grandes empresas tecnológicas contribuíram para a polarização. E tiveram um impacto directo na nossa sociedade”. Quando Altares pede que ela dê um exemplo concreto, Maria Ressa responde: “A Rússia realizou enormes operações de desinformação, utilizando a mesma narrativa para justificar a invasão da Crimeia e da Ucrânia, oito anos mais tarde. Marcos fez o mesmo nas Filipinas e conseguiu deixar de ser um pária para se converter num herói. Em 2014 começaram muitas operações de desinformação e produziu-se um efeito dominó: influenciaram nas Filipinas, no Brexit, na crise da Catalunha, e na eleição de Donald Trump nos Estados Unidos. E os bots russos estiveram presentes em todos os casos. Até agora podíamos ter diferentes pontos de vista políticos, mas havia um acordo geral sobre os factos. Mas com o novo design dos algoritmos das empresas tecnológicas aumentou muitíssimo a polarização”.

Guillermo Altares, que acaba de publicar em Espanha o livro Os Silêncios da Liberdade. Como a Europa perdeu e ganhou a sua democracia, pergunta a Maria Ressa porque considera que os utilizadores são para as grandes tecnológicas, como os cães de Pavlov, ao que a editora do Rappler, o meio de comunicação mais respeitado das Filipinas, responde: “Porque eles fazem experiências connosco. Eles usam o que sabem sobre nós para nos manipular. Cada uma dessas empresas lida com muitíssimos dados nossos. O Facebook, por exemplo, usa inteligência artificial para criar um clone de cada um de nós. Eles chamam-lhe um modelo. E vai muito além da publicidade; é microtargeting [marketing focalizado] porque está disponível para qualquer pessoa que esteja disposta a pagar por isso. Pode ser uma marca comercial, um governo, qualquer pessoa que queira aproveitar teus pontos fracos para te fazer chegar uma mensagem. É como se fosses a um psicólogo e lhe contasses os teus medos mais profundos, os teus segredos. E ele sai da consulta e vende todas as tuas informações íntimas ao melhor licitante. A experiência dos cães de Pavlov consistia em dar-lhes de comer sempre que soava a campainha. Depois retiravam a comida, mas continuavam a soar a campainha e os cães continuavam na mesma a salivar. Conhecem os nossos pontos fracos. O medo da imigração é o teu ponto fraco? Pois então vão explorá-lo.” Uma das suas conclusões mais desoladoras (embora ela nunca desista, e tenha reclamado à Comissão Europeia que tome medidas drásticas contra o poder omnímodo das grandes tecnológicas) é que “o objectivo das operações de desinformação já não é que acredites em algo, mas sim que desconfies de tudo”. Daí o salto mortal de Vladimir Putin ao falar sobre uma ameaça existencial à Rússia, ao mentir astuciosamente sobre a Ucrânia com todo o aparelho de propaganda e desinformação da Rússia ao seu serviço, para galvanizar o uso da força, para se tornar novamente um país poderoso e temido. Ou a estratégia de Xi Jinping na China, de oferecer capitalismo e comunismo no mesmo pacote: dinheiro, sucesso económico, prosperidade, mas nada de democracia nem de liberdade, e , claro, controlo policial extremo de toda a população. Começaram com a minoria uigur em Xinjiang, com campos de reeducação e vigilância com técnicas de reconhecimento facial e cruzando a imensa quantidade de dados que possuem sobre aquele grupo étnico muçulmano indesejável de quem desconfiam e qualificam como desleal às orientações de Pequim e ao politburo do Partido Comunista Chinês. Esta é a nova sociedade do espetáculo. Um teatro rigidamente controlado pelo estado em países gigantes como China ou Rússia, mas com estratégias de sedução muito menos evidentes no nosso ocidente democrático.

Acreditamos que somos mais livres com os nossos dispositivos e com a nossa suposta liberdade total de navegação, quando na realidade estamos a ser alimentados mediante padrões de conducta minuciosa e constantemente registrados, o que permite que as máquinas tenham perfis muito completos de nós mesmos (eles sabem mais sobre nós do que nós próprios). Não só nos chegam, como que por artes mágicas, propostas de lazer alinhadas com os interesses que o nosso rastro tem deixado patente, mas também nos servem visões do mundo e propostas políticas que assentam nos nossos preconceitos. E nem falamos de quando a inteligência artificial estiver em pleno rendimento e refine o que já faz, uma nova realidade criada a partir da nossa mente e dos nossos hábitos. O seu poder multiplica-se astronomicamente quase mês a mês, e os apelos à autorregulação (ou regulação por parte de órgãos supranacionais como a União Europeia) já estão a chegar tarde.

Os medos de George Orwell, ou Aldous Huxley, ou Guy Debord, ficaram aquém. Maria Ressa na sua conversa com o El País, adverte: “Como se pode considerar que umas eleições foram justas se as condições em que foram realizadas não o são? Numerosos estudos demonstram que muita gente não vota a pensar no que acredita, mas sim no que sente. Os Estados Unidos são um exemplo perfeito. Trump contra Hillary Clinton. Mas então descobrimos o que tinha feito a Cambridge Analytica [a empresa britânica que recolheu milhões de dados para propaganda política], a desinformação russa… Pode-se argumentar que nestas eleições houve fraude, não nas urnas, mas na mente das pessoas? Sem dúvida. Acredito que a democracia funciona se tivermos informações verdadeiras, se se puder escutar todas as partes, se pudermos decidir de forma independente. Mas o que acontece se não formos independentes, se cada um de nós tiver sido manipulado? Podemos considerar que são eleições justas e livres?”.

Esse é o verdadeiro génio da época, a formidável reviravolta  da sociedade do espectáculo que Debord caracterizou com tanta presciência. Não foi necessário recorrer à imposição, às leis, à violência. Porque somos nós que, com entusiasmo, nos rendemos ao inesgotável maná da tecnologia, e é por isso que não conseguimos parar de deslizar os nossos dedos ávidos pelas telas, para que os nossos olhos (se o sentido da visão era imperialista no seu início, agora é infinitamente mais) bebam e bebam e voltem a beber um vinho (na realidade uma bebida gaseificada e supercalórica) que provoca uma sede insaciável que necessita sempre de novas doses. Porque nos acostumámos a viver desse espelho táctil que nos reflete, nada profundo, constantemente novo e igual, que nos oferece imagens de todo o mundo, que nos fotografa e nos replica e envia imagens sem cessar, palavras e sons para o hiperespaço, a compartilhar as nossas emoções mais espontâneas, cada vez com menos pudor por um instante de apreciação, um gosto, um ser na aparência, no gesto que se esgota em si mesmo e treme como uma cana de bambu virtual. Que importa! Por isso é tão difícil lutar contra esse inimigo. Porque raramente é visto como tal. Daí a sociedade do cansaço de que fala Byung-Chul Han. Daí a auto-exploração. Cada um convertido em chefe de si mesmo, isolados num oceano de náufragos cujo flutuador tecnológico o torna visível como um luminoso colar falso.

É evidente que George Orwell estava completamente errado quando caracterizou o “Grande Irmão” (Big Brother) como um vigia que governava o destino de cada um de nós. Nós convertemo-nos em servos entusiastas de um Grande Irmão que formamos e nutrimos entre todos diariamente, com milhões e milhões e milhões de dados, de imagens, de interacções, de palavras, até formar um espetáculo global de milhões de pistas em que vivemos uma realidade eterna e virtual, muito mais amena e virtuosa que a realidade do trabalho e da morte ali atrás, mesmo que para isso aceitemos salários miseráveis ​​que na realidade não nos permitem ter uma vida digna de ser chamada vida. Mas é para isso que serve o espetáculo, que nunca acaba, e que necessita constantemente de novos actores para substituir os que se queimam na fogueira das vaidades da rede.

Epílogo, ou sete variações sobre o novo grande teatro de Oklahoma

  1. Há dias foi apresentada em Madrid a peça de teatro Hay alguien en el bosque, escrita por Anna Maria Ricart e dirigida por Joan Arqué. A partir de Como si yo no estuviera, de Slavenka Drakulic, um livro que nasceu de centenas de entrevistas com mulheres que sofreram violência sexual durante a guerra dos Balcãs, Ricart e a sua equipa viajaram para a Bósnia para entrevistar mães, crianças e até uma pessoa condenada por crimes de guerra. O resultado foi um documentário chocante que tem o mesmo título da obra, com a diferença de que no teatro são os actores espanhóis que encarnam as figuras reais, e ao mesmo tempo relatam as suas próprias peripécias de vida. A função é tão dolorosa quanto catártica, porque, como recordou Alberto Ojeda num artigo da revista El Cultural, “a dramaturgia propõe uma viagem de ida e volta constante entre a frente de guerra dos Balcãs e a Barcelona olímpica e festiva de 92. Um contraste que evidencia como se vivia na Europa Ocidental – de costas completamente viradas àquela guerra. ‘É algo que ainda dói’, diz Ricart”. Outro exemplo palpável da esquizofrenia do nosso mundo que o mundo em rede propicia.

 

2. Peço desculpas pela autocitação, que pertence a uma entrevista que fiz ao intelectual palestino Edward Said, autor de livros tão influentes como Orientalismo, e que aparece no meu livro El arte de la entrevista. De David Bowie a Adam Zagajewski. Mas recordou-mo um amigo e creio que cabe como uma luva neste pequeno ensaio de ecos: “Acho que os media desempenharam o papel mais importante na última década, quando se tratou de transformar a política em espetáculo, legitimando a ideia da guerra como uma conquista limpa e tecnológica e, o pior de tudo, despolitizando a política, arrancando-lhe o seu sentido histórico. Veja-se, por exemplo, o que fizeram depois do 11 de Setembro, apagando a história das intervenções dos EUA no resto do mundo”.

 

3. “Cada vez que alguém pensa e vive para ‘parecer’, atraiçoa-se”, escreve Albert Camus num dos seus cadernos, agora publicado em Espanha com o título Vivir la lucidez. Ser e parecer. Estamos a jogar a quê? E o que é pior, quem se importa?

 

4. Franz Kafka nunca foi aos Estados Unidos, mas em O desaparecido (antes Amerika), um dos episódios mais estranhos que Karl Rossmann, o seu protagonista, viveu, na terra da grande promessa, acontece no episódio sobre o Grande Teatro de Oklahoma: “Só hoje, chama-os só uma vez! Quem perder a oportunidade agora, vai perdê-la para sempre! Quem pensa no futuro é dos nossos! Todo o mundo é bem-vindo! Quem quiser ser artista, que se apresente! Somos o teatro que pode empregar todos, cada um no seu posto!”. Nesse teatro continuamos, sem consciência de dele fazermos parte.

 

5. Marta Peirano, especialista na intersecção entre tecnologia e poder, autora de livros tão reveladores como O inimigo conhece o sistema, escreveu no passado 12 de Fevereiro um artigo no jornal El País com o título La desinformación se vuelve automática (A desinformação torna-se automática), em que falava de Wolf News (nem sequer necessitam de se disfarçar, estes grandes lobos predadores da verdade), um programa de notícias falsas apresentado por pessoas que não existem, demonstra que as novas ferramentas de inteligência artificial “são uma kalashnikov para a desinformação”. Escreve Peirano: “Os modelos que geram imagens como MidJourney, E (OpenAI) e Stable Diffusion (Stability AI), trazem-nos técnicas de manipulação digital antes reservadas para estúdios profissionais de pós-produção e efeitos especiais. Quanto aos geradores de texto, como LaMDA (Google), Galactica (Meta) e ChatGP (OpenAI), o problema, cada vez mais grave, é que as falsificações são tão perfeitas ou mais que o original, a tal ponto que se torna cada vez mais difícil defender-se contra essas imagens, textos, notícias, realidades falsas, porque a sua aparência de verdade será tão irresistível quanto tremendamente difícil de negar. Em consonância com o triunfo da emoção sobre a razão, das opiniões sobre os factos, O romancista colombiano Juan Gabriel Vásquez recordava recentemente a frase de Roger Ailes, fundador, ex-presidente e CEO da Fox News, sobre a audiência da sua rede, na sua grande maioria conservadores e fiéis eleitores de génios da mentira e do exagero como Donald Trump: “Se lhes disseres o que pensar, perde-los; se lhes disseres o que sentir, são teus”. Isso explica perfeitamente a decisão da rede de continuar a mentir, sabendo que as reclamações de Trump sobre o roubo das eleições que levaram Joe Biden à Casa Branca eram falsas. Altos dirigentes e os rostos mais conhecidos da rede trocaram mensagens reconhecendo que as bravatas de Trump, de que tinham roubado a presidência, não tinham o mínimo fundamento, mas preferiram continuar a difundir a mentira para manter a função, o espectáculo, em marcha. Por medo que a audiência se mudasse para outro sítio por ver e ouvir o que não queria nem ouvir nem ver. Na verdade, uma grande maioria dos eleitores republicanos continua a acreditar nessa verdade alternativa, essa realidade alterada: que o inquilino da Casa Branca é um usurpador. A Fox teve que pagar uma multa de mais de 700 milhões de dólares à Dominion, uma empresa de contagem de votos, por ter dito e repetido que as suas máquinas tinham sido manipuladas. Preferiram pagar essa quantia antes de verem expostas as suas vergonhas de forma mais corrosiva e dispendiosa se finalmente fossem submetidos a julgamento. Mas o espetáculo continua e a democracia, também nos Estados Unidos, está ameaçada.

 

6. ‘Lendo Kierkegaard’ o último capítulo do mais recente livro de Stuart Park. Estudioso britâníco da Biblía, vive há décadas na cidade castelhana de Valladolid. Pássaros e melancolia. A marca bíblica na poesia de José Jiménez Lozano. (Uma reflexão pessoal) é uma das mais belas homenagens feitas a Jiménez Lozano, autor de obras notáveis ​​como Sara de Ur, Guía espiritual de Castilla ou Los cementerios civiles. Escreve Park: “Em Either/Or, Kierkegaard relata uma parábola que teria encantado dom José:

‘Ocorreu um incêndio nos bastidores num teatro. O palhaço saiu para avisar o público; este achou que era uma piada e aplaudiu. Ele repetiu; a aclamação foi ainda maior. Creio que é assim que o mundo vai acabar: com o aplauso geral dos espertos que acham que é uma piada’.”

Esse final é mais que plausível. Na verdade, muitas vezes dá a sensação de que já aí estamos plenamente instalados, imersos nesta autodestrutiva sociedade do espetáculo que cortou todos os laços com a verdade, com a realidade, e assiste cega, divertida e inconsciente à sua própria destruição, incapaz de distinguir a verdade da mentira, valor e preço, ser e estar, factos e opiniões, trigo e joio , o que é de César e o que é de Deus, o precioso e o grosseiro… enquanto a linguagem se degrada e se considera que a beleza é um ideal reacionário.

7. Para o filósofo italiano Maurizio Ferrero, autor do Manifesto do Novo Realismo, “afirmar que a verdade não existe é dizer que o lobo tem todo o direito de comer o cordeiro. Significa, como na fábula, argumentar que a razão do mais forte é sempre a melhor”. Assim se manifestou Mar Padilla, que o noticiou no dia 19 de Março passado num artigo no El País. E sem verdade, se todos mentem, o cinismo prevalece. Nietzsche era um artilheiro de frases como mísseis, capazes de perfurar muros de cimento. Comprar a sua mercadoria profundamente danificada de que “não há factos, apenas interpretações” põe-nos na pista de patinagem pós-moderna de que tudo é susceptível de ser posto em causa, desde o Holocausto até às alterações climáticas, e através desse dreno da história a democracia se dilui. Mas o espetáculo deve continuar.

Madrid / Barcelona, Abril, 2023