A contribuição do Mosaiko para a construção do espaço cívico em Angola

Frei Mário Rui Marçal

É filósofo, economista e docente da Universidade Católica de Angola. É director administrativo da ONG Mosaiko (1997), da qual tem sido porta-voz e um dos fomentadores da construção de uma cultura de cidadania e direitos humanos em Angola. Em 2018, foi facilitador do primeiro módulo de Lógica Discursiva no curso de Lógica Discursiva e Técnicas Argumentativas, promovido pelo Centro de Ajuda Académica em Luanda.

Mosaiko

A construção do espaço cívico é um processo permanente para o qual contribuem diversos actores sociais a partir de diferentes perspectivas. Esta diversidade de actores e iniciativas é por si só um indicador da vitalidade do espaço cívico. Neste artigo, pretende-se a apresentar, de forma muito sucinta, os eixos fundamentais do contributo do Mosaiko | Instituto para a Cidadania(1) para a construção do espaço cívico em Angola.

Tendo em conta as grandes variações do contexto desde 1997, a apresentação far-se-á em três momentos, a saber:
a) 1997-2002: período antes do fim da guerra;
b) 2003-2013: período denominado de “reconciliação e reconstrução nacional”;
c) 2014-2021: período de agravamento da crise socioeconómica.

Em cada um destes períodos procurar-se-ão destacar alguns traços do contexto e apresentar o contributo do Mosaiko para a construção do espaço cívico nesse contexto específico.

1997-2002: Período antes do fim da guerra

O Mosaiko é fundado pelos Dominicanos, em 1997, sendo a primeira organização angolana a assumir explicitamente como missão a promoção dos Direitos Humanos (DHs) em Angola. Vive-se então um contexto de guerra de baixa intensidade na sequência dos Acordos de Lusaka (assinados entre o Governo e a UNITA em 1994). O ambiente social é marcado pelo medo e pela desconfiança, numa lógica excludente, segundo a qual, quem não é dos nossos é do inimigo. Apesar das significativas mudanças introduzidas pela lei de revisão constitucional de 1992(2), estabelecendo, a nível jurídico, os alicerces de um Estado democrático de Direito, não existe liberdade de circulação, o território nacional está dividido em zonas controladas pelo exército governamental e pelo exército da UNITA e, apesar da tomada de posse do GURN(3) a direcção da UNITA não se estabelece em Luanda. Esta situação agrava-se, em 1998, com uma grande ofensiva das tropas governamentais contra a liderança política e militar da UNITA. A sociedade civil nacional é ainda muito insipiente e é constituída, sobretudo, por organizações ligadas às Igrejas44. Estão muito concentradas na ajuda humanitária, numa perspectiva assistencialista, para aliviar o sofrimento infligido a centenas de milhares de deslocados.

Neste contexto, entre 1997 e 2002, o Mosaiko assume como pilares da sua intervenção na sociedade angolana: trabalhar com as pessoas (e não para as pessoas) e coloca-se num horizonte de médio e longo prazo que não se limita “à gestão do quotidiano” tragicamente marcado pelas contingências da guerra.

Nesta fase, aproveitando o ambiente de “imparcialidade” proporcionado pelas iniciativas da Igreja Católica, o Mosaiko inicia em vários pontos do país uma semana de formação sobre DHs para a qual se estabelecem parcerias com as paróquias e/ou dioceses que convocam diferentes líderes locais ligados às Administrações Municipais, ao sistema de Justiça, à Polícia, às Forças Armadas, à Educação, à Saúde, líderes religiosos e tradicionais, jornalistas, etc. É a primeira vez que pessoas de sectores tão distintos abordam em conjunto assuntos que afectam as suas vidas. A metodologia dos seminários comporta, por um lado, o estudo da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) em articulação com o Título II – Direitos e Deveres Fundamentais da Lei de Revisão Constitucional de Angola e, por outro, a análise do contexto local e da contribuição de cada participante e das instituições a que pertencem para, através de iniciativas cívicas, melhorar o respeito pelos DHs nas suas comunidades.

“Num contexto de escassez de recursos, torna-se ainda mais importante discutir o que priorizar e a forma como são gastos os recursos disponíveis. Nesta perspectiva, o Mosaiko tem vindo a advogar para que o OGE seja cada vez mais debatido de modo a corresponder melhor às prioridades dos cidadãos.”

Fruto destes seminários surgem diferentes Grupos Locais de Direitos Humanos(5) (GLDH) e diversas iniciativas como, por exemplo, uma escola de ensino médio no município da Matala, criada e gerida por pessoas com desejo de estudar e que não têm possibilidade de se deslocar para a cidade do Lubango (a cerca de 175 km). Vários destes Grupos pretendem ser “Grupos do Mosaiko” nas suas localidades, mas o Mosaiko não aceita, pois isso replicaria uma lógica centralizadora, criando dependência entre os Grupos e uma organização sediada em Luanda. Para construir cidadania é importante que cada Grupo seja autónomo, mesmo contando com a colaboração do Mosaiko e de outras organizações.

Por outro lado, o Mosaiko facilita anualmente módulos de formação sobre DHs aos estudantes finalistas do curso médio de Serviço Social do ICRA(6). Estes estudantes realizam um estágio de seis meses em diferentes localidades e têm oportunidade de analisar o contexto de intervenção à luz dos DHs e de replicar a formação. Como complemento destas formações, o Mosaiko publica um manual sobre DHs7 para apoiar formações desenvolvidas pelos Educadores Sociais e por diferentes GLDHs.

O Mosaiko desenvolve igualmente uma estratégia de divulgação dos DHs que ajuda a criar uma opinião pública atenta a esta problemática. Para tal, estabelece várias parcerias, com destaque para a colaboração com a Divisão de DHs da MONUA(8) que, entre outras iniciativas, facilita a apresentação de programas sobre temáticas de DHs na rádio e na TV, a produção de calendários de parede temáticos sobre DHs e a organização de Encontros Nacionais de Educação Cívica e Direitos Humanos.

Neste contexto, importa ainda destacar, em 1999, a organização da primeira Semana Social em Angola, realizada em parceria com a CEAST – Conferência Episcopal de Angola e S. Tomé e o ICRA-Educadores Sociais. Esta iniciativa que visa, antes de mais, contribuir para o desenvolvimento da consciência social dos cristãos, é aberta aos diferentes sectores da sociedade, criando um espaço de participação para cidadãos, independentemente das suas convicções religiosas. Com transmissão em directo na Radio Ecclesia, é ouvida em Luanda por uma vasta audiência, constituindo um dos raros espaços em que os cidadãos podem interpelar directamente os responsáveis políticos. Em 1999, quando o então Ministro da Defesa afirma “vamos fazer guerra para acabar com a guerra”(9), a I Semana Social Nacional reflecte sobre “Educação para uma cultura da paz”. As intervenções são publicadas(10) e amplamente divulgadas. No ano 2000, a CEAST toma a iniciativa de organizar o Congresso Pro Pace, no qual o Mosaiko participou, dando ainda maior visibilidade às diversas vozes que clamavam pela paz.

2003-2013: Período denominado de “reconciliação e reconstrução nacional”

A implementação do protocolo do Luena muda as prioridades das organizações internacionais em Angola, que passam de uma “lógica de ajuda humanitária” para uma dita “lógica de desenvolvimento”. Esta mudança tem um grande impacto nas organizações da sociedade civil (OSC) angolana, levando ao desaparecimento de vários actores e ao aparecimento de outros. Finalmente, torna-se possível a circulação de pessoas e bens, a presença de pelo menos algumas instituições do Estado em todos os municípios, a incorporação de militares da UNITA nas forças armadas do país e a desmobilização de grande número de militares. Entre 2008 e 2013, devido à conjuntura internacional, os preços do petróleo – principal fonte de receita do OGE angolano – aumentam exponencialmente e Angola regista um enorme crescimento económico, tornando-se um dos países com custo de vida mais elevado em todo o mundo. Mas o impacto da crise financeira internacional (2008), leva a que nos anos seguintes muitas organizações internacionais se retirem de Angola(11), reduzindo drasticamente o apoio às organizações nacionais e interrompendo vários processos de transformação social em curso.

“Entre 1997 e 2002, o Mosaiko assume como pilares da sua intervenção na sociedade angolana: trabalhar com as pessoas (e não para as pessoas) e coloca-se num horizonte de médio e longo prazo que não se limita “à gestão do quotidiano” tragicamente marcado pelas contingências da guerra.”

Neste período, o Mosaiko procura consolidar e ampliar o trabalho que vinha desenvolvendo, adaptando as temáticas(12) das formações aos interesses locais mediante a análise com os GLDHs do seu contexto específico. Em 2004, melhora a sua capacidade de divulgação dos DHs através da emissão pela Rádio Ecclesia do Construindo Cidadania – um programa semanal de 60 minutos sobre temáticas de DHs. A partir de 2006, publica anualmente uma Agenda Cívica com informação sobre DHs e, a partir de 2008, publica trimestralmente o boletim Mosaiko InForm sobre temáticas de DHs.

Nesta fase, os signatários do protocolo de Luena – Governo e UNITA – pretendem ter legitimidade para ocupar o espaço político argumentando que “eles é que tinham feito a paz!”. Em 2003, a Semana Social tem como tema “O Cidadão e a Política”(13), advogando para a legitimidade da intervenção cívica e política não partidária. Em 2007, quando o recenseamento eleitoral ocupa todas as atenções tendo como horizonte as eleições de 2008, a Semana Social tem como tema a “Justiça Social”(14), alertando para o facto de as eleições serem apenas um meio para alcançar uma sociedade mais justa cujas políticas deveriam ser debatidas pelos cidadãos. O MPLA viria a obter uma votação esmagadora nas eleições de 2008 e, quando muitos pretendiam evocar o resultado eleitoral para legitimar as suas decisões sem ter em conta outros pontos de vista, a Semana Social de 2011 reflecte sobre “Democracia e Participação”(15), sublinhando a importância de respeitar e considerar as minorias num contexto democrático.

Neste contexto de maior liberdade de circulação, o Mosaiko passa realizar formações sobre DHs noutras localidades. Passa igualmente a desenvolver uma assessoria mais regular com diversos GLDHs e, através de juristas e advogados, proporciona aconselhamento jurídico e acompanhamento judicial de casos de DHs. O trabalho dos juristas e advogados tem um grande impacto a nível local, pois os advogados estão concentrados nos grandes centros urbanos16 e as pessoas mais vulneráveis do ponto de vista militar, político, económico e social não conseguem aceder ao sistema de Justiça. O simples facto de as vítimas poderem aceder ao sistema de Justiça inibe muitos abusadores. O êxito deste trabalho motiva o investimento em formações específicas – ao longo de 4 a 6 módulos de 1 semana – com membros dos GLDHs, para que, quando nomeados pelos juízes, possam exercer cabalmente a função de defensor oficioso e, se necessário, recorrer à intervenção dos advogados do Mosaiko.

Nesta fase, muitos planos governamentais são feitos com base em estimativas cuja fundamentação não é sólida. O Mosaiko compreende a importância de intervir cada vez mais através de estudos e pesquisa social orientada para a acção(17) de modo a que, por um lado, possa adaptar melhor a sua intervenção às necessidades da sociedade e, por outro, possa desenvolver acções de advocacia social com base em evidências, quer através da comunicação social, quer através de debates públicos, quer junto dos decisores públicos aos diferentes níveis.

2014-2021: Período de agravamento da crise socioeconómica

A partir de 2014, com a descida abrupta do preço do petróleo, Angola entra numa crise económica e social profunda, que se traduz num aumento muito significativo do endividamento externo e dos correspondentes encargos(18), agravando-se a situação em sucessivos anos de recessão económica. Apesar da mudança do Chefe do Executivo em 2017 e da esperança com que se inicia o novo ciclo, muitos dos problemas estruturais permanecem…

 

Mosaiko

Quando o Executivo angolano adopta uma política de privatizações e reforça a aposta na exploração dos recursos naturais, o Mosaiko produz vários estudos sobre a situação dos DH em contexto de extração dos recursos naturais(19). Em 2015, a Semana Social reflete sobre “Igualdade de oportunidades”(20) e, em 2019, sobre o modelo de desenvolvimento de Angola(21).

Nesta fase, o Mosaiko continua a consolidar o trabalho que vem desenvolvendo com destaque para a regularidade na realização de pesquisas sociais; a introdução das metodologias de Training for transformation nas formações sobre DHs e o aumento da divulgação através do website e das redes sociais.

O Mosaiko reforça também a presença em plataformas internacionais como a Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos e o mecanismo UPR do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, através das quais levanta temas de interesse para a vida interna do País.

Num período em que escasseiam plataformas de debate público e há vários sinais de saturação, particularmente nos mais jovens, o Mosaiko inicia, em 2016, um ciclo de debates mensais – Cidadania em debate – sobre diversos temas que são propostos pelos participantes. Este tipo de debates replica-se noutras zonas de Luanda, a partir de iniciativas de jovens que inicialmente participaram no Cidadania em debate. Por outro lado, o Mosaiko reforça a sua presença junto dos jovens e da população urbana através de iniciativas que aliam a produção artística e a promoção dos DHs, organizando ateliers de teatro e cinema; concursos de teatro e de spoken word; promovendo a composição e divulgação de músicas sobre DHs, etc.

Num contexto de escassez de recursos, torna-se ainda mais importante discutir o que priorizar e a forma como são gastos os recursos disponíveis. Nesta perspectiva, o Mosaiko tem vindo a advogar para que o OGE seja cada vez mais debatido de modo a corresponder melhor às prioridades dos cidadãos.

Para tal, em articulação com outras OSC, tem produzido publicações e animado debates e formações – a nível local, provincial e central -, contribuindo para uma maior literacia orçamental dos cidadãos e, sobretudo, para que tenham a capacidade de influenciar o ciclo orçamental tanto na fase de elaboração, como através da monitoria e fiscalização da execução do OGE. No contexto actual, o Mosaiko procura, por um lado, estimular a reflexão e a participação dos cidadãos perante os desafios colocados pela criação das autarquias locais (cujas eleições previstas para 2020 foram adiadas) e, por outro, fortalecer a sua intervenção em prol da equidade de género na sociedade angolana.

Conclusão

O percurso descrito resume mais de 20 anos de trabalho na promoção dos DHs e de iniciativas cívicas em que os cidadãos tomam consciência dos seus direitos e deveres para, por um lado, conhecer, influenciar, monitorar e fiscalizar a acção dos poderes públicos e, por outro, tomar iniciativas próprias, sem depender das instituições do Estado, contribuindo para o bem das suas comunidades.

 

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(1) Para mais informação consultar https://mosaiko.op.org/
(2) Lei 23/92, de 16 de Setembro – Lei de Revisão Constitucional
(3) Governo de Unidade e Reconciliação Nacional – Governo criado na sequência dos Acordos de Lusaka e composto por membros de diferentes partidos políticos.
(4) Entre as organizações nacionais não ligadas às Igrejas destacavam-se então a ACA – Associação Cívica Angolana, a ADRA – Acção para o Desenvolvimento Rural e Ambiente e a AAD – Associação Angolana para o Desenvolvimento.
(5) Os GLDH são organizações locais de cidadãos que visam a promoção e defesa de DHs nas suas áreas de intervenção. Podem assumir formas muito diferentes, mais ou menos formais. Algumas já existiam, como as Comissões Paroquiais/ Diocesanas de Justiça e Paz e assumiram a missão de promover os DHs; outras foram criadas por alguns participantes na sequência dos seminários de formação sobre DHs.
(6) Na altura era o único curso de Serviço Social existente em Angola
(7) AA.VV., Direitos Humanos. Guia de Apoio a Cursos de Formação, ed. Mosaiko (Luanda 1999)
(8) MONUA – Missão de Observação das Nações Unidas em Angola
(9) Cf. https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/pr-rende-homenagem-a-kundi-paihama/Acedido em 26.07.2021
(10) Cf. Educação para uma cultura da Paz, ed. Mosaiko (Luanda 2000)
(11) Não foi a pouca relevância dos processos de transformação social que apoiavam ou com a falta de qualidade do trabalho desenvolvido que levou a que muitas organizações internacionais deixassem de trabalhar em Angola. A decisão resultou apenas da redução do seu orçamento em consequência da crise financeira internacional e da constatação de que, devido ao alto nível do custo de vida, com o mesmo valor poderiam desenvolver muito mais actividades no Benim ou no Quénia do que em Angola.
(12) Lei de Terras, Constituição da República de Angola (2010), Lei da Violência Doméstica (2011), Democracia, Lei de Prisão Preventiva, Lei das Associações foram algumas das temáticas escolhidas.
(13) Cf. O Cidadão e a Política, ed. Mosaiko (Luanda 2004)
(14) Cf. Justiça Social, ed. Mosaiko (Luanda 2008)
(15) Cf. Democracia e Participação, ed. Mosaiko (Luanda 2013)
(16) “… cerca de 90% dos advogados encontra-se em Luanda” – cf. Acesso à Justiça. Elementos para reflexão. Angola | 2012, ed. Mosaiko (Luanda 2012) p.19.
(17) Cf. Acesso à Justiça fora dos grandes centros urbanos. Relatório de Pesquisa – Angola | 2012, ed. Mosaiko (Luanda 2013).
(18) Pelo menos desde 2017, cerca de 50% do OGE angolano é destinado ao pagamento da dívida e do serviço da dívida.
(19) Cf. Avaliação participativa sobre o Acesso à Justiça. Relatório de Pesquisa 2016, ed. Mosaiko (Luanda 2017); Avaliação participativa sobre o Acesso à Justiça. Relatório de Pesquisa 2017, ed. Mosaiko (Luanda 2018); Avaliação participativa sobre o Acesso à Justiça. Relatório de Pesquisa 2018, ed. Mosaiko (Luanda 2019); Avaliação participativa sobre o Acesso à Justiça. Relatório de Pesquisa 2019/2020, ed. Mosaiko (Luanda 2020).
(20) Cf. Igualdade de Oportunidades, ed. Mosaiko (Luanda 2016).
(21) Cf. Desenvolvimento sustentável, ed. Mosaiko (Luanda 2019).