A Primavera Árabe – O Egipto, dez anos depois

Isis Salama

Social-democrata e ex-activista dos direitos humanos. (pseudónimo)

Passaram dez anos desde a “Primavera Árabe”. Teve o seu início na Tunísia em Dezembro de 2010, e daí estendeu-se a outros países árabes num efeito de dominó. Ao longo de várias semanas, estalaram revoluções em seis países árabes. Apesar de em quatro destes países ter sido possível derrubar o seu presidente (Tunísia, Egipto, Líbia e Iémen), o regime do Bahrein conseguiu suprimir o movimento popular logo no seu início com o apoio do Reino da Arábia Saudita. Na Síria, a revolta popular transformou-se numa guerra civil que continua até hoje, com muitos países envolvidos em conflitos entre si.

Entretanto, para evitar o mesmo destino das repúblicas totalitárias, as monarquias árabes (Jordânia e Marrocos) introduziram reformas políticas parciais com vista a conter qualquer insurreição que pudesse conduzir a uma revolta mais generalizada. Hoje em dia, após quase dez anos, assistimos a uma nova onda de movimentos populares em vários outros países árabes (Sudão, Iraque, Líbano e Argélia), cujos resultados ainda não são totalmente conhecidos.

“Hoje em dia, após quase dez anos, assistimos a uma nova onda de movimentos populares em vários outros países árabes (Sudão, Iraque, Líbano e Argélia), cujos resultados ainda não são totalmente conhecidos.”

As revoluções da Primavera Árabe (2011) foram dirigidas contra os regimes das repúblicas totalitárias (à excepção do Reino do Bahrein) que contavam com presidentes que dependiam da opressão policial e ocupavam o poder de forma incontestada há várias décadas. Nalguns casos, existia um sistema multipartidário limitado e um partido de oposição pouco contestatário com legitimidade legal, mas sem credibilidade, controlado pelo governo. Entretanto, as organizações do Islão político, sobretudo a Irmandade Muçulmana, conquistavam posições nos parlamentos e sindicatos, apesar da sua legitimidade não ser reconhecida nalguns destes países. A ascensão do Islão político ocorreu perante o olhar dos regimes no poder e com algum grau de anuência. Este utilizava a ascensão dos movimentos islâmicos como meio de assustar os países ocidentais e as forças seculares internas com a influência de extremistas islâmicos.

Antes de 2011, os países árabes eram caracterizados por uma corrupção política e económica desenfreada. Teve início em 2003 uma modesta tentativa de reforma após o receio de uma intervenção americana semelhante à ocorrida no Iraque, mas esta chegou rapidamente ao seu fim, perante a garantia de um fracasso americano. A expressão utilizada por um dos mais proeminentes analistas políticos egípcios, “uma ordem que envelheceu no seu lugar”, é o melhor reflexo deste momento histórico. Os regimes destes países culminaram numa crise histórica sem uma alternativa clara. Os regimes estabeleciam acordos que visavam garantir uma transição de poder no seio da família do Presidente da República. A Síria foi bem-sucedida há alguns anos, ao passo que as revoluções no Egipto, Líbia e Iémen impediram a repetição da mesma experiência.

O que podemos dizer sobre o Egipto hoje em dia? O Egipto, onde ocorreu a segunda revolução na Primavera Árabe? Uma revolução que, em 18 dias, conseguiu derrubar o Presidente Mubarak ao fim de quase 30 anos de ocupação no poder.

Tentarei responder a algumas perguntas sobre a revolução egípcia de 25 de Janeiro:

A revolução foi um acontecimento inesperado?

Todos no Egipto esperavam que 2011 fosse um ano decisivo. As eleições presidenciais estavam agendadas para Setembro. Foram levantadas na altura muitas questões prementes, nomeadamente: irá o Presidente Mubarak, com mais de 80 anos de idade, candidatar-se a um sexto mandato? Serão verdadeiros os rumores sobre a candidatura à presidência do seu filho, Gamal Mubarak? Irá o aparelho militar, que governa o Egipto desde 1952, permitir isto? Irá Mubarak, tal como Gamal Abdel Nasser e Anwar el Sadat antes dele, nomear um representante, indicando a possibilidade de ele ser o próximo candidato presidencial?

Assistiu-se ao surgimento de novas formas de oposição política ao regime no período de 2005 a 2011. Como resultado das condições políticas e económicas internas e após longos anos de silêncio, a maioria dos movimentos de protesto foram impulsionados por conflitos regionais, como a guerra no Iraque ou os ataques israelitas na Faixa de Gaza ou no Líbano.

Os dez anos que precederam a revolução testemunharam o crescente envolvimento de Gamal, o filho de Mubarak, na política. Gamal tornou-se o líder do comité político do partido no poder (o Partido Nacional Democrático). A sua equipa foi constituída por uma nova geração de tecnocratas e políticos que eram social e intelectualmente diferentes da elite estabelecida mais velha que prevaleceu durante sessenta anos. Eram categorizados sob a bandeira do neoliberalismo. Alguns deles tornaram-se ministros no governo, embora fosse evidente a insatisfação contra as políticas adoptadas pelo grupo de Gamal Mubarak no seio do chamado “estado profundo” e do aparelho militar. A velha elite recusou-se a aceitar a ideia da candidatura de Gamal Mubarak à presidência, uma ideia que Mubarak, o pai, continuou a negar até ao fim.

O cenário político egípcio testemunhou o crescimento da oposição àquilo que foi chamado de “sucessão” e, nas eleições de 2005, a oposição apresentou o lema “nem continuação, nem sucessão” à candidatura de Mubarak, o pai ou o filho. Em 2010, as ruas encheram-se de cartazes, de autoria ambígua, que exigiam que o Sr. Omar Suleiman, o chefe do Serviço Geral de Informações, se tornasse o presidente da república. O nome dele era um dos apontados como potencial nomeado para a vice-presidência. Isto foi o que realmente aconteceu nos primeiros dias da revolução. Na minha opinião, é bastante surpreendente que aqueles que se opuseram à sucessão por herança não tenham visto qualquer problema equiparável no facto do Vice-Presidente nomeado herdar o cargo de Presidente. Esquecendo ou ignorando que o verdadeiro problema era a ausência de um mecanismo democrático e de um clima político adequado para a realização de eleições presidenciais livres e justas.

Da mesma forma, a manipulação das eleições parlamentares e a interferência flagrante nos seus resultados foi uma característica predominante durante sessenta anos. Começou a encontrar uma oposição crescente sem precedentes nos dois ciclos eleitorais que precederam a revolução (2005 e 2010) que conduziu ao surgimento de novas formas de protesto popular e outras manifestações de crises políticas crescentes, sobretudo o movimento pela independência judicial que se desenvolveu a partir dos juízes que tinham exposto a fraude nas eleições de 2005. O seu movimento conquistou a ampla solidariedade de diferentes sectores da sociedade. A fraude nas eleições de 2010 conduziu à retirada de uma série de candidatos da oposição do processo eleitoral.

Ao mesmo tempo, e como resultado das políticas económicas do grupo de Gamal Mubarak, as condições de vida dos mais pobres e das classes médias deterioraram-se, prevalecendo entre um grande sector da sociedade um estado de descontentamento e insatisfação. As dificuldades sentidas como resultado da nova política económica trouxeram a classe trabalhadora de volta à esfera política com toda a força. Os anos anteriores à revolução foram palco de greves, manifestações e protestos por parte dos trabalhadores, sendo a mais proeminente a greve dos trabalhadores de Al-Mahalla Al-Kubra.

Vale a pena referir que o protesto assumiu formas bastante criativas. A produção artística que expôs a corrupção do regime e incitou à revolução tornou-se abundante no cinema, no teatro, na música, no canto e em diversos géneros literários. O período testemunhou também o surgimento de blogues que moldaram a consciência da nova geração.

Que formação política liderou o movimento revolucionário no Egipto?

Era uma mistura dos movimentos políticos constituídos por uma nova geração de jovens, organizações da sociedade civil, novos grupos de protesto e sindicatos independentes.

Provavelmente o novo movimento com maior destaque formado pela geração mais nova tenha sido o “Movimento Jovem de 6 de Abril”. Este movimento convocou uma greve geral em todo o Egipto em simultâneo com as greves dos trabalhadores na cidade de Mahalla al-Kubra (uma zona industrial importante), e utilizou como meio as páginas do Facebook na sua campanha. O Movimento Jovem de 6 de Abril não foi o único movimento da nova geração. Existem outros movimentos como o Jovens pela Justiça e Liberdade com uma orientação de esquerda, e o movimento estudantil Haqqi (a minha direita), que foi popular em várias universidades. Os elementos de liderança na maioria destes movimentos foram associados a organizações da sociedade civil, em particular as que trabalham no domínio dos direitos humanos, o que incluiu uma nova geração de activistas dos direitos humanos que surgiram durante os quinze anos que antecederam a revolução.

Diversos activistas de organizações da sociedade civil também participaram na liderança e direcção do movimento de massas, e muitas destas organizações trabalhavam de uma forma geral no domínio dos direitos humanos. Algumas delas preocupavam-se com direitos específicos como, por exemplo, o direito à habitação, o direito à educação ou outros direitos pessoais, ao passo que outras organizações estavam interessadas na estrutura de classes, como a classe dos trabalhadores ou dos camponeses. Nesta fase, a sociedade civil do Egipto dividia-se em dois sectores principais: as organizações não-governamentais registadas no Ministério da Solidariedade Social e que operam no quadro da Lei das Associações Civis, e as organizações que operam como empresas sem fins lucrativos e que, por isso, gozavam de maior liberdade de movimentos e tinham um impacto importante no aumento da consciencialização.

Nos anos anteriores à revolução surgiram novas formas de organização entre a elite intelectual, como o movimento Kifaya (“basta”), o movimento Shaifenkom (“vemos-vos”), os Egípcios Contra a Corrupção, e a Associação Nacional para a Mudança. Esses movimentos reuniram nas suas fileiras diferentes gerações de políticos e activistas. Apesar do seu relativo elitismo, ao longo do tempo, as suas vozes começaram a chegar a sectores mais vastos do público. Surgiram também novos movimentos que expressavam as exigências de grupos específicos da sociedade, tais como o Movimento pela Independência Judicial, que controlava o Conselho de Administração do Clube dos Juízes, e o Movimento pela Independência das Universidades de 9 de Março, que incluía na sua composição o pessoal docente que defendia a independência da universidade. Os que apelavam à melhoria do quadro financeiro dos membros do corpo docente. Todos estes movimentos que representavam um novo fenómeno na comunidade política egípcia eram formas organizativas não partidárias. Alguns dos líderes destes movimentos estiveram na linha da frente da revolução. Existem também as ligações aos Ultras (adeptos de equipas desportivas) que participaram amplamente na revolução.

O mesmo período testemunhou o surgimento de sindicatos independentes, um passo importante para a independência do movimento sindical relativamente ao regime no poder, ao seu partido e ao seu aparelho de segurança. No final da primeira década do milénio, os sindicatos independentes tinham conseguido afirmar-se e alcançar a sua legitimidade legal através de decisões judiciais finais. Os líderes e os membros destes sindicatos participaram abertamente na revolução.

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Os partidos políticos estiveram ausentes da cena, pelo menos, nos seus primórdios, excepto o recém-criado Partido da Frente Democrática. As poucas organizações políticas de esquerda que operavam na clandestinidade juntaram-se activamente à revolução desde o seu início, ao passo que a Irmandade Muçulmana não aderiu nem participou desde o início. Esta permitiu aos seus membros participar de uma forma discreta e individualmente. Só vários dias depois se juntaram à revolução.

Cabe partilhar algumas observações finais sobre as forças que lideraram o movimento revolucionário em Janeiro de 2011, a primeira das quais é que os activistas substituíram os políticos. Isto esteve associado ao declínio do papel dos partidos políticos. Os activistas estavam principalmente associados a movimentos da sociedade civil e às novas formas de protesto.

O segundo aspecto a salientar é que a nova geração de activistas não se limitou à esquerda, com as suas muitas variações, ou aos filiados no Islão político, como foi o caso em muitos anos anteriores. Incluíram também grupos com uma clara orientação liberal. Todos eles provenientes de meios educacionais diferentes. Além disso, os novos grupos islâmicos aparentavam ser distintos do Islão político dominante e mostrar-se mais abertos à cultura da época.

O terceiro aspecto é a utilização das redes sociais e das novas tecnologias de comunicação, bem como a revolução da informação nos esforços de mobilização anteriores e durante a revolução em contraste com a incapacidade do regime para utilizar estas novas tecnologias, em particular, por parte da sua ala mais tradicional. A decisão do regime de cortar a Internet e as redes móveis na “Sexta-feira da Ira” de 28 de Janeiro de 2011 foi desastrosa para o próprio aparelho de segurança. Este pode até ter sido um dos motivos para o sucesso dos manifestantes na invasão da Praça Tahrir, tal como na “batalha de al-Jamal” em Fevereiro, esta segunda indicativa da natureza do conflito entre duas gerações diferentes. A velha guarda do regime no poder imaginou que poderia pôr termo à concentração na Praça Tahrir, invadindo-a com camelos e cavalos.

O quarto e último aspecto foi o surgimento de algumas figuras que, apesar de pertencerem às gerações mais velhas de políticos, intelectuais e empresários, gozavam de um certo grau de respeitabilidade junto do povo. Descreveram-se a si próprios como comités de sábios. O seu aparecimento em cena só teve início após ter-se tornado evidente que o regime era incapaz de dispersar à força as concentrações nas várias praças das cidades egípcias.

O que levou milhões de pessoas às ruas?

A revolução, que contou com a participação de milhões de pessoas em todo o Egipto, começou com um apelo a manifestações de protesto contra os métodos policiais que violavam os direitos humanos e a dignidade humana. Decidiu-se que as manifestações se realizariam no dia 25 de Janeiro, que coincide com o Dia Nacional da Polícia egípcia. O apelo foi feito através de uma página no Facebook criada por um dos activistas chamada “Somos todos Khaled Saeed”. Khaled Saeed era um jovem da cidade de Alexandria que não exercia qualquer actividade política, mas que foi morto após um violento espancamento por parte de agentes da Polícia à paisana após Khaled resistir a uma revista policial no Verão de 2010. Vários activistas realizaram protestos contra este crime durante os meses que antecederam a revolução.

Esta mobilização foi semelhante à que precedeu a greve de 6 de Abril de 2008, e a resposta na página web foi muito considerável. Aparentemente, o assassinato deste jovem, completamente afastado da política e que pertencia à classe média privilegiada que não estava habituada a ser tratada de forma violenta pela Polícia, provocou a ira de um vasto sector de cidadãos pertencentes a esta classe que receavam a ameaça à sua segurança e dignidade pessoais. Esse dia assistiu à manifestação de milhares de pessoas no Cairo, no Suez, na Alexandria e em número menor noutras cidades. O dia teria terminado pacificamente, não fora a violência policial exercida contra os manifestantes e os mortos e feridos na cidade de Suez. Isto conduziu ao apelo à “Sexta-feira da Ira” no dia 28 de Janeiro, e os dois dias que a precederam foram pontuados por pequenas escaramuças entre a Polícia e os manifestantes em vários locais. Até esta altura, o Presidente Mubarak poderia ter contido a situação se tivesse dado início à remodelação ministerial anunciada na noite da “Sexta-feira da Ira”.

Ocorreu uma grande mudança no dia 28 de Janeiro. Do pedido de demissão do Ministro do Interior ao derrube do regime. Os manifestantes entoavam o cântico “o povo quer derrubar o regime.”

As dezenas de milhares de pessoas que iniciaram a revolução no dia 25 de Janeiro transformaram-se em milhões de egípcios que ocuparam as principais praças do Cairo e de muitas outras cidades egípcias. No dia 28 de Janeiro, fomos confrontados com uma revolução despoletada por vários motivos: raiva contra a brutalidade e a repressão policiais, protestos contra a corrupção política e as eleições fraudulentas, e exigências de justiça social. Juntaram-se à revolução novas classes com novas exigências todos os dias.

 

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A revolução alcançou os seus objectivos?

A revolução conseguiu derrubar a liderança do regime após 18 dias de concentrações e manifestações, e este foi o seu primeiro sucesso, mas dez anos depois, podemos dizer que foi o seu único sucesso. Talvez parte do seu sucesso inicial se deva ao facto de uma secção do estado profundo ter visto que o chefe do regime se tornou um fardo e que a sua deposição colocaria um ponto final ao processo de sucessão. Os dias e anos que se seguiram revelaram que os restantes objectivos da revolução, no que se refere aos meios de subsistência, à liberdade, à justiça social e à dignidade humana, não foram alcançados. Pelo contrário, a situação pode ter-se deteriorado e piorado nalguns aspectos quando comparada com o que era antes da revolução.

O Estado, com as suas instituições tradicionais a controlar o país durante sessenta anos, conseguiu absorver o choque da revolução e beneficiou desta, sendo involuntariamente ajudado pelos actos dos grupos que lideraram a revolução. Costumavam dizer que a característica mais importante da revolução de Janeiro da qual se orgulham é ter sido uma revolução sem liderança. A verdade é que este foi um dos motivos para o fracasso da revolução. Os primeiros meses da revolução deram origem a mais de uma centena de coligações e grupos de jovens, e estes grupos entraram em desacordo e conflito entre si. Também não restam dúvidas de que alguns deles foram formados pelo aparelho de segurança do Estado com o objectivo de semear a discórdia entre as fileiras dos revolucionários. Surgiram mais de cinquenta novos partidos na cena política, para além dos já existentes, sem que a maioria destes tenha tido uma verdadeira eficácia ou presença no terreno, e mesmo os movimentos que constituíram verdadeiros partidos foram rapidamente divididos entre si.

“Em dez anos, o espaço de liberdade diminuiu e estreitou-se ao máximo. A margem da democracia restrita desapareceu, o seu tecto diminuiu em relação ao que era antes da revolução e as esferas públicas que foram libertadas pela revolução perderam-se.”

Este estado de fragmentação reflectiu-se na incapacidade da revolução em alcançar os seus objectivos. Os revolucionários ocuparam-se de questões secundárias em vez de se concentrarem, por exemplo, na alteração do quadro legislativo no sentido de proteger a sociedade civil e a esfera pública ou na preparação para as eleições com uma frente forte e unida. Durante o período de transição, o conselho militar no poder conseguiu esgotar as forças da revolução em sucessivos conflitos, e encurralá-las ou levá-las a adoptar posições que conduziram à diabolização da revolução, diminuindo a sua popularidade entre alguns sectores da sociedade.

Ao mesmo tempo, as forças do Islão político representadas pelos grupos da Irmandade Muçulmana e pelos salafistas beneficiaram de um período de acordo entre estes e o Conselho Militar, que controla a maioria nas duas câmaras do Parlamento, após o qual o candidato do Partido da Liberdade e Justiça, a ala política da Irmandade Muçulmana, conquistou a Presidência com uma escassa maioria sobre o seu rival pertencente ao antigo regime.

Um ano após assumir o poder, o candidato da Irmandade Muçulmana, o Presidente Morsi, foi derrubado por manifestações populares que exigiam a intervenção das forças armadas. O choque teve início com o presidente e a Irmandade Muçulmana a oporem-se às principais instituições estatais após aquilo que parecia ser a Irmandade a ultrapassar os limites acordados com o antigo aparelho de Estado. Algumas semanas após o afastamento do presidente e a sua detenção, as forças de segurança puseram termo a uma concentração dos seus apoiantes num dos maiores massacres da História do Egipto.

Durante o segundo período de transição (2013-2014), a única meta alcançada foi a promulgação da Constituição de 2014, que estabeleceu garantias de vida democrática, de protecção da sociedade civil, de livre exercício do trabalho, de respeito pelos direitos humanos, do direito de as pessoas acederem à esfera pública e no sentido de alcançar a justiça de transição e a justiça social. Mas o texto da constituição não tardou a ser desrespeitado após as eleições presidenciais e as eleições parlamentares que se seguiram. Na verdade, o Estado conseguiu alterá-la, e todas as conquistas temporárias alcançadas pela revolução começaram a ser gradualmente revertidas até chegarmos ao ponto em que nos encontramos agora.

E qual é a situação hoje, dez anos depois?

As perspectivas parecem ser sombrias. As forças que estiveram activas durante a revolução e as suas figuras mais proeminentes estão divididas entre prisões e exilados voluntários, ou optaram por se juntar ao regime existente. Parece que estamos a viver na sombra da contra-revolução.

Em dez anos, o espaço de liberdade diminuiu e estreitou-se ao máximo. A margem da democracia restrita desapareceu, o seu tecto diminuiu em relação ao que era antes da revolução e as esferas públicas que foram libertadas pela revolução perderam-se. Foi aprovada legislação que limita o direito à manifestação, em clara violação da constituição. Obter autorização para realizar uma manifestação tornou-se praticamente impossível e as praças públicas foram encerradas. O espaço público que a revolução invadiu é fechado perante qualquer possível indício de movimento de massas, até mesmo de natureza cultural ou artística.

 

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A situação dos direitos humanos deteriorou-se de uma forma sem precedentes na história do Egipto moderno. O cerco às organizações de direitos humanos e a detenção dos seus membros, a introdução de alterações legais que permitem a detenção de cidadãos por períodos indefinidos, a prevalência do fenómeno do desaparecimento forçado, e a deterioração das condições nas prisões estreitaram amplamente o âmbito de actividade à sua disposição, sobretudo no caso das organizações que trabalham no domínio dos direitos humanos. Os sindicatos independentes também foram limitados, apesar do reconhecimento pela Constituição do “direito de os trabalhadores constituírem os seus próprios sindicatos independentes”. Assim, o trabalho no âmbito dos direitos civis foi sitiado.

As condições da classe média e das classes mais pobres pioraram claramente com a flutuação da libra egípcia, com as elevadas taxas de inflação e com as políticas de despesa do estado que não consideram as necessidades da maioria dos cidadãos, o que fez com que a justiça social fosse descurada.

Para refrear qualquer nova tentativa de protesto, o discurso oficial e o discurso dos meios de comunicação social centram-se em intimidar as pessoas no sentido de não participarem em qualquer movimento. Apresentam o protesto como sinónimo de caos e de colapso do Estado. Os opositores da revolução consideram agora os acontecimentos de 2011 responsáveis por todos os problemas que o Egipto atravessa hoje em dia.

“Apesar do actual panorama sombrio, tornou-se evidente que a sociedade civil e as suas organizações têm a capacidade de influenciar e provocar a mudança, podendo mover-se dentro da exígua margem de manobra proporcionada pela legislação actual no sentido de mobilizar as energias da sociedade com vista a contribuir para alcançar o desenvolvimento ao nível local.”

Apesar do actual panorama sombrio, tornou-se evidente que a sociedade civil e as suas organizações têm a capacidade de influenciar e provocar a mudança, podendo mover-se dentro da exígua margem de manobra proporcionada pela legislação actual no sentido de mobilizar as energias da sociedade com vista a contribuir para alcançar o desenvolvimento ao nível local. Existem diversas organizações da sociedade civil que trabalham no domínio do desenvolvimento sociocultural que podem trabalhar no quadro da legislação, apesar das suas restrições, e algumas organizações da sociedade civil que trabalham no domínio dos direitos humanos podem adaptar o seu estatuto legal no sentido de respeitarem as restrições impostas pela lei e concentrar-se temporariamente na disseminação da cultura dos direitos humanos. Nos termos da legislação actual, deixou de ser possível para as organizações da sociedade civil trabalharem fora do seu quadro jurídico.

Assim, as organizações devem continuar a reconstruir-se nesta base, devem procurar financiar as suas actividades principalmente através do financiamento local, e aumentar a sensibilização para a importância do apoio à sociedade civil, que beneficia do trabalho destas organizações e que deve protegê-las.

Por último, a condição básica para o sucesso futuro continua a ser o estudo da experiência da revolução egípcia e dos anos que a precederam para aprender com os erros do passado recente.