Quando era criança, o jornalista britânico Robert Fisk percorria todos os anos os campos de batalha da I Guerra Mundial, acompanhado pelo pai, que foi soldado no conflito e lutou nas trincheiras de França. Quando faleceu, o filho herdaria todas as medalhas, entre as quais se destacava precisamente a condecoração da Grande Guerra, cujo reverso tinha inscrito “A Grande Guerra pela Civilização” – e que Fisk recuperaria para título deste livro.
Foi em 1976, durante umas férias em Porto Covo (em Portugal), onde se encontrava a cobrir os acontecimentos pós-revolução, que Robert Fisk recebeu o convite que mudaria a sua vida: “Eu tinha 29 anos e estavam a oferecer-me o Médio Oriente”, escreveu no prefácio de A Grande Guerra pela Civilização. O editor do The Times precisava de substituir o correspondente e lembrou-se do jovem jornalista de assuntos internacionais. Desde então, Robert Fisk viveu a história em directo, por mais de três décadas, a partir do centro do mundo.
Viria a viver, a partir de 1976, em Beirute, no Líbano, e foi um dos primeiros repórteres internacionais a denunciar o massacre de Sabra e Chatila, bem como o massacre de Hama, na Síria. O seu primeiro livro – Pity the Nation – fala precisamente sobre os acontecimentos e é uma obra fundamental para perceber o Líbano.
Além de Beirute, esteve no Afeganistão, onde assistiu à invasão pela União Soviética, estava na linha da frente quando Saddam Hussein entrou no Irão, em 1980 e no Líbano nas duas vezes que os israelitas invadiram o país e, mais tarde, na Palestina quando Israel proclamou guerra para “limpar a terra do terrorismo”. Cobriu ainda o conflito na Argélia e a Guerra do Golfo de 1991, quando Saddam invadiu o Kuwait. Esteve na Bósnia, onde encontrou sérvios a lutar pelo que chamavam a “civilização sérvia”. “Ao contrário do meu pai, fui para a guerra como testemunha, e não como combatente, um espectador cada vez mais enfurecido”, refere a certa altura no livro.
A Grande Guerra pela Civilização é a obra maior do autor e procura condensar, em mais de 1200 páginas (na edição portuguesa, com tamanho de letra demasiado pequeno), 30 anos de linha da frente, numa escrita furiosa, mas lenta (ao velho jeito de slow journalism), entre a reportagem e a crónica, que fica na história do jornalismo – e da civilização – como testemunho importante à margem das grandes narrativas da história. Fisk rejeitava o rótulo de “correspondente de guerra”, porque, segundo explicava, foi a história que condenou o Médio Oriente à guerra, e não o jornalismo.
No seu trabalho, procurou sempre “vigiar os centros de poder”, como a jornalista israelita e amiga de longa data, Amira Hass, lhe dizia, procurando sempre outras vozes, fora de Bagdade ou Cabul, e muito menos das zonas de segurança onde se concentravam os repórteres estrangeiros (Fisk chamava-lhes “jornalistas de hotel”). É daí que advém muita da sua originalidade. Por causa disso, colocou a vida várias vezes em risco, tendo sido perseguido e sequestrado. É também conhecido como o jornalista que entrevistou Ossama Bin Laden (por três vezes), antes e após o 11 de Setembro, que viria a configurar uma nova era de relacionamento dos EUA (e Europa) com o Médio Oriente.
Fisk morreu em 2020, mas felizmente deixou-nos este livro. O que diria hoje sobre o nosso mundo? Aquando da invasão russa da Ucrânia, ouvimos muitos peritos defender que se estava a instaurar uma “nova ordem mundial”. Fisk, desde a Guerra do Golfo de 1991, que nos seus cadernos registava justamente essa expressão – “uma nova ordem mundial” –, sempre seguida de um ponto de interrogação. Como dizia Mark Twain, a história não se repete, mas muitas vezes rima, e neste livro conseguimos ouvir esses ecos – de Beirute, a Gaza, passando por Cabul ou Kandahar.