Covid-19: uma cortina de fumo para as restrições ao espaço cívico

Marianna Belalba Barreto

Responsável do Civic Space Cluster da Civicus, e que coordena o CIVICUS Monitor. É mestre em Direito Internacional dos Direitos Humanos pela Universidade de Notre Dame e licenciada em Direito pela Universidad Católica Andres Bello em Caracas, Venezuela.

“Mesmo nas circunstâncias mais desafiantes, os activistas encontraram maneiras de demonstrar o seu descontentamento e apresentaram formas de protesto fisicamente distantes, criativas, simbólicas e online, provando que a sociedade civil é imparável.”

Ano após ano, as condições para a actuação da sociedade civil continuam(1) a diminuir. O relatório recente do CIVICUS Monitor(2), People Power Under Attack 2020(3), mostra que 87% da população mundial vive em países classificados como ‘fechados’, ‘reprimidos’ ou ‘obstruídos’ – um aumento de mais de 4% em relação ao ano passado. Na prática, este número significa que a grande maioria da população mundial enfrenta restrições sérias ou significativas no exercício dos direitos fundamentais de associação, reunião pacífica e de expressão.

Um quadro já por si desolador para os activistas e para a sociedade civil foi confrontado com um desafio adicional em Março de 2020, quando a Organização Mundial da Saúde declarou(4) que o surto de coronavírus se tornara uma pandemia. Os governos começaram a promulgar legislação de emergência e a tomar medidas extraordinárias, como a imposição do recolher obrigatório, restrições à movimentação das pessoas e a limitação ou proibição de reuniões, com o objectivo declarado de proteger a saúde e a vida das pessoas. À luz do direito e das normas internacionais, algumas dessas medidas foram além dos limites permitidos durante os estados de emergência de saúde pública e não atenderam aos critérios de proporcionalidade, necessidade e não discriminação.

Durante 2020, a deterioração do espaço cívico não conheceu limites; vários exemplos foram documentados(5) em contextos muito repressivos, como as Filipinas e o Iraque, mas também em países onde as pessoas puderam exercer as suas liberdades cívicas sem maiores obstáculos, como na Costa Rica. Apesar dos desafios significativos e crescentes, a sociedade civil continua a resistir e a manter-se resiliente, chegando mesmo a alcançar vitórias(6) importantes em alguns cenários.

 

Direito ao protesto sob ataque

O relatório People Power Under Attack 2020, baseado em mais de quinhentos estudos sobre o espaço cívico publicados entre Novembro de 2019 e Outubro de 2020, documentou(7) a detenção de manifestantes como a táctica número um usada por governos para restringir o espaço cívico. O assédio e a intimidação de activistas, a imposição de censura e os ataques contra jornalistas também foram violações comuns documentadas durante este período. Os protestos e as manifestações continuaram durante a pandemia e apesar das restrições. Mesmo nas circunstâncias mais desafiantes, os activistas encontraram maneiras de demonstrar o seu descontentamento e apresentaram formas de protesto fisicamente distantes, criativas, simbólicas e online, provando que a sociedade civil é imparável.

Por exemplo, em Abril de 2020 na Palestina, várias feministas organizaram(8) protestos nas varandas(9), a bater em tachos e panelas, ou com cartazes pendurados, e fizeram-se ouvir contra o aumento da violência de género durante a pandemia. Na Holanda, muitos activistas do ambiente recolheram(10) sapatos de todo o país e encheram a praça da Câmara dos Representantes em Haia com mil sapatos como forma simbólica de protesto contra a crise climática(11). Em Outubro de 2020, quando uma lei restritiva sobre o aborto foi confirmada numa decisão do Tribunal Constitucional polaco, vários manifestantes mostraram(12) o seu apoio aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres exibindo um raio vermelho, símbolo da Greve das Mulheres, nos seus carros, em toda a Polónia.

No meio de uma crise de saúde, profissionais de saúde em todo o mundo realizaram(13) protestos socialmente distantes para destacar os desafios que enfrentam e que foram exacerbados pela pandemia. Muita gente também saiu à rua para reivindicar direitos, nomeadamente no Chile(14), Hong Kong(15) e Nigéria(16). Nos EUA, protestos massivos para exigir justiça racial e responsabilização da polícia eclodiram em todo o país, após o assassinato de George Floyd, um homem negro, por um polícia, em Minneapolis; muitos foram os que por todo o mundo se associaram a esta causa e chamaram a atenção para as suas próprias questões de injustiça racial. As exigências por eleições livres e transparentes também levaram pessoas às ruas em países como a Bielorrússia e o Quirguistão.

À medida que a pandemia agravava ainda mais as já terríveis condições económicas em muitos países, as pessoas ergueram as suas vozes para exigir alimentos, serviços básicos e melhores condições de trabalho em muitos países, inclusive na Venezuela e no Zimbabué. As manifestações foram confrontadas com várias violações de direitos, incluindo a detenção de manifestantes, o uso excessivo de força pelas autoridades e a interrupção do protesto. Esta não é uma tendência nova; nos últimos anos, o CIVICUS Monitor já documentou vários casos de violação da liberdade de reunião pacífica. A ironia não é que os governos se incomodem com a dissidência e se desviem do seu caminho para interromper os protestos. É que, dada a pandemia, a principal táctica usada pelos governos para desencorajar e punir as pessoas que saíram às ruas foi a sua detenção, o que significa que muitas vezes retiravam pessoas de espaços públicos abertos e trancavam-nas em prisões fechadas e frequentemente sobrelotadas, em condições que poderiam apenas exacerbar a propagação do vírus.

Civicus

O uso da detenção como uma táctica generalizada contra os manifestantes levanta a questão se os governos foram genuinamente motivados pela necessidade de garantir a saúde pública ou se, em vez disso, a COVID-19 foi usada como um pretexto para reprimir os protestos. A repressão dos protestos ocorreu independentemente do nível de liberdade subjacente experimentado pela sociedade civil. O CIVICUS Monitor documentou a detenção de manifestantes e o uso de força excessiva para dispersar e interromper protestos em países com restrições significativas e sistemáticas do espaço cívico, como o Azerbaijão, a Bielorrússia, o Djibuti e o Uganda, mas também em países onde as pessoas normalmente conseguiram exercer as suas liberdades sem grandes entraves, como a Bélgica e a Suécia.

Dissidência como alvo

A liberdade de expressão é indispensável para o desenvolvimento pleno da pessoa e essencial para qualquer sociedade democrática. O direito de procurar, receber e transmitir informações é essencial durante uma emergência de saúde pública. No entanto, Estados em todo o mundo têm usado a pandemia para decretar restrições injustificáveis à liberdade de expressão, impondo a censura àqueles que se manifestam e aos críticos dos governos, promulgando legislação que lhes permite suprimir a dissidência e fechando os olhos quando jornalistas são atacados por fazerem o seu trabalho. O CIVICUS Monitor documentou(17) que pelo menos 37 países promulgaram ou emendaram uma lei para conter a disseminação da desinformação, ou detiveram ou acusaram indivíduos por supostamente espalharem desinformação sobre a pandemia.

Na maioria dos países onde essa tendência foi documentada, a legislação foi aprovada ou alterada como resultado directo da pandemia. Mais de metade dos Estados em questão aprovou legislação ou decretos de emergência que incluíam disposições com o objectivo declarado de combater a desinformação. Mas muitas vezes, em vez de adoptar medidas adequadas e garantir que as pessoas tinham acesso à informação, os Estados introduziram legislação que afectou desproporcionalmente o direito à liberdade de expressão. Por exemplo, no Essuatíni (antiga Suazilândia), novos regulamentos foram promulgados para criminalizar a publicação de informações destinadas a enganar o público sobre a pandemia. E as Filipinas aprovaram uma nova lei de emergência, o Bayanihan to Heal as One Act, que incluía disposições que penalizavam a divulgação de “informações falsas” nas redes sociais e outras plataformas.

Em alguns países que já tinham leis de desinformação, estas foram aplicadas no contexto da COVID-19. Na Etiópia, por exemplo, a Lei do Discurso de Ódio e Desinformação, que foi aprovada em Fevereiro de 2020, apenas algumas semanas antes da COVID-19 ser declarada uma pandemia, foi usada para processar os acusados de espalhar desinformação sobre a pandemia. Os dados(18) do CIVICUS Monitor mostram que a censura relacionada com a pandemia de COVID-19 ocorreu em 28 países em todo o mundo. Em alguns casos, como na China e no Turquemenistão, qualquer tentativa de falar sobre a COVID-19 foi censurada. A supressão do discurso online foi documentada em países como a Roménia, Singapura e o Vietname, entre outros.

A resistência tornou-se vital

Sem se deixar abater pelas restrições, os defensores dos direitos humanos e a sociedade civil continuam a trabalhar, a adaptar-se e a resistir. Na verdade, durante a pandemia, as organizações da sociedade civil (OSCs) foram capazes de responder rapidamente e de fornecer apoio vital e serviços de entrega de dinheiro, alimentos e medicamentos, muitas vezes preenchendo as lacunas deixadas pelo Estado e pelo sector privado. Sem a sociedade civil, a experiência das pessoas durante a pandemia teria sido ainda mais trágica. O valor de uma sociedade civil forte com capacidade de operar em todos os contextos sem obstáculos é inegável.

Civicus

“Nos EUA, protestos massivos para exigir justiça racial e responsabilização da polícia eclodiram em todo o país, após o assassinato de George Floyd, um homem negro, por um polícia, em Minneapolis; muitos foram os que por todo o mundo se associaram a esta causa e chamaram a atenção para as suas próprias questões de injustiça racial.”

Protestos massivos foram muitas vezes o factor chave que levou a mudanças positivas(19). A acção da sociedade civil impulsionou uma nova eleição no Malaui, anulando um resultado roubado. Protestos após uma eleição irregular no Quirguistão forçaram a saída de um presidente. No Chile, protestos em massa forçaram o governo a realizar um referendo para mudar a constituição. Nos EUA, alguns estados comprometeram-se a desmantelar ou empreender uma reforma estrutural das suas forças policiais após os protestos do Black Lives Matter. Sem a acção colectiva das pessoas, nenhuma dessas mudanças teria acontecido. Há incertezas sobre como será o mundo pós-pandemia, mas o que está claro é que a sociedade civil deve estar no centro da reconstrução de um futuro mais justo e melhor.

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(1) Ver em https://monitor.civicus.org/PeoplePowerUnderAttack2019/
(2) Para mais informações sobre as classificações: https://monitor.civicus.org/Ratings/
(3) Ver em https://findings2020.monitor.civicus.org/
(4) Ver em https://www.who.int/director-general/speeches/detail/who-director-general-s-opening-remarks-at-the-media-briefing-on-covid-19—11-march-2020
(5) Ver em https://monitor.civicus.org/PeoplePowerUnderAttack2019/
(6) Ver em https://findings2020.monitor.civicus.org/bright-spots.html
(7) Ver em https://findings2020.monitor.civicus.org/top-violations.html
(8) Ver em https://monitor.civicus.org/updates/2020/05/21/violations-freedom-expression-continue-unabated-during-covid-19-pandemic/
(9) Ver em Ver em https://monitor.civicus.org/updates/2020/05/21/violations-freedom-expression-continue-unabated-during-covid-19-pandemic/
(10) Ver em https://monitor.civicus.org/updates/2020/05/15/protest-over-covid-19-lockdown-court-denies-access-abortion-medication-mail-during-pandemic/
(11) Ver em https://monitor.civicus.org/updates/2020/05/15/protest-over-covid-19-lockdown-court-denies-access-abortion-medication-mail-during-pandemic/
(12) Ver em https://monitor.civicus.org/country/poland/
(13) Ver em https://monitor.civicus.org/COVID19May2021/
(14) Ver em https://monitor.civicus.org/country/chile/
(15) Ver em https://monitor.civicus.org/country/china/
(16) Ver em https://monitor.civicus.org/country/nigeria/
(17) Ver em https://monitor.civicus.org/COVID19May2021/
(18) Ver em https://monitor.civicus.org/COVID19May2021/
(19) Ver em https://civicus.org/state-of-civil-society-report-2021/wp-content/uploads/2021/05/CIVICUS-State-of-Civil-Society-Report-ENG-OVERVIEW.pdf