Cabo Delgado, um conflito cada vez mais distante da lupa jornalística

Zenaida Machado

Investigadora sénior da Divisão de África da Human Rights Watch, cobrindo África Austral. Trabalhou como jornalista na BBC World Service, onde produziu programas de rádio e televisão. Tem duas décadas de experiência como jornalista multimédia, analista política e investigadora cobrindo países africanos. É mestre em Media e Desenvolvimento pela Universidade de Westminster em Londres.

(Disclaimer: Escrevo na minha capacidade individual, e as posições aqui presentes não refletem as da organização para a qual trabalho)

Uma mulher, com um bebé ao colo, foi encontrada nos finais de Outubro, sentada na cadeira do piloto, dentro de um avião privado, no aeroporto de Pemba, a capital da província de Cabo Delgado, no norte de Moçambique. Vários jornalistas locais cobriram o caso insólito, esforçando-se primeiramente, para perceber como a mulher, visivelmente assustada e vulnerável, teria passado pelo cordão de segurança do aeroporto, um dos mais protegidos do país, tendo em conta o conflito militar, naquela província. Ela só falava Emakwa, uma das línguas do norte de Moçambique, vinha de Mecufi, mais de 30 quilómetros de distância de Pemba, e não sabia explicar com razoabilidade como teria chegado ao avião. Quando questionada sobre o que lhe teria levado àquele local, ela respondeu que “estava à procura dos seus filhos”. O facto deste último pormenor ter passado despercebido à lupa da imprensa nacional e internacional representa mais um sinal alarmante de como as vítimas e as graves consequências humanitárias deste conflito correm o risco de serem para sempre ignoradas e esquecidas.

O conflito em Cabo Delgado teve o seu início em Outubro de 2017, quando um grupo, conhecido localmente por Al-Shabbab, atacou uma esquadra da polícia em Mocímboa da Praia. Desde esse ataque, o conflito, que inclui assassinatos, decapitações, raptos, abuso sexual de mulheres e meninas, destruição massiva de propriedade privada, entre outros, alastrou-se para outros distritos, e para as províncias vizinhas de Niassa e Nampula.

Volvidos seis anos de conflito, estima-se que mais de 4 mil pessoas tenham morrido, e quase um milhão de civis sejam deslocados internamente. Grande parte das vítimas do conflito são mulheres e crianças.  Dados divulgados pela Save the Children, em Agosto de 2021, mostravam que uma média de cinco crianças desacompanhadas ou separadas dos seus familiares chegavam por dia, aos centros de acomodação de deslocados. Muitas destas crianças foram separadas dos seus pais, enquanto fugiam da violência. Outras foram raptadas para fins sexuais, escravatura, e para serem crianças soldados.

Nos últimos anos, as autoridades moçambicanas, com ajuda das forças do Ruanda e da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC), têm resgatado centenas de vítimas de rapto das bases do grupo de insurgentes. No entanto, as autoridades continuam sem ter uma resposta sobre o paradeiro de várias outras crianças, entre elas, provavelmente, os filhos que a mulher encontrada no avião disse estar à procura.

[Foto da Autora]

A fotografia da crise em Cabo Delgado é bem clara, mesmo que não apareça nas páginas dos jornais ou na televisão, e os números da crise humanitária falam por si. Recentemente, as Nações Unidas alertaram para o facto de a resposta humanitária no norte de Moçambique estar gravemente subfinanciada. Num relatório intitulado “O custo da Inação”, a ONU alerta que sem maior apoio, cerca de 850 mil pessoas sofrerão de fome, 400 mil deslocados internos e repatriados ficarão sem quaisquer serviços de protecção e quase 100 mil permanecerão privados de serviços de WASH (Water, Sanitation and Hygiene). As mulheres e as raparigas, que constituem a maioria da população deslocada, enfrentarão riscos acrescidos de violência baseada no género.

Entretanto, nem estes dados, nem o facto de milhares de crianças continuarem desaparecidas e separadas das suas famílias, tem sido suficiente para merecer destaque na imprensa internacional.

O silêncio da imprensa internacional perante o rápido declínio da situação humanitária em Cabo Delgado não é um dado novo. Até 2021, apesar dos vários relatos de mortes, destruição e abusos de direitos humanos, apenas alguma imprensa lusófona, com destaque para as agências de notícias e órgãos de informação com correspondentes baseados em Moçambique, mostrava interesse pelos eventos naquela província. O restante da imprensa ocidental viu-se forçada a desistir dos seus esforços de cobertura jornalística, quando o governo de Moçambique proibiu várias organizações de comunicação social e correspondentes de visitarem a província, enquanto o exército deteve jornalistas que conseguiram deslocar-se para lá ou a polícia prendeu-os sob falsas acusações.

Esta situação mudou drasticamente em Março de 2021, quando o grupo Al-Shabaab atacou a cidade de Palma, palco de grandes investimentos em gás, matando e ferindo vários civis, incluindo cidadãos europeus. O ataque forçou a petrolífera Total Energies a suspender as suas actividades na província. Nos meses que se seguiram, assistiu-se a várias reportagens mediáticas sobre a crise em Cabo Delgado, com particular destaque para as vítimas estrangeiras, bem como um crescente interesse da imprensa ocidental, pela segurança e o futuro dos investimentos energéticos na região. A cobertura jornalística esteve também direccionada para o envolvimento do Estado Islâmico no conflito, e a intervenção militar regional e do Ruanda, e mais tarde, para o apoio militar anunciado pela União Europeia.

Quase três anos depois do ataque de Palma, o interesse da imprensa internacional por Cabo Delgado parece ter-se limitado às operações militares e investimentos bilionários estrangeiros, em detrimento da situação dos moçambicanos na região. As consequências humanitárias do conflito, como por exemplo, a insegurança alimentar resultante do abandono de campos devido à insegurança, à falta de acesso a tratamento contra violência sexual e doença mentais para mulheres e crianças, à destruição massiva de escolas, ao alarmante número de crianças desacompanhadas e famílias separadas, continuam distantes das lupas de cobertura jornalística internacional.

 

 

Referências

The Armed Conflict Location & Event Data Project, em https://acleddata.com/tag/mozambique/

Number of lone children fleeing conflict in Cabo Delgado em Cabo Delgado jumps 40% in one months, em https://www.savethechildren.net/news/mozambique-number-lone-children-fleeing-conflict-cabo-delgado-jumps-40-one-month-%E2%80%93-save

Mozambique: ISIS-linked Group Using Child Soldiers, em https://www.hrw.org/news/2021/09/29/mozambique-isis-linked-group-using-child-soldiers

Governo luta contra crianças que estão do outro lado, em https://www.dw.com/pt-002/cabo-delgado-governo-est%C3%A1-a-lutar-contra-crian%C3%A7as-que-est%C3%A3o-do-outro-lado/a-57983161

Mozambique: The cost of inaction, em https://reliefweb.int/attachments/194e0bdc-31e5-41b5-8543-81dd4ddf98a1/Mozambique_Cost_of_Inaction_October_FINAL.pdf

Turning the tide for women and girls caught in Mozambique’s Cabo Delgado crisis, em https://www.un.org/africarenewal/magazine/march-2021/turning-tide-women-and-girls-caught-mozambique%E2%80%99s-cabo-delgado-crisis