Buska vida – uma análise da emigração irregular guineense através de performance musical e de relatos de experiência vivida

Sumaila Jaló

Professor do ensino secundário pelo Liceu Agostinho Neto (Bissau). Mestre em História Contemporânea pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Doutorando em Discursos: Cultura, História e Sociedade, pela Faculdade de Letras e Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Bolseiro com ref. UI/BD/154286/2022, pela FCT. Activista e membro da redacção da Agenda Cultural de Bissau.

Contextualização

Migração irregular, migração ilegal, ou migração clandestina – expressões usadas para designar o deslocamento de indivíduo/indivíduos sem a observâncias dos pressupostos legais nos países de origem, de trânsito e de destino (OIM, 2004, p. 34). O conceito está longe de ser consensual, porque o fenómeno migratório, em geral, é marcadamente complexo e caracterizado por mutações inerentes a cada circunstância da sua concretização (Nolasco, 2016). Umas pessoas se deslocam por lazer ou turismo; outras para trabalhar em geografias distantes de onde se estabelecem as suas relações mais afectivas; há quem se mova à procura de um refúgio seguro, longe de guerras ou de catástrofes naturais; mas há também quem vai simplesmente à procura de uma nova vida, que lhe permita o mínimo de dignidade. Cada uma destas possibilidades contém nuances que só conseguimos captar se nos dermos ao trabalho de, com paciência, ouvir quem larga a sua suposta zona de conforto para enfrentar aventuras muitas vezes marcadas por incertezas, desilusões, tragédias. E quem nos garante que o contrário seria diferente, que a permanência no sítio que julgamos ser nosso seja a melhor escolha a fazer?

Uma expressão guineense procura, metaforicamente, traduzir o sentido de migração: buska vida. A tradução literal da expressão seria “buscar a vida”, ou “procurar a vida”. Ela é usada para referir outras situações, mas concentremo-nos no seu significado referente à migração. Duas hipóteses nos parecem justificar bem a escolha de buska vida para designar o fenómeno migratório entre os guineenses. A primeira prende-se com o facto de migrar ser um acto normal nas comunidades guineenses, cujos membros se deslocam, geralmente de forma sazonal, para outras localidades do interior do país, ou para países vizinhos, à procura de alguma forma de rendimento alternativo à estação de seca, correspondente aos seis meses em que não se pode praticar a agricultura, principal actividade laboral das comunidades do interior da Guiné-Bissau. A segunda hipótese remete para o conceito subjacente à expressão, na medida em que “buscar a vida” é uma forma de recusar a comodidade inerente a tal zona de conforto, sobretudo quando nela não conseguimos resolver as nossas necessidades mais básicas. Por outras palavras, quem vai buscar a vida, vai à procura da dignidade.

Esta forma de olhar para migração é a mais partilhada entre os povos e as culturas africanos. Daí que, como repetidas vezes se chama atenção numa colectânea de estudos publicada pela União Africana (UA) e Organização Mundial para as Migrações (OIM) sobre a migração em África, qualquer abordagem sobre o fenómeno migratório no continente deve ter o cuidado de considerar este acto como normal e parte das dinâmicas sociais africanas (Adepoju et al, 2020).

No entanto, a imagem do fenómeno migrat Se os migrantes irregulares forem africanos, ou oriundos das fronteiras com a África, as notícias e as opiniões dos “especialistas” estão quase sempre centradas nas necessidades de a Europa controlar melhor as suas fronteiras, de fechá-las mesmo, para proteger a sua civilização e os seus modos de convivência, geralmente apresentados como expostos ao perigo de degeneração com as massivas ondas de “invasão” de povos estranhos.

Para além de serem baseadas em suposições especulativas (Achieng e El Fadil, 2020, p. 4), alicerçadas nos vários estereótipos que se tem sobre a África e dos africanos no Ocidente, essas notícias e opiniões veiculadas nos média poucas vezes discutem o papel das potências ocidentais nos conflitos que, de facto, têm assolado a África e que servem de base argumentativa para quem vê os deslocados africanos como ameaça à paz na Europa. O facto é que, tanto no complexo conflito na Líbia – país usado para trânsito pelos migrantes irregulares –, como na situação de insegurança na região africana do Sahel, uma das zonas do continente com maior fluxo de migrantes irregulares, o Ocidente, nomeadamente a NATO (Organização do Tratado Atlântico Norte), através da França, Reino Unido e dos Estados Unidos da América (EUA), não é inocente.

A insegurança que se vive hoje na Líbia é consequência directa da invasão francesa, britânica e estadunidense de que o país foi alvo em 2011, justificada com a necessidade de derrubar o líder autoritário líbio, Muammar Kadhafi, mas deixando, de seguida, uma das então maiores economias africanas em ruínas. Barack Obama, presidente estadunidense que, em conjunto com David Cameron e Nicolas Sarkozy, liderou a invasão à Líbia, reconheceria, no fim do seu segundo mandato, o “erro” da intervenção nesse país do Noroeste africano[1]. Porém, nem os Estados que invadiram a Líbia, nem a ONU (Organização das Nações Unidas), que na altura produziu uma resolução a favor da intervenção militar, ainda são capazes de ajudar o país a se reerguer dos escombros causados pelas suas bombas.

O facto de muitos países do continente terem os censos desactualizados, como é o caso da Guiné-Bissau, cujo último recenseamento populacional é de 2009, e pela extrema dificuldade inerente ao registo exaustivo de fluxos de migrantes irregulares, pela própria característica deste tipo de migração, as estatísticas existentes sobre o fenómeno migratório em África são feitas de muitas lacunas. Não obstante estas limitações, os números projectados por alguns estudos citados ao longo deste trabalho possibilitam uma compreensão da migração africana capaz de surpreender quem só acompanha o fenómeno através da comunicação social.

, de acordo com Achieng e El Fadil (2020, p. 5), apenas 15% da migração africana é irregular e 85% das deslocações africanas são efectuadas no interior do continente . Ainda segundo os mesmos autores, “94% da migração africana através dos oceanos assume uma forma regular”, ou seja, apenas 6% destas deslocações são realizadas de forma irregular.

No caso da África Ocidental, os dados indicam  que “84% dos movimentos de migração são para outros países na região, equivalente a sete vezes os fluxos migratórios de países de África Ocidental para outras partes do mundo” (IMCPD e OIM, 2016, p. 17). Embora o acordo de livre circulação de pessoas e bens no espaço da CEDEAO esteja longe de ser praticada na plenitude, a sua crescente realização pelos Estados-membros é a principal razão desta considerável taxa de mobilidade interna na África Ocidental.

Dados de 2010 demonstram ainda que Cabo Verde (com 37, 5%), Togo (com 18,7%) e Libéria (com 10,5%) são os países da sub-região “com a maior percentagem da população emigrante” (IMCPD e OIM, 2016, p. 19). Para a Guiné-Bissau, a mesma fonte indica 6,8% como o número da sua população emigrante, contrastando com os números avançados pela AFFORD (Fundação Africana para o Desenvolvimento), que situa a percentagem de emigrantes guineenses em 5,3% da população. Ou seja, a Guiné-Bissau, ao contrário do que se pode pensar no próprio país, não é dos Estados com maiores taxas de emigração na África Ocidental.

Assim, o presente texto discute a emigração irregular guineense através de confronto entre sete performances musicais sobre este fenómeno migratório e quatro testemunhos recolhidos de pessoas que experienciaram o kaminhu di bas, designação corrente da migração irregular na Guiné-Bissau.  Para cumprir o acordo de anonimato com os entrevistados, as suas identidades tomam os códigos de Pessoa A, Pessoa B, Pessoa C e Pessoa D, de acordo com a ordem da realização de cada uma das entrevistas.

As músicas analisadas foram produzidas por diversos cantores guineenses, em grupo e/ou individualmente, entre 2020 e 2022, no âmbito de projectos financiados pela Agência Italiana para o Desenvolvimento e pela OIM, na Guiné-Bissau, e implementados por um conjunto de ONGs (Organizações Não Governamentais) a operar no país. O objectivo principal destas iniciativas artísticas é de sensibilizar os jovens guineenses a absterem-se da emigração irregular, através de letras associadas a performances audiovisuais que procuram representar os perigos à espreita de quem escolhe as vias do deserto saheliano e do Mar Mediterrâneo para entrar a Europa.

 

Kaminhu di bas – quando a busca por melhores condições implica correr o risco de vida

Emigração irregular, emigração ilegal, emigração clandestina, kaminhu di bas… são as expressões usadas nas canções e nas entrevistas analisadas para designar o percurso migratório da Guiné-Bissau para Europa, sem observância dos procedimentos legais para a saída do país de origem e entrada no país de destino. Entretanto, para evitar a reprodução dos estereótipos que podem ser suscitados por visões que compreendem a migração africana como sendo uma forma de “invasão a terras e civilizações alheias”, muitas vezes conotados na expressão “migração clandestina”, adoptamos as designações “emigração irregular” e “kaminhu di bas” para a nossa reflexão.

Kaminhu di bas, em língua guineense, é uma forma metafórica de significar a migração irregular, quando esta ocorre através de vias terrestre e marítima, como sendo “caminhos de baixo”, em contraste com o que seria o kaminhu di riba (caminho de cima), uma conotação de migração regular/legal, geralmente realizada através de um transporte aéreo. Aliás, nos vídeos das músicas analisadas, é frequente este contraste ser representado por imagens de aviões e de pequenas embarcações marítimas ou vias terrestres encenando paisagens desérticas. No entanto, este entendimento da migração irregular, que a conota com travessias fronteiriças terrestres ou marítimas, podem induzir a uma percepção desmentida pelos dados apresentados na contextualização a este trabalho: apenas 6% da migração marítima africana assumem forma irregular.

«Mais de 70 corpos deram à costa esta Segunda-feira, na Líbia, dois dias depois do naufrágio de uma embarcação ao largo da capital Trípoli com centenas de migrantes clandestinos a bordo». Este trecho de uma notícia de televisão foi escolhido para começar o vídeo de uma música produzida por Patche de Rima e Vozes da Guiné-Bissau. As imagens da notícia foram captadas nas margens de um mar cujas ondas arrastavam corpos inanimados para areia afora. A partir deste elemento noticioso audiovisual, a canção procura retratar os perigos da migração irregular, com o objectivo explícito de dissuadir os jovens guineenses de eventuais intenções de seguir para emigração através do kaminhu di bas.

Os mesmos perigos são referidos em todas as outras canções, sendo a produção do Projecto Guiné-Bissau i Terra Rico, que integra cinco músicos, aquela que apresenta a lista mais exaustiva dos riscos enfrentados na travessia de deserto e oceano. A introdução da Menina Neia é elucidativa:

 

Emigrason irregular i ka bom[2]

Porque i tene si consequências negativas

Bu pudi passa fomi, bu assaltado, bu escravizado, ermon

Bu pudi explorado, bu maltratado, bu violado sexualmente

Bu pudi pirdi vida na kil kanua

O bu fika preso ku humilhação

 

Como afirmou um dos nossos entrevistados, cada experiência de migração irregular é única e distinta de todas as outras, asseverando que podemos “conversar com vinte pessoas e nunca as histórias serão parecidas. Serão sempre histórias diferentes”. Ainda assim, todos os nossos entrevistados referem os perigos anunciados nas músicas em análise, quer como parte das suas experiências pessoais, quer como parte de episódios assistidos nas suas caravanas de migração. O seguinte relato da entrevista à Pessoa A é aterrador:

Lembro-me de um episódio com um rapaz gambiano que ia connosco na mesma caravana. O rapaz estava com muita sede, mas ninguém queria arriscar a oferecer-lhe água, porque corria-se o risco de alguém salvá-lo da sede, mas ficar sem água para si. O rapaz não tinha água e o carro em que seguíamos avariou no pleno deserto. Ele não resistiu à tanta sede, acabando por falecer perante a nossa incapacidade de salvá-lo. Sepultamos o rapaz naquele deserto com enormes dificuldades, pois o vento desenterrava o seu corpo a cada vez que o cobríamos com areia. O deserto estava cheio de cadáveres cuja quantidade nunca tinha visto. Eram cadáveres de pessoas que tinham tentado atravessar antes de nós.

 

Afirmámos que a comunicação social tende a projectar uma imagem enganosa da migração africana, centrando a atenção na sua vertente irregular, que é irrisória, se comparada ao fluxo de migração regular e sem ocultar o facto de maior parte das movimentações migratórias serem realizadas no interior do continente. Porém, a migração irregular é parte da complexa realidade migratória africana e, como tal, os perigos a ela inerentes não devem ser ignorados só pelo facto de não constituir a principal forma de deslocação das populações da África. Tanto as músicas, como os testemunhos recolhidos no âmbito deste trabalho abordam, abertamente, esses perigos.

De acordo com a OIM, em 2021, o número de migrantes irregulares mortos ou desaparecidos, entre o Atlântico e o Mediterrâneo, era estimado em 3,224, ultrapassando os números de 2020, que se situavam em 2,326. De acordo com a mesma fonte, desde 2014, cerca de 11,598 migrantes morreram ou desapareceram em África (Hebie et al, 2023, p. 4).

Os perigos da migração irregular através de desertos e oceanos são reais. É com esta consciência que, tanto nas performances musicais, como nas entrevistas aqui analisadas, esta forma de deslocação é desaconselhada em tons de repetição que sugerem uma figura de estilo à procura de vincar, de forma inequívoca, a necessidade de se evitar que mais pessoas experimentem a dolorosa experiência de travessias pelo deserto e pelo mar. Na canção de Patche de Rima e Vozes da Guiné-Bissau, esta mensagem é transmitida num refrão constituído de um verso em português, seguido da sua tradução na língua guineense: “Eu digo não, não: emigração irregular / No fala nau, nau: emigração irregular”. Coincidentemente ou não, este apelo é repetido da mesma forma por Binham Quimor, na música conjunta do Projecto Guiné-Bissau i Terra Rico: “No fala não, não, não… / Emigrason irregular, não! / Emigrason di kamba mar, não!”.

[Frame de videoclipe de Patche di Rima com Vozes da Guiné-Bissau]

Quando perguntámos aos nossos entrevistados se tomavam a mesma decisão de atravessar o deserto saheliano e o Mediterrâneo, se fossem colocados nas mesmas circunstâncias em que saíram da Guiné-Bissau para Itália, as suas respostas, curiosamente, eram-nos ditas de forma negativa e num tom semelhante ao estilo anafórico das canções. A Pessoa A não tem dúvida: “Não, não, não… não tomava a mesma decisão nunca”. A Pessoa B responde: “Não. Nem mesmo ao meu inimigo aconselharia a isso”, para a seguir reforçar a mesma ideia: “Não aconselho a ninguém que faça o mesmo caminho que eu”.

No entanto, nem todas as soluções propostas nas performances musicais para erradicar a emigração irregular na Guiné-Bissau nos parecem realistas. Algumas delas limitam-se a apresentar propostas muito abstractas, quando apelam à “fé”, como faz J-Maica, na sua estrofe para a composição conjunta de Patche di Rima e Vozes da Guiné-Bissau; ou apelam a uma esperança que convida à resignação de quem vê a emigração como solução para melhorar a sua condição de vida, tal como Tino Trimo faz na sua canção: “Sinta bu pera, tudu na passa, Guiné na vensi / Sinta bu sufri, tudu na passa, Afrika na vensi[3]. Noutras, os músicos arriscam-se a classificar a decisão de quem emigra irregularmente como sendo incompreensível. Assim, Nelson Bomba até coloca o conceito de buska vida em causa, se aplicada à migração irregular, considerando-a de “(…) storia di pati vida kuma bo na buskal nam[4]. Para J-Maica, a migração irregular, pelos riscos que se lhe associa, é uma forma expressão de “ganância”.

Como alternativas, as canções propõem a quem pensa seguir para o kaminhu di bas vias que ocultam os problemas estruturais que empurram os jovens guineenses para emigração irregular. Nelson Bomba e Binham Quimor recorrem à uma pergunta retórica para se apresentarem como exemplos de “sucesso” que deviam servir de referência aos jovens para a concretização dos seus objectivos de vida na Guiné-Bissau: “Si ami n fasi sucesso li / Ke ku manda bu ka pudi fasi, nha ermon, memu kusa?![5]. Ou quando, em todas as canções analisadas, o exemplo dos benefícios de migração regular/legal é apresentado como caminho a seguir para guineenses que almejam emigrar para Europa. NB One Shot aborda a questão de seguinte forma: “Emigrason legal, si bu misti bu ta falal regular[6] /Kila ku pudi sedu mindjor pa bo, ermon, si bu na obin / Procura tene dukumentus em dia / Bu emigra tranquilo sin un stress di polícia (…)”.

Outra das sugestões apresentadas nessas canções é aquela que apresenta as potencialidades da Guiné-Bissau em recursos naturais como factor que devia sensibilizar os guineenses a permanecerem no seu país. DjiDji di Malaika enumera-os na música conjunta do Projecto Guiné-Bissau i Terra Rico: sol, chuva, areia pesada, petróleo, rios, bauxite, madeira, mangal, terras férteis…

Todos estes recursos realmente existem na Guiné-Bissau e as suas explorações sustentáveis, num quadro de transparência, podiam servir de alavanca para empregabilidade no país. Porém, esta solução só pode ser colocada num quadro hipotético, porque, por enquanto, é impossível colocá-la na equação imediata de travão à emigração irregular. A existência de “Sol”, “chuva” e “terras” abundantes são as bases para a prática de agricultura no país, mas sem a mecanização e planificação do sector agrário, com vista a sair da lógica de produção para subsistência para a de transformação do sector na principal alavanca económica do país, a agricultura não pode ser apresentada como atractivo para conter a emigração dos jovens guineenses. O mesmo se pode dizer em relação a outros recursos referidos por Djidji, cujos processamentos ocorrem num quadro de pouca transparência e ainda não constituem vectores de empregabilidade com impacto na população guineenses maioritariamente jovem.

Já a alternativa proposta por Nelson Bomba e Binham Quimor, sugerindo que todos os guineenses podem “fazer sucesso” no seu próprio país, tal como os dois fizeram através da música, simplifica o grave problema de desemprego na Guiné-Bissau. Um país em que o Estado é o principal empregador, com um sector empresarial disfuncional e uma economia fortemente dependente do sector informal, acrescido do facto de não existir um sistema de previdência social capaz de alocar contribuições advindas dos rendimentos dos trabalhadores formais e informais para os seus benefícios, não será atractivo para pessoas em idade produtiva. Segundo o BAD (Banco Africano de Desenvolvimento), o desemprego jovem na Guiné-Bissau é estimado em cerca de 50% da população activa (BAD, 2022, p. 197).

A falta de oportunidades de emprego foi um os principais motivos apresentados pelos nossos entrevistados para justificar a sua escolha arriscada de emigração irregular. A este respeito, a Pessoa D, único dos nossos entrevistados que chegou de ter um emprego relativamente seguro na Guiné-Bissau, da qual se desligou por desentendimentos como o patrão, acredita que “dificilmente uma pessoa com um emprego seguro abandonaria o seu país para arriscar a sua vida na emigração clandestina”. A própria profissão de músico não garante segurança a quem a assume como o seu principal ou único ofício. O mercado musical é pouco profissional e a Guiné-Bissau ainda não consegue salvaguardar o básico direito dos músicos sobre as suas produções artísticas.

A alternativa de emigração regular sugerida nas canções apresenta um problema capital, o de ter ignorado a odisseia que costuma ser a procura por um visto de passagem para um país europeu a partir da Guiné-Bissau[7]. Aliás, todos os migrantes entrevistados no âmbito deste trabalho afirmaram que nunca tinham tentado adquirir um visto de entrada numa das representações consulares de países europeus em Bissau, porque estavam convencidos de que não seriam capazes de cumprir a complexa burocracia que teriam de atender.

Um último elemento que nos parece relevante discutir das canções que procuram convencer os jovens guineenses a não se submeterem à travessia do Mediterrâneo, é a sugestão de ficar para estudar na Guiné-Bissau. Um comentário de um dos nossos entrevistados rebate bem esta sugestão: “Escolhi emigrar porque no nosso país, na Guiné-Bissau, podes concluir o 12º ano de escolaridade, ter uma formação, mas ninguém valoriza o teu diploma”. Entre 2019 e 2022, o período em que as canções aqui documentadas foram produzidas, as escolas públicas simplesmente não funcionaram na Guiné-Bissau, por consequência da incapacidade dos governos atenderem às reivindicações dos professores.

Assim, ainda que tenham reconhecido o perigo que a emigração irregular representou para cada um deles, as pessoas por nós entrevistadas explicam o seu acto de assumir riscos para entrar a Europa como sendo inevitável no contexto em que assumiam essa escolha. Oiçamos o testemunho da Pessoa B:

É uma escolha que te deixa cego, surdo e mudo perante as opiniões das pessoas sobre os riscos. Até porque, na Guiné-Bissau, havia pessoas que aconselhavam a não fazer esse caminho, mas tu não davas ouvidos. É uma coisa que te tolda o discernimento. Só acreditavas nos riscos quando os tiveres enfrentado.

Ao falarem dos perigos enfrentados de forma reiterada e de terem liminarmente desaconselhado a migração irregular, os migrantes por nós entrevistados demonstram a consciência sobre os riscos que esta forma de deslocação acarreta. As suas escolhas são justificadas pela necessidade de trabalhar para melhorar a sua vida e a das suas famílias.

 

Considerações finais

Apesar de constituírem importantes veí Para além de que as alternativas nelas sugeridas ocultam graves problemas estruturais do país, impeditivos de oportunidades de formação e de emprego aos jovens, elas ainda arriscam fórmulas abstractas como soluções a uma questão complexa, como é a de migração irregular. As entidades financiadoras destes tipos de iniciativas, sendo conhecedoras da complexidade do fenómeno migratório, têm a responsabilidade de evitar distorções nas abordagens em que participam.

A migração deve ser encarada como útil ao próprio desenvolvimento em África, que deve abrir as suas fronteiras internas para maior mobilidade entre as suas populações, que mantêm relações de trocas comerciais que vêm de muito longe. A medida inserir-se-ia na prática de acordos e protocolos já existentes entre os mesmos países sobre a livre circulação de pessoas e bens, tanto ao nível de blocos sub-regionais, como ao nível da integração continental (cf. ICMPD e OIM, 2016; Adepoju et al, 2020). Para além de servir de alavanca de desenvolvimento económico e de uma solidariedade pan-africana entre os povos, que deve ser resgata para a definição do conceito das relações entre os Estados do continente, seria uma forma eficaz de garantir que as oportunidades de trabalho e de renda, em África, funcionassem como elementos de dissuasão de migração irregular.

Para a própria Europa, com uma população cada vez mais idosa e necessitada de mão de obra jovem, a imigração africana devia servir de incentivo para uma relação mais justa e despida de preconceitos sobre a entrada de africanos no seu território. Por outro lado, não se deve ignorar que, entre os migrantes irregulares oriundos de África, muitos são pessoas a fugirem de guerras em que, em muitos casos, existem países europeus e ocidentais envolvidos. Por exemplo, de acordo com o ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados), citado por IMCPD (2022, p. 9), em Novembro de 2021, foram registados cerca de 41, 500 refugiados na Líbia e volta de 200, 000 pessoas deslocadas internamente. Olharemos para o fenómeno migratório como oportunidade para construir progressos nas nossas sociedades, ou deixamos-nos limitar pelo medo do diferente, do “estrangeiro”, que nos impele a trancar as nossas fronteiras?

[Frame de videoclipe de NB One Shot]

 

Referências

Achieng, M. e El Fadil, A. (2020). O que está errado com a narrativa sobre a migração Africana? In Adepoju, A.; Fumagalli, C. e Nyabola, N. (eds.). Relatório sobre a migração em África. Desafiando a narrativa. OIM, p. 1-15. Disponível em: 39408-doc-Africa_Migration_Report_POR_1_Nov_2021LQ.pdf (au.int)

Adepoju, A.; Fumagalli, C. e Nyabola, N. (2020). Relatório sobre a migração em África. Desafiando a narrativa. OIM. Disponível em: 39408-doc-Africa_Migration_Report_POR_1_Nov_2021LQ.pdf (au.int)

AFFORD (2020). Mapeamento do desenvolvimento da diáspora. Guiné-Bissau. EUDiF. Disponível em: https://diasporafordevelopment.eu/wp-content/uploads/2020/09/CF_Guinea-Bisseau_PT-v.2.pdf

BAD (2022). Perspetivas económicas em África. Disponível em: https://www.afdb.org/pt/documents/perspetivas-economicas-em-africa-2022

ICMPD e OIM (2016). Estudo as Políticas de Migração na África Ocidental. Disponível em: A%20Survey%20on%20Migration%20Policies%20in%20West%20Africa%20PT.pdf (icmpd.org)

ICMPD (2021). Migration Outlook 2022. Twelve migration issues to look out for in 2022. Origins, key events and priorities for Europe. Disponível em: Microsoft Word – 260122_ICMPD-Migration_Outlook_2022.docx

Nolasco, C. (2016). Migrações internacionais: Conceitos, tipologias e teorias, Oficina do CES, n. 434. Disponível em: http://hdl.handle.net/10316/32548

OIM (2004). Glossary on migration. Disponível em: International Migration Law: Glossary on Migration (iom.int)

OIM (2017). Four decades of cross-Mediterranean undocumented migration to Europe. A review of the evidence. Disponível em: https://publications.iom.int/system/files/pdf/four_decades_of_cross_mediterranean.pdf

Hebie, O., M.F.E. Sessou and J. Tjaden (2023). Irregular Migration from West Africa: Robust Evaluation of Peer-to-peer. Awareness-raising Activities in Four Countries. IOM, Geneva. Disponível em: https://publications.iom.int/books/irregular-migration-west-africa-robust-evaluation-peer-peer-awareness-raising-activities-four

 

Músicas

Binham Quimor: https://youtu.be/K6BC0r9q1Iw?si=UnYOl-eHFLAGxvKZ

Jovem Asprila: https://youtu.be/8Abq-ueKvkU?si=bwwfBAsHqr3oyefD

NB One Sot: https://youtu.be/O7ACTRW8Tdk?si=qFa537dQFWgscpyb

Nelson Bomba: https://youtu.be/PPeBgsSaBQM?si=2tMzRS5RO3fObTw8

Tino Trimo: https://youtu.be/QaDHXqJW_S4?si=Hv5vUaWfpYOXrUca

Patche di Rima e Vozes da Guiné-Bissau: https://youtu.be/Fm-1Fqz-Sz4?si=gq4lCJ51I0HsyTS1

Projecto Guiné-Bissau i Terra Rico: https://youtu.be/pUApv0GtX90?si=wuF7I-Uyihq4w4OP

 

[1] Ver: https://www.dn.pt/mundo/obama-falou-sobre-o-pior-erro-da-sua-presidencia-5119940.html

[2] A emigração irregular não é boa / Porque tem consequências negativas / Podes passar fome, seres assaltado, escravizado, irmão / Podes ser explorado, maltratado, violado sexualmente / Podes perder a vida naquela canoa / Ou ficares preso com humilhação

[3] Senta-te e espera, tudo vai passar, a Guiné vencerá / Senta-te e espera, tudo vai passar, África vencerá

[4] História de oferecer a vida dizendo que estão a buscá-la

[5] Se eu fiz sucesso aqui / Porque não podes fazer tu, meu irmão, a mesma coisa?

[6] Emigração legal, também designado por emigração regular / É a melhor via para ti, irmão, se me ouves / Procura ter os documentos em dia / E emigra de forma tranquila, sem estresse da polícia

[7] Esta reportagem da SIC retrata a situação em relação à embaixada de Portugal em Bissau: https://sicnoticias.pt/pais/2022-11-05-Licenca-para-entrar-mudaram-as-regras-para-obter-visto-para-Portugal-493c8d16