Espaço cívico: perante a ameaça de fechamento, a esperança da resistência

Antoine Buyse

Professor de Direitos Humanos e director do Instituto de Direitos Humanos dos Países Baixos, na Universidade de Utrecht. É editor-chefe da publicação holandesa Netherlands Quarterly of Human Rights. É também membro do Conselho de Especialistas em Legislação das ONGs do Conselho da Europa. A sua investigação está centrada nos direitos humanos europeus e na posição da sociedade civil e do espaço cívico.

Zenaida Machado

Investigadora sénior da Divisão de África da Human Rights Watch, cobrindo Angola e Moçambique. Trabalhou como jornalista na BBC World Service, onde produziu programas de rádio e televisão como Focus on Africa e Network Africa. Tem duas décadas de experiência como jornalista multimédia, analista política e investigadora cobrindo países africanos. Zenaida Machado tem um mestrado em Media e Desenvolvimento pela Universidade de Westminster em Londres.

Da teoria à prática, nesta conversa que junta duas experiências distintas, fala-se das grandes ameaças ao espaço cívico a nível mundial, com enfoque na experiência de Moçambique. O ambiente favorável à actuação cívica está a deteriorar-se e sofreu um agravamento considerável com a pandemia. Porém, as pessoas demonstram ser muito criativas e encontraram formas de fazer ouvir as suas vozes, mesmo nas situações mais adversas.

 

ANTOINE BUYSE (A.B.) — Olá, Zenaida. Sou professor de direitos humanos na Universidade de Utrecht, nos Países Baixos, onde também está sediado o Instituto de Direitos Humanos dos Países Baixos, do qual sou director. Faço muita investigação sobre direitos humanos, sociedade civil e espaço cívico. E também foi assim que me envolvi neste tema [espaço cívico], porque comecei a analisar muito os estados pós-conflito, e as transições para a democracia e estados mais pacíficos. Depois comecei a reparar, há alguns anos, que muitos desses países não estão a avançar, mas sim a estagnar ou a regredir para vias menos democráticas. E que muitos destes exemplos e tácticas que esses países utilizam são também copiados por outros países, até os países que são normalmente encarados como bastante democráticos. E foi assim que me interessei por toda a situação do espaço cívico.

 

ZENAIDA MACHADO (Z.M.) — Sou de Moçambique. Não sou académica. Nunca frequentei a escola nem estudei direitos humanos. Estudei jornalismo e línguas. Sou jornalista, na verdade decidi fazer uma pausa no jornalismo e aderir aos direitos humanos. Porque, quando estava na redacção, conseguia ver a situação em Moçambique. E senti que essa situação estava a receber muito pouca atenção. Da perspectiva da redacção, por mais que tentasse incluir os assuntos de Moçambique na agenda, ainda temos dificuldades em conseguir que as fontes falem sobre alguns dos assuntos moçambicanos. E senti que havia uma necessidade, fora da redacção, de pessoas que quisessem ser a notícia, que fizessem as notícias, e que obrigassem os jornalistas a dar mais cobertura aos desenvolvimentos em Moçambique. Se encontrar os meus antigos colegas de redacção, vão contar-lhe que naquela altura, já falávamos das coisas que estão a acontecer agora. Depois decidi juntar-me à Human Rights Watch, na qualidade de investigadora para Moçambique e Angola. E é isso que tenho vindo a fazer nos últimos cinco a seis anos. Portanto, vou para o terreno, falo com as vítimas, e tento contar as suas histórias ao resto do mundo. Faço o meu melhor, que pode não ser perfeito. Mas tento. E, é claro, a maior parte do meu trabalho é incentivar os jornalistas a fazer a cobertura destes acontecimentos e a garantir que Moçambique se mantém na agenda da comunidade internacional, das grandes organizações como a ONU, a União Europeia e outras e, se conseguirmos, criar soluções o mais rapidamente possível para resolver não só as questões da crise humanitária, mas também o problema do país no que se refere aos direitos humanos. E, claro, quando debatemos os direitos humanos, também falamos sobre o espaço cívico.

 

A.B. — Com o seu antigo emprego, já fazia parte da sociedade civil de muitas outras formas, mas agora ainda faz mais, com o seu trabalho actual.

 

Z.M. — Sim, é verdade. E sentimos mesmo as consequências de ter um governo que está a implementar medidas que limitam ou tentam limitar o espaço civil. Embora eu considere que a sociedade civil em Moçambique é bastante ousada. Porque, se olharmos para as medidas que têm sido tomadas nos últimos dois anos para controlar o que a sociedade civil faz, há um grande contraste com o que estamos a observar na sociedade civil, parece que as pessoas não se sentem intimidadas. Embora haja sempre alguém que possa ter sido atacado. Uma ou duas pessoas podem ter medo de falar. Na verdade, sinto um grande orgulho por ver tantas jovens a falar na televisão nos dias de hoje. Sinto-me muito motivada ao ver a grande diversidade de opiniões críticas que surgem nos meios de comunicação social e na imprensa nos dias de hoje. E sinto admiração porque, apesar de todas essas pressões, por vezes até dos nossos familiares mais próximos, em como não devemos dizer estas coisas… “Oh, não devias falar assim, não se deve criticar o governo”. As pessoas fazem-no na mesma. E não têm medo. Concretamente com a situação actual em Cabo Delgado, a intimidação vem do próprio Presidente. Sempre que o presidente fala sobre Cabo Delgado, do envolvimento da sociedade civil, e depois sobre a imprensa, o discurso tem algum tipo de ameaça, algum tipo de aviso de que não nos devemos envolver, não devemos fazer parte do processo de criação de instabilidade no país. E o que realmente me intriga é a forma como os poucos membros da sociedade civil, especialmente jovens activistas, são tão rápidos na resposta ao presidente, sem qualquer medo, no Twitter, no Facebook ou nos meios de comunicação tradicionais, e insurgem-se para explicar ao presidente porque é que ele não pode controlar o que eles querem dizer. E isso é fantástico. São coisas que não me parece que fosse possível ver há 10 anos atrás.

 

A.B. — Penso que tocou num aspecto muito importante daquilo que são os espaços cívicos. Trata-se de dar voz a todos, e a sua voz já se fez ouvir nos meios de comunicação social e, agora a trabalhar na sociedade civil, descreve como tenta dar voz aos outros. E os últimos exemplos que deu têm muito a ver com essa tentativa de levar os outros a atreverem-se a falar. E penso que isso está no cerne daquilo que é o espaço cívico, e é por isso que é importante que seja feito o debate, que haja informação, que haja um diálogo vivo, e pessoas a falarem umas com as outras além daquilo que é organizado pelo estado, além do mundo empresarial e além do que as pessoas fazem nos seus pequenos círculos familiares. Por isso, penso que este encontro entre pessoas a falar umas com as outras, mas também a organização de movimentos juvenis, por exemplo, ou manifestações nas ruas, mas também simplesmente falar e ser uma voz na comunicação social, tudo isto é espaço cívico. E, para mim, é realmente bastante animador ouvir que, mesmo com o governo a aplicar algumas restrições, as coisas que referiu sobre Moçambique demonstram que a sociedade civil não é apenas uma vítima-alvo, mas que as pessoas também têm a iniciativa de manter o seu espaço e defendê-lo para continuarem a falar, continuarem sempre a falar. E penso que isto é muito importante. Portanto, trata-se de um exemplo interessante de ver, e reflecte muito do que se está a passar noutros países. Sim, é verdade.

 

Z.M. — Penso que o que é realmente extraordinário no caso de Moçambique é que, apesar de termos visto alguns dos nossos líderes da sociedade civil a serem atacados por se manifestarem, ou alegadamente por se manifestarem. E, quando digo serem atacados, quero dizer que são raptados e depois fortemente espancados por homens desconhecidos e, nalguns casos, mortos por pessoas que desaparecem subitamente, e as forças de segurança não têm forma de investigar quem essas pessoas são, quem os enviou, nem por que motivo cometeram esses crimes. Apesar de tudo, e apesar da impunidade em tudo isto. É que essas pessoas parecem gozar de uma espécie de impunidade, ninguém lhes pode tocar, podem fazê-lo sempre que quiserem. Parece que o principal objectivo é aterrorizar as pessoas. Para que nos comecemos a censurar a nós mesmos, por termos tanto medo daquele fantasma que pode aparecer do nada, de qualquer forma, e matarnos quando vamos às compras ou buscar os nossos filhos à escola, e optemos por nos render e não dizer nada que possa ofender alguém, apesar de todo esse ambiente. E penso que vale a pena sublinhar que este ambiente de medo de dizer coisas que não são adequadas, de não fazer perguntas, é algo que sentimos constantemente. Eu sinto isto até com familiares próximos, as pessoas dizem-nos que, se dissermos estas coisas na televisão, vão fazer-nos mal. Porém, apesar de tudo isto, as pessoas ainda desafiam o sistema. É como os cogumelos, continuam sempre a crescer. E o engraçado é que está a crescer numa comunidade, ou numa parte da sociedade, que é sempre encarada como o elo mais fraco, as mulheres. Nesta sociedade, sempre encarámos as mulheres como muito obedientes. Apenas falam para pedir autorização, como se não tivessem opinião, especialmente nas questões políticas. As mulheres não falam sobre política: falam sobre cremes para o rosto e crianças. Mas as mulheres, especialmente as jovens, estão a intervir e a falar, e quando falamos com elas e perguntamos “Não tem medo?” Dizem “Sim, tenho. Mas não posso parar de falar”. E essa é a parte extraordinária. A forma como as coisas estão a avançar em Moçambique, apesar do grande esforço feito tanto pelo governo como por intervenientes não governamentais, ou pelos tais fantasmas, como eu lhes chamo, por ninguém saber quem são, apenas sabemos que são um sinal de que a sociedade ainda está a resistir. Parece-me que ainda não está totalmente intimidada, ao ponto de dizermos “Ok, vou ficar em casa e não vou fazer nada”. Não estou a dizer que aqueles que o fazem são cobardes. Claro que há quem lhes possa chamar cobardes, mas eu acho que talvez algumas pessoas estejam mais assustadas do que outras.

 

A.B. — Penso que aquilo que descreveu se reflecte em muitos países: estas tácticas de medo, e aquilo a que chama de “fantasma”, que age realmente de forma que nunca saibamos de onde vem a ameaça, é uma táctica muito utilizada. Muitas vezes vemos que a sociedade civil, as organizações e os movimentos sociais e os activistas individuais não são apenas presos pela polícia, na verdade são ameaçados por um homem desconhecido ou subitamente aparece um graffiti na sua casa, ou recebem ameaças aos membros da sua família. E é claro que esta ameaça que paira sobre estas pessoas tem por objectivo silenciá-las. E está directamente relacionada com os direitos humanos, os governos e os próprios estados não deveriam interferir com a liberdade de expressão e a livre associação. Naturalmente, também devem proteger os cidadãos uns dos outros em sociedade, quer se trate de um grupo armado ou de activistas vigilantes ou trolls online que simplesmente atacam os defensores dos direitos humanos online, o governo também deve agir nestes casos porque também têm a ver com direitos humanos e há uma obrigação de proteger as pessoas. Muitas vezes, há uma tendência para se fazer isso e, como disse, isto dá origem à impunidade, que é mantida de propósito para silenciar as pessoas e assustá-las, e trata-se de uma autocensura já bastante disseminada. E isto está relacionado com outro aspecto, que é a forma como as pessoas falam sobre a sociedade civil. Basicamente, o discurso sobre a sociedade civil e a forma como esta é encarada pela sociedade de um modo geral, o que os defensores dos direitos humanos fazem, o que as mulheres activistas fazem, se é algo positivo ou se apenas tentam criar problemas e, por vezes, aumentar as tensões quando já estamos em crise. Porque é que dificultam ainda mais as coisas? Como no exemplo que referiu, e isto faz-me sempre pensar num activista dos direitos civis nos Estados Unidos que disse aos jovens, quando já era muito velho, que deviam “criar bons problemas, na verdade é bom criar problemas”. Por isso, sejam bons jovens problemáticos”. E não considero que seja negativo falar sobre um problema ou dizer que há algo de errado, que um funcionário do governo é corrupto ou que uma situação é insegura, ou que há injustiça ou desigualdade entre homens e mulheres, é bom que se diga isto. E é claro que isto não é muito bem aceite. O que acontece é que vemos os Estados, directamente através dos chefes de estado e ministros dos governos ou através dos meios de comunicação social, isto é, os que estão associados aos estados directamente ou através dos seus amigos empresários, a retractar a sociedade civil de forma muito negativa. Podem chamar-lhes qualquer coisa, incluindo traidores, porque são depois retractados como estando sob controlo estrangeiro. E estão a atacar as pessoas num determinado estado por serem críticos, ou são considerados extremistas ou até terroristas. Portanto, para os meios de comunicação ou para os governos, é muito fácil rotular a sociedade civil de forma bastante negativa. E é por isso que aquilo que disse é tão importante, que as pessoas tenham a coragem necessária. E nem sempre isso acontece, mas tentam falar e mostrar a outra história… Tudo tem a ver com histórias, nesse sentido de que precisamos de ter uma contra-história para as histórias negativas sobre o que a sociedade civil faz e o que os activistas dos
direitos humanos fazem.

 

Z.M. — Estou a pensar em algo que disse sobre as obrigações do governo em matéria de direitos humanos. E é engraçado que, em muitos casos, a justificação do governo para não fazer nada para proteger este ambiente cívico das ameaças e do medo é que o responsável pelo ataque não é o governo. Com efeito, e vou citar membros do governo, dizem coisas como “nós nem sequer sabemos quem são essas pessoas”. Até o porta-voz da polícia adoptou estas palavras, estas expressões como “indivíduos desconhecidos”, referindo-se aos atacantes de políticos, activistas e jornalistas, como se estivessem a transferir a culpa para esse “indivíduo desconhecido”. Por outras palavras, o que estão a tentar sugerir é que somos todos impotentes. Não podemos fazer nada em relação a essas pessoas. Não é o estado que está a atacar. E o que acho espantoso é que parece que, tanto da parte do governo como do Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos, há um certo tipo de condescendência que esquece que existem outras obrigações, ou seja, a obrigação do estado não é cumprida. O que a Constituição diz e aquilo que diz a lei dos direitos humanos é que o estado tem a obrigação de proteger, investigar, levar estes problemas à justiça e criar condições para que se realize um julgamento justo, e para que as pessoas que cometem crimes recebam uma sentença justa. Mas é precisamente essa a grande questão que o governo parece fingir deliberadamente que não conhece.

 

A.B. — Exactamente, isso é verdade, mas também não tem só a ver com os ataques, na verdade, mas que o governo não pode ser apenas neutro, tem de nos proteger activamente. E isso é muito diferente daquilo que faz na maioria dos casos. E muitas vezes dizemos que o governo deveria criar aquilo a que chamamos um ambiente propício à sociedade civil. Ou seja, não deveria simplesmente dizer “não intervimos, aconteça o que acontecer”. Isso não chega. A sua obrigação é garantir a segurança. Para a sociedade civil, é necessário garantir julgamentos justos, é necessário intentar processos judiciais e tentar investigar quando houver ameaças ou, claro, ainda pior, quando as pessoas são mortas. E isto faz parte daquilo a que se poderia chamar um contexto crucial para que a sociedade civil possa existir em segurança. Com efeito, normalmente os governos pensam mais ao nível da imposição de limitações. Assim, a grande questão é criar as condições para que a sociedade civil consiga sequer funcionar. E creio que essa é uma responsabilidade ética e moral, mas também legal, de qualquer governo. E alguns governos consideram essa a principal abordagem à sua actividade, quererem criar um governo transparente e fomentar a sociedade civil. E, por exemplo, no meu país, por vezes o governo financia organizações de estudantes cuja principal função é a crítica acérrima do governo. E quando digo isto a alguém, quando disse isto a alguém da Rússia, responderam-me: “Como é que o governo pode fazer isso? Porque é que fazem isso? Pagam aos seus próprios críticos”. E eu disse “porque o governo considera importante que os estudantes tenham capacidade de organização, e até acabam por ajudar um pouco o governo, mesmo que isso signifique que depois possam ser bastante críticos em relação às políticas educativas”. Mas isso faz mesmo parte de um ambiente de sociedade civil saudável.

 

Z.M. — Penso que, acima de tudo, trata-se de tentar dar a impressão de que, pelo menos, estão a fazer algo para criar um ambiente melhor e mais activo na sociedade civil, o que é, na minha opinião, aquilo que nos falta. Parece que o objectivo é cortar tudo o que é contra e promover tudo o que é a favor. Na televisão, vemos pessoas que até defendem coisas indefensáveis. Um miúdo de 10 anos que esteja a ver televisão fica a perguntar-se “será que disseram mesmo aquilo”? A questão é que essas pessoas sentem que devem dar a cara e defender as práticas do governo, mesmo que estejam a defender a propaganda, a defender acções que nunca existiram. Lembro-me, por exemplo, e claro que isto está sujeito a confirmação, da história de um ministro que lidera uma grande campanha agrícola. E, na tentativa de provar que o seu projecto está a funcionar, fizeram alguns vídeos publicitários para transmissão na televisão sobre as pessoas que beneficiaram com o projecto e que estão a conseguir bons resultados. E uma das pessoas que utilizam no vídeo afirma ter começado a produzir um tipo de cereal que estava a ter muita saída na zona do Niassa. E, logo após a transmissão da peça, uma ONG local publicou um artigo a explicar que, nessa área, é impossível cultivar o cereal em questão. Não existe, não é possível. Portanto, não é verdade. E o mais engraçado é que não houve nenhum debate sobre a validade das acusações feitas pela ONG, não houve nenhum exercício para provar que a ONG estava errada. Não houve nenhum exercício no sentido de pedir ao indivíduo que viesse a público provar que aquilo que disse no vídeo era verdade. O exercício resumiu-se a atacar a ONG e afirmar que esta estava envolvida numa campanha contra o ministro, ou que a ONG estava ao serviço de uma força externa que pretendia desestabilizar o país. Assim, o que acontece é que se torna cansativo, até extenuante, que, sempre que se apresentam factos e provas de que o governo não está correcto, de que está envolvido em práticas corruptas ou a tentar enganar as pessoas com recurso a propaganda, a resposta do lado do governo ou a sua reacção não é a participação num debate construtivo sobre os factos que foram apresentados. Em vez disso, o governo investe um grande esforço em prejudicar a reputação do responsável pelas acusações. E é aqui que eu penso que a sociedade civil pode vencer esta batalha. Não nos podemos limitar a atacar o governo individualmente, penso que temos de nos unir porque o governo não consegue prejudicar a reputação de 10 organizações.

 

A.B. — Este aspecto é muito interessante, porque aponta para a necessidade de um ecossistema que inclua os vários tipos de organizações. E, tal como no exemplo que referiu, é uma ONG a desvendar algo. Ao mesmo tempo, também é necessário que os órgãos de comunicação social noticiem o assunto, que não fiquem calados. E é preciso que o governo compreenda que aquilo que está a acontecer na sociedade civil não é automaticamente seu inimigo, seu adversário, nem sempre a questão é política. E há um núcleo, há um espaço para além do governo onde os cidadãos, as organizações e os movimentos falam entre si, e as coisas que dizem não são sempre automaticamente contra o governo. Mas é claro que muitos governos encaram as coisas assim. É quase como se fosse um complexo narcisista dos estados, que muitas vezes pensam que tudo gira à sua volta.

 

Z.M. — Penso que, sobretudo, os órgãos de comunicação social privados de Moçambique estão a fazer o seu melhor, tendo em conta as suas próprias circunstâncias. Penso que não podem fazer mais, por vários factores. Um deles é financeiro. Não são bem financiados, dependem da publicidade. E há que ter em atenção que os proprietários das empresas privadas que pagam a publicidade têm algum tipo de associação ao partido dominante ou aos governos, e não é preciso muito para convencê-los a não fazer publicidade nesses órgãos de comunicação social através de anúncios.

 

A.B. — É exactamente o tipo de coisas que, por vezes, são designadas por civilidade da opressão, opressão civil. Não se trata de uma ameaça declarada, mas é como diz, trata-se apenas de retirar os rendimentos comerciais a uma empresa de comunicação social. E isso coloca uma pressão imediata. E estas são tácticas que observei quando estava a fazer investigação no Kosovo, e na Bósnia, nos Balcãs. Quando os meios de comunicação privados se tornaram demasiado críticos, o governo certificou-se de que os interesses comerciais dessas empresas, aos quais o governo estava associado, cancelariam a publicidade nesses meios, e o próprio governo cancelou também a sua. Depois tornou-se muito difícil para um jornalista continuar a escrever e a dizer o que queria, porque o proprietário da empresa de comunicação social ou o chefe de redacção diria “será que podes ser um pouco menos crítico, para não irmos à falência?” Evidentemente, trata se de uma posição muito difícil para os meios de comunicação social, que fazem parte da sociedade civil, pelo menos para os meios de comunicação social privados. Além disso, a maioria precisa de uma base comercial estável para manter a actividade. E é sempre difícil gerir esta situação.

 

Z.M. — Uma vez, participei num debate com o editor de uma empresa privada de comunicação social em Moçambique, que sugeriu que talvez tenha chegado a altura de adoptar outro modelo de financiamento. Não se trata necessariamente de publicidade, mas, por exemplo, recorrer ao mesmo método de financiamento das ONG, através de fundações ou doadores. Talvez os meios de comunicação social também pudessem considerar essa opção. E penso que o grande desafio, quando os financiadores são doadores e fundações, é o facto de estes quererem resultados, quando dão o dinheiro precisam de ver como é que é gasto. E, como sabe, também não queremos esse tipo de microgestão implementado num órgão de comunicação social. Talvez funcione para as ONG, mas não creio que vá funcionar para a imprensa. Porque depois teríamos de dizer que deixámos de depender do estado, deixámos de depender dos empresários, mas passámos a depender de interesses, e de apenas mais um grupo. Sim, seria como se, no final do mês, fosse pedido ao editor que apresentasse um relatório de quantos artigos publicou sobre um tema. E não é esse o tipo de jornalismo que gostaríamos de ver. Eu ia referir ainda outra forma que contribui para que a comunicação social não seja activa, que é atacar as ambições dos próprios profissionais. Podemos ver, por exemplo, no caso de Moçambique, muitos dos melhores jornalistas, os mais brilhantes já não são jornalistas. Aderiram às ONG porque sentem que estas são de facto mais independentes e, assim, podem concentrar-se no trabalho que querem realmente fazer.

 

A.B. — Foi o seu caso, também mudou para as ONG…

 

Z.M. — Embora, no meu caso, eu estivesse a trabalhar para a BBC, que é uma organização mais independente, mas, ao fim e ao cabo… É a mesma coisa, porque todos nós temos ambições individuais. E penso que os meus colegas de profissão têm assuntos nos quais se querem concentrar nas suas investigações, e na redacção não lhes é dada essa opção porque é dispendiosa. É um grande investimento de tempo ter um jornalista dedicado a apenas um assunto, e ninguém vê o que ele está a preparar, porque ninguém sabe do que trata a investigação ou porque é secreta. Por isso, eles atacam essas ambições. Assim, o que temos visto é que muitos dos grandes jornalistas já não estão a trabalhar nas redacções, e o que temos na redacção são jovens profissionais que acabaram de sair da universidade. E o salário que ganham, novamente devido ao que acabámos de referir sobre as finanças da organização, nunca é suficiente. Por isso, é fácil influenciá-los, para que alterem o ângulo da cobertura jornalística de um determinado assunto. Este é um aspecto. O segundo aspecto é que é muito fácil convencê-los a não enveredar por um determinado caminho. Porque, se o fizerem, estarão a prejudicar as suas carreiras no futuro.

 

A.B. — Há actualmente duas vezes mais funcionários de política de informação a trabalhar para as instituições estatais do que há jornalistas. Para cada jornalista, há duas pessoas do estado que transmitem informações, com o seu lado da história. Portanto, é também para essa função que vão alguns dos jornalistas. São comprados de uma forma diferente, não pelos sectores das ONG, mas pelos sectores do estado. Por outro lado, vejo mais uma tendência positiva para a comunicação social no espaço cívico. Trata-se da crescente colaboração entre o jornalismo dos cidadãos, por um lado, e os jornalistas profissionais, como já foi o seu caso, em que as histórias e, por vezes, as provas, são obtidas por cidadãos jornalistas. Vimos isto na guerra civil na Síria, claro, onde os cidadãos jornalistas recolheram provas e depois o jornalista profissional pôde usá-las para criar notícias profissionais. Mais uma vez, idealmente trata-se do ecossistema a funcionar. Mas ainda precisamos de jornalistas profissionais, precisamos do jornalismo de investigação crítica, juntamente com os cada vez mais difundidos meios de comunicação social descentralizados dos cidadãos.

 

Z.M. — É verdade. E continuo a insistir na questão do financiamento porque, sempre que falo com jornalistas jovens, o mais provável é encontrar aqueles que usam o jornalismo como trampolim para chegar a outra posição. Têm grandes ambições e querem tornar-se políticos ou directores de qualquer coisa e ganhar muito dinheiro, isto é mais provável do que encontrar um grupo de jovens jornalistas que simplesmente queiram ser ouvidos ou conhecidos por serem bons jornalistas, independentemente do resto…

 

A.B. — Penso que também é o caso da sociedade civil de um modo mais generalizado, porque falou basicamente do ângulo económico, e é também por isso que vemos esta redução do espaço cívico, muitas vezes os estados tentam dificultar o financiamento. Concentram-se normalmente no financiamento que vem do estrangeiro, aplicam restrições a esse processo e querem controlá-lo. Mas o problema é mais geral, é claro que a sociedade civil precisa de meios práticos mínimos para funcionar, mas também de financiamento. Pode vir de cidadãos individuais que se tornam membros de movimentos sociais, de associações e formas de financiamento com pequenos valores, ou outros tipos de financiamento atribuído pelas fundações, o certo é que é preciso algo para funcionar. Portanto, o elemento do financiamento é também um meio de controlo. Pode ser, mas é também um reflexo de aspectos mais vastos da justiça social e das desigualdades sociais nas diferentes sociedades. Em muitos casos, a disponibilidade dos meios mínimos para funcionar faz toda a diferença para o nível de intervenção da sociedade civil.

 

Z.M. — Ao fim e ao cabo, tudo se resume à questão do aspecto económico, até mesmo com a própria pandemia… Como sabe, nos países pobres as pessoas chamam a esta coisa da COVID-19 “a doença dos ricos”, “a doença dos imunes” e “a doença das pessoas selvagens”. E isto acontece porque todas as restrições e medidas que são aplicadas só podem ser seguidas pelas pessoas que têm algumas posses. Dizem para ficarmos em casa, o que não é viável para as sociedades onde as pessoas precisam de sair. Precisam de sair para ganhar dinheiro, precisam de sair para não perderem a sanidade mental. Ou porque nos dizem para cumprir o distanciamento de um metro e meio a dois. Nas sociedades como a nossa, as pessoas passam muito tempo em multidões nos mercados e têm de fazer fila para tudo. E criam-se preconceitos de que só os tolos saem de casa para ir trabalhar. Assim, a ideia do distanciamento social e das distâncias físicas é simplesmente impossível de implementar, não funciona, nem consigo sequer imaginar-me a viver com distanciamento social. E depois há a questão dos materiais que temos de utilizar para nos protegermos, as máscaras, o álcool gel. Lavamos constantemente as mãos, mas quantas pessoas têm realmente dinheiro para comprar máscaras? Quantas pessoas se podem dar ao luxo de comprar álcool gel para desinfectar constantemente as mãos? Quantas pessoas têm água nas suas casas para lavar constantemente as mãos? E estas tendências afectam também os activistas, os jornalistas e todo o resto da sociedade, porque todos fazemos parte dela, certo? Há uns dias, eu estava a falar com um jornalista sobre… Ele queria contactar uma fonte, e foi sem máscara. E eu perguntei-lhe: “Mas não tens medo de apanhar o vírus?”, e ele respondeu-me: “Tenho mais medo de regressar à redacção sem a história. Porque isso significa que não terei nada para vender nesse dia. E isto significa que não vou ter dinheiro para alimentar os meus filhos. E se eu não tiver dinheiro para alimentar os meus filhos, então há outras doenças perigosas que, para mim, são piores do que a COVID. E estou a falar da cólera, malária e outras doenças habituais no mundo em que eu vivo.” Portanto, penso que tudo isto afecta os resultados, o envolvimento das pessoas, e também o acesso ao espaço cívico e como este deve funcionar. Quero dizer, os activistas têm de protestar. É algo básico. Precisam de liberdade de associação, precisam de se reunir, precisam de se encontrar, de ter reuniões e de discutir ideias. Não se consegue encontrar provas contra o governo ao telefone, não faz sentido que o nosso telefone seja atacado, temos de nos encontrar com os nossos colegas e discutir as questões. A COVID impediu que isso acontecesse. Já passaram dois anos. Ninguém pode sair para protestar por nada. As pessoas não podem sair para quase nada. Nem sequer podem fazer exercício, quanto mais reunir-se em grupos. E penso que os governos estão efectivamente a abusar de todo este processo de imposição de restrições devido à COVID para limitar a actividade da sociedade civil.

 

A.B. — E também creio que aquilo que disse é que há basicamente uma segunda pandemia, não apenas médica, mas também no que toca a estas políticas que os países copiam muito facilmente uns dos outros, que estão a implementar todas estas restrições que, por vezes, são completamente inadequadas à situação de um país. E até dentro dos países, quando dizem para ficarmos em casa, até nos Países Baixos, aqui, que é um país muito rico, claro, há grandes diferenças quando as elites dizem “podem ficar em casa e passar tempo no jardim”, mas metade da sociedade não tem um jardim. Portanto, estão com a sua família num pequeno apartamento. E isso é muito, muito mais difícil. Portanto, as desigualdades afectam muito as pessoas até nos países muito ricos. E é claro que os espaços cívicos também são prejudicados, porque não se pode protestar facilmente, porque muitas vezes é proibido por causa da pandemia. Mas, talvez para concluir com uma nota positiva, vejo nisto um lado positivo, que as pessoas são muito criativas. Por isso, continuaram a encontrar formas de fazer ouvir as suas vozes na sociedade civil. Nalguns casos protestaram em grandes grupos com um metro e meio de distanciamento em praças grandes, noutros casos protestaram de carro ou a partir da sua varanda, quando não podiam ir à rua. Protestaram juntos online através de aplicações. Por isso, para mim, no ano passado, com a pandemia, o espaço cívico foi realmente limitado em muitos países, mas também demonstrou a sua resiliência, porque provou que as pessoas tentam ser criativas para defender esse espaço cívico e encontrar novos espaços online. Se não podem estar na rua, acedem à Internet. Se não se podem manifestar numa praça, por vezes fazem-no no telhado da sua casa. E isso deixa-me com um brilho de esperança neste ano pandémico.

 

Z.M. — Apenas para lhe dar um exemplo de um país que está a fazer isso muito bem: o governo angolano é simplesmente intolerante com manifestações. E, durante muitos anos, usaram esta desculpa para não permitir que as manifestações acontecessem. E a nossa crítica tem sido que não se pode impedir as pessoas de se manifestarem; isso representa uma violação da própria constituição. Não se pode porque a constituição diz que as pessoas têm liberdade para protestar, por isso não se pode impedir ninguém de o fazer. E agora dizem que não estamos autorizados a protestar contra o estado por causa das restrições da COVID-19, somos aconselhados a não sair à rua porque estaremos a desrespeitar estas decisões. E o que os jovens estão a fazer é ir para as ruas, e seguem rigorosamente as recomendações para provar que respeitaram as restrições da COVID. É fantástico. Por exemplo, iniciaram recentemente uma campanha contra a inacção do governo na recolha do lixo das ruas, e pediram a todas as pessoas nas redes sociais, no Facebook, que tirassem fotografias do lixo que encontrarem perto das suas casas. E as pessoas fazem todo o tipo de discursos engraçados. É sem dúvida um enorme embaraço para o governador da capital de Luanda, porque todas as pessoas podem tirar fotografias para mostrar o que se passa. Não se importam de tirar uma selfie junto a um caixote de lixo completamente cheio e publicá-la nas redes sociais para dizer “olhem, também tenho lixo na rua da minha casa”, por isso concordo consigo. As pessoas tornaram-se mais criativas. É verdade que os governos aplicaram muitas medidas que limitam as actividades da sociedade civil… Mas as pessoas estão a tornar-se criativas nas redes sociais, e esse espaço tornou-se um veículo genial para ajudar a sociedade civil a repensar-se e a crescer…

 

A.B. — Essa é a verdadeira resiliência da sociedade civil…

 

Z.M. — Sim, e também aprender com o que os outros estão a fazer…

 

A.B. — Sim. Exactamente. Não são apenas os governos que aprendem uns com os outros. Mas também os activistas.