Dicionário de ideias e imagens feitas

Fátima Proença

Directora da ACEP, intervém desde a década de 80 na cooperação não governamental. Tem dinamizado processos de investigação/acção em África e de advocacia na sociedade portuguesa, em colaboração com pessoas e organizações da sociedade civil europeias e africanas.

“Um exercício de questionamento, com pistas de leituras e reflexões, sob forma de dicionário, inspirado em Gustave Flaubert e no seu olhar crítico sobre a sociedade francesa da segunda metade do século XIX.”

Ajuda: acto de ajudar, auxílio, favor (in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa).“Ajuda” vem progressivamente substituindo a palavra “Cooperação” na linguagem “técnica” das relações internacionais, consagrando a assimetria nas relações de poder como algo natural, não questionável. Alguém ajuda quem? A troco de quê? São – entre outras – perguntas que não se colocam.

Beneficiários: Da lógica da “ajuda” resultam os “beneficiários”, os alvos da ajuda, o objecto da ajuda.

Complexidade: A compreensão das desigualdades extremas, no acesso aos recursos que são de todos, não pode ser só objecto de estudos académicos. As suas raízes, os avanços e recuos nas formas de as combater, precisam de ter espaço nos media. Assumindo a sua quota de responsabilidade social, os media teriam assim uma contribuição importante para a desconstrução das ideias feitas e para a “aprendizagem do mundo” de que fala Paulo Freire.

Doador: Na linguagem da Ajuda, trata-se do país, organização, que disponibiliza recursos financeiros para o desenvolvimento – e que é notícia por essa razão. Não se contabiliza e não são notícia o tempo, os saberes, os recursos naturais ou outros, com que os “Beneficiários” da Ajuda contribuem, nem tão pouco a parte dos recursos financeiros que não chegam aos “Beneficiários”.

Estética e ética: A questão da estetização do sofrimento, a sua passagem à categoria de obra de arte, tornando-o mais asséptico, passando para a categoria do “belo”, foi colocada por Augusto M. Seabra, no jornal Público, sobre o que chamou “a questão fulcral da ética do olhar e o abuso do real, uma insustentável beleza da dor e dos desastres da humanidade”. Partindo do prémio World Press Photo de 2012, a chamada “madona Árabe”, propõe-nos uma reflexão sobre o papel destes prémios, os contextos em que as fotos são apresentadas e os limites da estetização do real doloroso.

Fotografia: Entre a “banalidade do mal” e a banalização das imagens há uma distância muito curta que não deve ser percorrida. Que mais não seja também pela cristalização de estereótipos e pela anestesia moral ou emocional que muitas das imagens do que chamaria “a África dos Pulitzers” arriscam provocar. O “bairro 6 de Maio”, retratado na VICE, é o Bairro 6 de Maio, na periferia da Amadora, distrito de Lisboa, onde vivem famílias, as crianças vão à escola, mulheres e homens saem todos os dias para trabalhar? Depois desta reportagem, que ganhou esta comunidade, para além da cristalização do estereótipo, do estigma?

Geografia: “A projeção do nosso globo mais utilizada até hoje foi a ‘Projeção de Mercator’, feita por Gerardus Mercator, em 1569. Essa projeção, porém, é alvo de críticas, tanto por ser eurocentrista – a Europa é o centro do mapa – quanto porque o mapa é bastante distorcido nos extremos norte e sul do globo; por exemplo, a Antártida está bem maior que o continente da África, quando na verdade a África é quatro vezes maior que este”. (…) “A projeção de Gall-Peters é dita ‘terceiro-mundista’, por dar um realce maior às nações que historicamente compõem a parte mais pobre do mundo. Arno Peters baptizou a projeção de ‘mapa para um mundo mais solidário’. Embora conserve a mesma distorção em longitude, os países situados em altas latitudes são relegados a um segundo plano, ao contrário da projeção de Mercator. A maior diferença da projeção de Gall-Peters para a representação de Mercator é o achatamento do continente europeu e alongamento do continente africano”. (in https://pt.wikipedia.org/wiki/Mapa)

História única: Talvez mais do que as palavras, as imagens podem contribuir para a construção da história única, de que nos fala a nigeriana Chimamanda Adichie. Tomemos por exemplo a reportagem de um país reduzido à imagem de “cocaine country”. Esta é a história única, apreendida pelo leitor japonês da edição japonesa da Newsweek, sobre um pequeno país, na costa ocidental de África, de que nada mais sabe, a não ser o que lhe é transmitido por algumas imagens do “cocaine country”. Esta imagem única, superficial, na maior parte das vezes “chocante”, estereotipa realidades bem mais complexas, provocando preconceitos, ideias feitas, exclusões. Internamente àquelas realidades, os protagonistas não se reconhecem nas imagens que deles são feitas, mas elas consomem as energias e auto-confiança necessárias à auto-construção de imagens alternativas.

Imagens: Numa comunicação que apresentei há tempos sobre as imagens na construção de imagens de África, referi que nunca utilizaria muitas das imagens ali apresentadas para falar de África em qualquer contexto, a não ser para falar das imagens em si mesmas. Elas tinham o poder de mostrar as visões simplificadoras, redutoras e estereotipadas com que somos repetidamente confrontados. Mas tenho como princípio que há limites quanto à bondade dos fins: “Dar a vida sem morrer”, uma série gravada na Guiné-Bissau e emitida na RTP, é um péssimo exemplo, de ultrapassagem de linhas vermelhas – de violação da dignidade, da intimidade na vida e na morte, que questionam a ética profissional e a responsabilidade institucional dos media (ainda mais de um media público).

Jornais: “O jornalismo mainstream, mesmo o jornalismo de referência, está quase capturado neste momento pelo primeiro ângulo de abordagem que é a quantidade: morreram hoje mais 900 pessoas a 150 metros do el dorado [a Europa] ou estão 2.000 pessoas impedidas de entrar” (Adelino Gomes, Aquele Outro Mundo que é o Mundo, ACEP).

Kapuscinski: “Dependendo do lugar da terra de onde olhamos, o mundo tem um aspecto diferente e compreende se de maneira diferente”. Por isso, recusa a ideia do mundo como “aldeia global”, pois que apesar dos progressos no domínio das comunicações, “o nosso conhecimento mútuo continua a ser superficial”. A complexidade  continua a ser um estorvo ao tempo cada vez mais limitado da agenda das redacções. “O segundo requisito da nossa profissão é o aprofundamento constante dos nossos conhecimentos. Há profissões em que vamos para a universidade, obtemos o nosso diploma e o estudo acaba ali. Devemos simplesmente gerir, para o resto da vida, o que aprendemos. No jornalismo pelo contrário a actualização e o estudo constantes são a conditio sine qua non.”

Linguagem (de superioridade) moral, cultural: Ela tem subjacente uma relação de poder, que vai perpetuar as armadilhas quotidianas dos  sensos comuns, do simplismo e da impossibilidade de estabelecermos relações de igual para igual, no conhecimento das nossas diferenças. O extremo desta linguagem pode encontrar-se nas áfricas encenadas. Não são poucas as histórias como a da câmara que chegou atrasada à tomada da imagem de choque, na coluna de refugiados no Congo, “obrigando” a uma nova batalha por sacos de milho, para que uma grande cadeia internacional a pudesse filmar “para nós”. Ou quando a realidade não corresponde,  suficientemente, para a competição num mercado com cada vez mais imagens, e precisa ser encenada, retocada. Susan Sontag: “na era das câmaras, o genuíno pode não ser suficientemente terrível, precisa, portanto, de ser aumentado, ou reconstruído de forma mais convincente”.

​Mercantilismo: Num slogan de marketing, em 1949, a revista Paris Match autodefinia-se como “o peso das palavras, o choque das fotografias”. Setenta anos depois as técnicas de marketing mudaram, e o peso das palavras claramente diminuiu relativamente ao das imagens. Gerardo González Calvo: “Informar já não é dar notícias verdadeiras, mas sim produzir informações que vendam (…). O mestre da reportagem que foi Ryszard Kapuscinski disse em Espanha, quando veio receber o prémio Príncipe das Astúrias de Comunicação e Humanidades, em 2003, que ‘actualmente a informação é unicamente uma mercadoria’”. Os critérios do que é notícia não são mais qualitativos, mas sim quantitativos: Quantos vão ler isso? Quantos leram isso? E passou a existir um contador de cliques, que substitui um director editorial.

Necessidades: Na linguagem da Ajuda “nós” temos recursos, “eles” têm necessidades.

​Omissão: A ausência dos temas do desenvolvimento não é unicamente um facto nos media, devido à captura da agenda pela quantidade, ou pela visibilidade. Também os dirigentes políticos têm uma responsabilidade, ela também quantificável: quantos eurodeputados portugueses fazem parte da Comissão de Desenvolvimento do Parlamento Europeu? (Resposta: zero, no actual mandato). Quantas vezes o responsável governamental da Cooperação para o Desenvolvimento é confrontado com perguntas dos Deputados na Parlamento, sobre a sua área de responsabilidade? Quantas vezes o responsável político da área os desafia a reflectir sobre os desafios actuais do desenvolvimento?

​Pobreza: Para a professora Manuela Silva, a pobreza é uma violação dos direitos humanos. O Prémio Nobel da Economia de 2019 foi atribuído a três cientistas que têm procurado perceber o que é possível fazer para atacar as muitas formas que a pobreza assume. Esses não são temas de reportagem nos media mainstream. Mas têm passado por iniciativas, que têm por fim desocultar e decorrem paralelamente aos media, realizadas por jornalistas que assumem a responsabilidade cívica da profissão.

Quem: Uma das perguntas básicas da notícia é “quem?”. Nos temas do desenvolvimento o “quem” é, muitas vezes, “quem está a ajudar”, “quem está a financiar “. Quem está a fazer o que muda, para melhor, a sua vida e de muitas vidas à volta, é muitas vezes invisível: não está nas redes sociais, não está à beira de um aeroporto ou de uma estrada de alcatrão. E nem sempre ONG ou outros profissionais do desenvolvimento têm a humildade básica para se afastar, e permitir ver do outro lado do espelho.

Responsabilidade: Informar e formar, dando a conhecer as várias histórias ou várias faces de uma história, com respeito pela deontologia própria, não é o papel afinal de jornalistas e fotojornalistas, editores ou repórteres de imagem, independentemente do meio onde trabalham? Por isso, será que a responsabilidade social do serviço público é algo exclusivamente do foro dos media públicos? Emilio López-Galiacho: “Admitindo que a informação de qualidade é muito cara e pouco rentável para os media privados, Manfredi pergunta se então não deveriam ser os media públicos a gastar dinheiro nela. Como concluía Arcadi Espada, o jornalismo não pode morrer, porque terá que haver sempre alguém a dar a notícia. O que tem que mudar é o modelo ético e de gestão, a atitude dos profissionais perante as mudanças profundas da nossa época e a implicação da cidadania no momento de exigir informação verdadeira e responsável. Decidir que meios de comunicação preferimos é decidir que sociedade queremos ser”.

Sontag, Susan: Sobre as imagens do sofrimento, uma das questões que se pode colocar é a de saber se é moralmente aceitável utilizar imagens para gerar sentimentos e reacções de compaixão ou de espontânea e momentânea solidariedade. E neste domínio, os media não estão sozinhos – ao longo das últimas décadas tem sido frequente a utilização de imagens de extremo sofrimento em campanhas por ONG, de igrejas e outras instituições que se definem como tendo missão humanitária. O debate sobre estas práticas pode ser feito a partir de vários ângulos: o dos retratados, muitas vezes na sua maior fragilidade e impotência; o de quem regista e o seu eventual direito profissional ou dever moral de o fazer; o dos efeitos em de quem vê depois, leitor/espectador. Mas raramente neste debate têm voz os primeiros. E quanto aos últimos – os leitores/espectadores – existe uma grande probabilidade de acontecerem várias coisas não contraditórias entre si: a confirmação da ideia (ou do preconceito) de que é “lá”, num canto remoto de outro continente que estas coisas acontecem, confirmando assim todas as ideias feitas, sobre a nossa superioridade cultural, política, etc.; a confirmação de que isso acontece por razões com que não temos a ver, como razões culturais, a corrupção, uma suposta propensão para a violência, etc… e, como consequência, a confirmação da nossa distante inocência; a adesão efémera à campanha que nos é proposta e depois o alheamento e cansaço progressivo; ou, mais recentemente, o auto-centramento nas nossas dificuldades, dentro do pequeno mundo em que nos sentimos parte.

Tolerância: Sob uma capa de princípio moral, ela traduz de facto um conceito equívoco e uma linguagem de superioridade – tolero-te, mas isso não significa que te reconheça como igual, que te respeite na tua diferença. Esta é uma palavra muito presente no discurso dos chamados profissionais do humanitário, conquistou lugar nos manuais escolares, (de)forma relações com o Outro. Frei Bento Domingues: “Em 1997, Diogo Pires Aurélio, num livro admirável de filosofia (Um fio de Nada. Ensaio sobre a Tolerância, Lisboa, Cosmos, 1997), destacou a banalização e a ineficácia do discurso sobre a tolerância. (…) A intolerância existe em todo o ser humano, mas o homem pode lutar contra a intolerância. O contrário da intolerância é o respeito do outro” (Público, 28.10.2001).

Universalismo e cosmopolitismo: Sem entrar num debate sobre diferenças, ambos são conceitos importantes para um século de recuos não imagináveis para os egoísmos nacionais, e visões provincianas do mundo, reveladoras de novos medos. “Vivemos infelizmente tempos em que a afirmação do cosmopolitismo voltou a ser uma necessidade ética” (Rolin, O.). Uma ideia de mundo partilhado, a curiosidade sobre o outro, a recusa das fronteiras como dogmas, serão as bases para a afirmação de princípios valorizadores dos direitos humanos, do meio ambiente e promotores da sustentabilidade do planeta.

Visibilidade: Clonar as notícias passou a ser tarefa de departamentos de comunicação das instituições do Desenvolvimento (Natalie Fenton). Sob o argumento de que os contribuintes devem poder saber o que é feito com o dinheiro dos seus impostos, existe, de facto, uma competição pela visibilidade entre agências de vários tipos. Há
algum tempo circulou uma nota escrita de uma delegação de uma agência financiadora que instruía os utilizadores dos fundos para, na inserção do logotipo nos materiais de comunicação, respeitarem gráfica e geometricamente a proporção dos 75% do financiamento desta agência, relativamente aos 25% de outros financiadores.

WhatsApp: Continuamos hoje a falar em Media e Desenvolvimento, como no século passado. Como fazer face a novos media que não têm qualquer controlo social, ou referenciais éticos, em que todos somos “profissionais” da comunicação, em que qualquer um multiplica infinitamente discursos de ódio, usa a arma da mentira e cultiva a ignorância?

Xenofobia: Para combater o discurso do ódio precisamos continuar a ler Simone. Weil: “A violência transforma em coisa quem quer que lhe seja submetido” (A Ilíada ou o poema da força, 1940).

Yourcenar, Marguerite: “- E os jornais, lê-os diariamente? – (…) É preciso lê-los todos e confrontá-los uns com os outros (…). Desde logo, porque a imprensa é demasiadas vezes um espelho falseado, em que os acontecimentos e os homens nos aparecem deformados, engrandecidos ou diminuídos, conforme o caso. E depois porque as verdadeiras razões nos escapam quase sempre…”. (in De olhos abertos)

Zink, Rui: “No dia em que tiver medo de incomodar acho que estou a ser enterrado vivo” (Ípsilon, 26.10.12). O jornalismo, no sentido também de testemunho, não precisa de ser incómodo?