É difícil

Vasco Veloso

Nasceu em Lisboa. Jurista de formação, procura a diversidade nas opiniões e nas experiências. Trabalhou diversos anos na Comissão Europeia até se mudar para o Gana em 2009. Desde então trocou várias vezes de país e de trabalho. Realiza regularmente tarefas de monitorização e avaliação de projectos de cooperação para o desenvolvimento em múltiplos países africanos.

Freetown, 04h30 numa manhã de Maio. A gasolina empesta o ar, o barco que assegura o transporte para o aeroporto voa, e a cada onda um abismo de escuro. Entre o sono não deixado acontecer e a certeza da espera de horas que se aproxima, na cabeça aquela entrevista dois dias antes: community officer, sobrevivente de Ébola; a praia à frente e a sombra a chamarem a conversa, e esta que vem e se instala, a saúde pública, o estigma, as sequelas, “é difícil, sabes, não estávamos preparados”, o estado da Saúde e a saúde do Estado. Os sobreviventes são chamados grupo vulnerável, novas linhas de subvenção, mais um grupo vulnerável e são poucos os que vulneráveis não são no país. Uma onda maior e grande o salto, mas não tão grande como as máquinas, soldados da desflorestação que continuam a avançar, umas vezes mais lentamente que outras, pelas florestas também fronteiras.

Uma tarde de Março, estrada de Bafatá para Bissau. “Sabes, é difícil”, diz o Wilson, olhos na estrada enquanto arrancávamos deixando para trás um grupo de crianças. Tinham-se juntado a observar-nos a olhar para um qualquer cajueiro e a discutir como funciona a apanha do cajú, o papel do arroz, o preço que vai flutuando tal como flutuam os barcos próprios da época no porto, ou os bolsos onde se guardam as chaves das casas dos poderes. Seguimos viagem, as desigualdades estão à vista e reclamam serem faladas nos relatórios a escrever, critérios a analisar, relevância, eficiência, eficácia ou sustentabilidade, o impacto virá medido depois, ou então não.

Não longe de Rosso, na Mauritânia, um calor abrasador e o rio Senegal ali tão perto. A certa altura impõe-se na entrevista uma pergunta como “algo mudou?”, apesar de já saber que tudo mudou, as antigas terras já não lhes pertencem, as novas são pobres, os documentos foram negados durante anos e agora, mesmo se os conseguem, de pouco servem e não há o que é preciso, a comida, as escolas, o trabalho, a saúde. À sombra quente de um toldo, a vista enquadrada pelas poucas casas que formam este campo, um rosto cansado ensaia a clássica resposta de que o projecto está a tentar mas é difícil. É difícil, concordo, enquanto vou olhando a impotência do toldo face ao sol.

“Quem tem boas estradas tem mais oportunidades”, oiço o colega dizer, enquanto o carro vai saltando nos buracos da estrada à chegada a Bukavu, na República Democrática do Congo. Buracos também podem ser minas, como aquelas que se vão instalando pelas colinas, são mais que mil as colinas, uma natureza exuberante há demasiado tempo assolada por armas e guerra, lugar de insegurança, de sofrimento animal e humano. À noite toca o telefone, ao levantá-lo a columbite e tantalite revelam o seu verdadeiro peso. Saindo a apanhar ar, o livro de pedagogia do guarda da casa ali pousado, o único livro que tem, são precisos mais para que se espalhem pelas colinas as palavras a entupir as armas, a combater a impunidade.

As desigualdades desafiam a dignidade, a diversidade, os direitos, a tolerância, a inclusão, a liberdade. A narrativa internacional de desenvolvimento, os seus actores e os seus projectos continuarão a contar com os seus grupos-alvo, os seus beneficiários, os seus processos e sistemas, os seus objetivos e resultados. Mas, ao reconhecerem as desigualdades, devem nelas focar-se, tratando de forma central e coerente situações demasiadas vezes empurradas para as margens de um qualquer relatório.