O Museu da Mafalala é história viva e tem atraído o centro para a periferia artística

Vanessa Rodrigues

É jornalista independente, documentarista, professora na Universidade Lusófona (Porto), onde é também doutoranda em Estudos em Comunicação para o Desenvolvimento, com uma investigação sobre Jornalismo e Desenvolvimento Humano. É autora do livro Ala Feminina. Viveu no Brasil - correspondente do DN e TSF - e na Jordânia. Em 2017, recebeu a Bolsa de Criação Jornalística sobre Desenvolvimento.

Foto: Mac – Creative Lines

São 11h35 do dia 17 de Setembro de 2020. Ivan Laranjeira, 36 anos, um dos mentores e o rosto mais visível da associação IVERCA – Turismo, Cultura e Meio Ambiente, no bairro da Mafalala, demorou menos de um minuto a responder à minha mensagem Porto-Maputo. “Achas que podemos falar uns minutos para me actualizar sobre o museu e os vossos projectos?”, escrevi. “Super, vamos a isso”, devolveu. Ivan está sempre ocupado, mas, quando o assunto é Mafalala, está sempre disponível. No meio de entrevistas para a imprensa, da responsabilidade de produção executiva nessa ONG moçambicana e projectos pessoais, Ivan tem uma relação umbilical com o bairro, onde moram, actualmente, cerca de 25 mil pessoas. Chama-lhe “a capital de Maputo”. No passado, a Mafalala foi o ponto de encontro de intelectuais moçambicanos reconhecidos, como por exemplo os poetas Noémia de Sousa e José Craveirinha, o músico Fany Mpfumo, rei da marrabenta, e o pintor Malangatana, entre outros que alimentaram o mito deste bairro. Lá nasceram e cresceram, também, personalidades que fizeram a história de Moçambique como os jogadores de futebol Eusébio e Hilário da Conceição e os presidentes da República Samora Machel e Joaquim Chissano. Além disso, o bairro é conhecido por ser símbolo da oposição cultural e política africanas à administração colonial portuguesa. A Mafalala é património tangível e intangível da identidade moçambicana.

Depois de meio ano fechado devido à pandemia, o Museu da Mafalala, inaugurado a 14 de junho de 2019, reabriu em meados de Setembro. Por isso, o também presidente e coordenador do “Programa de desenvolvimento comunitário – Mafalala Turística” e a equipa andam numa azáfama, para “reativar os serviços que o museu oferece com maiores cuidados”, com “protocolos de prevenção e segurança”. “É um cenário catastrófico”, admite, “com a cena cultural toda parada”, complementa. Um cenário discrepante dos dias que se seguiram à inauguração, quando o museu, integrado numa das comunidades culturais mais pujantes da capital moçambicana, entrou em modo tunning. Produziram já o Festival Internacional de Poetas de Moçambique, o Festival Kinani (plataforma de dança contemporânea), o Festival da Mafalala e várias exposições. E tiveram inclusive uma iniciativa online, durante o confinamento: Até Couve de 19 Subiu. Mais recentemente andaram em modo Running from the urb, que é um mapeamento digital e virtual do bairro da Mafalala. “Há uma fotografia, um rapper [Kloro Killa] e um local que simboliza parte da história da Mafalala, vai-se catalogando cada um desses lugares, e faz a ponte entre o que é o legado da Mafalala com a arte desse rapper.”

“Museu comunitário, moradores como promotores do património”

Da primeira vez que visitei a Mafalala, em 2017, o museu, que foi co-financiado pela delegação da União Europeia e cooperação Alemã em Moçambique, era ainda um bloco cinzento de arame maciço e cimento. O espaço faz parte do projecto “Protecção Patrimonial & Desenvolvimento Local: valorização histórica, cultural e ambiental nas províncias de Maputo e Inhambane”. A ideia era criar formas de promover a participação popular, para preservar o património público, ao mesmo tempo que se promovia a empregabilidade de jovens e mulheres no âmbito da indústria criativa. Tem hoje 14 funcionários.

Em 2018, quando regressei, o edifício estava em fase finalização. Ivan mostrou o espaço com os olhos a brilhar de sonhos. Salas de exposição, alojamento em dormitório para backpackers (Bed & Breakfast), quartos, residências artísticas, galeria de arte.

O zinco, o cimento e o vidro são as três matérias primas que ergueram este espaço museológico, influenciado pela arquitetura das casas do bairro. Tem inclusive motivos arabescos sulcados no cimento, numa clara inspiração nas mesquitas que fazem parte da cultura religiosa ao redor. Hoje, o museu comunitário da Mafalala é muito mais do que o resgate da história e da memória deste bairro mítico e motivo de orgulho para Moçambique. É um museu vivo. A par das várias iniciativas culturais, “a comunidade usa muito o espaço para casamentos, batizados, aniversários”, afirma o gestor cultural. “As creches aqui do bairro fazem os seus encerramentos do ano letivo no museu”, acrescenta, recordando, ainda, os projectos do serviço educativo e as festas para crianças que ali aumentam o burburinho.

“Democratizar a cultura, trazer o centro à periferia”

Ivan considera que “o impacto do museu é muito grande” na comunidade, sendo essa “a mais importante das perspectivas”. Não só já valorizou, como “mudou, deu uma outra cara ao bairro, deu outra perspectiva à Mafalala”. Mais: houve um deslocamento da cultura do centro de Maputo para a periferia. Para Laranjeira, o museu tem permitido mudar “o entendimento” que as pessoas têm sobre a Mafalala e “sobre o património de uma maneira geral localizado na periferia de Maputo”. Isso porque o museu não só tem motivado “todo um debate a respeito do que é o património cultural e a legislação associada”, mas também “tem uma perspectiva de impacto que democratiza o elemento artístico”, garante. “Começamos a ter cada vez mais e mais festivais e eventos, e o movimento artístico a vir para a periferia e a ter eventos de qualidade que, de outra forma, não aconteceria. E que é raro de ter em bairros como a Mafalala”. Ao mesmo tempo, acrescenta, “também aborda a questão da descolonização e os olhares a respeito do processo colonial e como isso, também, é importante discutir, e como continua a ser relevante e pertinente para percebermos o momento atual.”

O museu da Mafalala tem sido considerado um exemplo de “requalificação da periferia”, e iniciou uma discussão nesse sentido do ponto de vista urbano, afirmando-se como um modelo-alternativo inspirador para ser implementado noutros locais. Depois, reflecte Ivan Laranjeira, o facto de o Museu da Mafalala ser, igualmente, um espaço de pesquisa e de documentação, leva a que “as pessoas sejam expostas a novos elementos e aprendam um pouco mais sobre a Mafalala e não ficam com aquela ideia superficial de que é um bairro histórico apenas”.

Fotos cedidas por Ivan Laranjeira/Museu da Mafalala

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