Espaços físicos numa realidade (quase) transparente

Ondjaki

Nasceu em Luanda, em 1977. É licenciado em Sociologia pelo ISCTE e doutorado em Estudos Africanos (L’Orientale, Napoli/ Itália). Prosador e poeta, também escreve para cinema, e é ocasionalmente professor de escrita criativa. É membro da União dos Escritores Angolanos. Recebeu vários prémios, como o prémio José Saramago (PT 2013), e o prémio Littérature-Monde (FR, 2016) com o livro Os Transparentes.

1.

….. Se bem que é verdade, como dizem os outros que também somos nós, que a realidade de Luanda se foi tornando transparente não por falta de densidade dos seus ocupantes mas por falta de interesse (capacidade?) na visão de quem andava a olhar pela política que haveria de (se) impor à maioria dos cidadãos. É, assim, possível, desafiando as lógicas da física e da filosofia, que espaços físicos concretos coabitem com uma realidade transparente. A definição e até mesmo a delimitação do chamado ‘espaço físico’ de Luanda remete para um contexto de ‘progressiva ocupação’ que se foi dando ao longo dos anos. Se a guerra vem, como diriam os mais-velhos, de “muito antes”, viria, ela mesma, a terminar em 2002. Mas nada no sofrimento de um povo (ou de uma cidade) por ser chamado de ‘breve’ se remete para processos de profunda desumanização e ou profunda cicatrização. Ainda que as cicatrizes sejam tão invisíveis quanto são reais as feridas. A ‘progressiva ocupação’ remete para a chegada, em ciclos erráticos, de volumosas populações que buscavam a capital do país. Ou por ser mais segura para eles e para os seus; ou porque evidentemente era mais segura para activios que estavam no poder; ou porque ali se processava uma movimentação social e financeira que, misturada com outros fortes boatos, atraía os que noutras paragens andavam atirados pela guerra ou pelos homens, a uma já mais densa falta de segurança, de cuidados, de finanças e até de paz.

Foto: 10padronizada

A guerra fala sempre mais alto e empurra o mundo para as mais inesperadas paisagens. Luanda não foi, contudo, uma paragem inesperada. Pelo contrário: era ‘natural’ que a convergência humana desembocasse ali, junto ao mar, não por ser mar, mas por ser o mar da capital. Esse mar e essa cidade constituíam-se assim, enquanto ‘coisa concreta’ (e de concreto) e enquanto ‘coisa mítica’ como um “espaço urbano” que se foi opondo, no real e no imaginário, ao espaço rural. E Luanda cresceu: com os que já eram ‘seus’ e os que haveriam de chegar para ‘ser seus também’. “Uma manta de retalhos”(1), como afirmou Cornélio Caley.

2.

Impunha-se aqui um longo resumo histórico que escapa à pena deste que vos escreve. Contudo, imaginando que o resumo ‘das guerras’ e até ‘o da paz’ estivesse aqui (bem) feito, seria o momento de apontar algumas das práticas que parecem ter sido activadas pela população luandense afim de reivindicar um ‘novo lugar’ ou um novo ‘significado social’ para o espaço cívico que a cidade admite.

Mas admitem os políticos, os governantes, os decisores, que a cidade precisa de ter efectivamente espaços pensados para cobrir as exigências de um espaço urbano que se aproxima dos 8 milhões de habitantes? Trata-se de um sonho vazio? Mais um fenómeno que poderá tocar (um)a transparência?

As práticas por vezes falam mais alto do que as notícias, os planos e os homens. Já não é possível ignorar a demanda pública por mais e melhores espaços públicos de lazer e de aprendizagem. O fenómeno da ‘adaptação dos espaços’ é visível a cada esquina, largo, avenida. Sobretudo se considerarmos os espaços verdes, ou limpos, ou pensados para o usufruto da população mais jovem. Os maiores largos de Luanda, normalmente pensados como grandes rotundas para a circulação de veículos, são apropriados como espaços de lazer. Se estes espaços contêm uma ‘zona verde’, e se, por milagre, esse verde subsiste por mais de alguns meses, então o local passa a ser também usado como estúdio aberto para sessões fotográficas. Casamentos, baptizados, namoros, e até pedidos de casamento. Se ainda mais espaçosos, podem (passar a) ser recintos desportivos ou de treino. A marginal de Luanda, pelas características arquitetónicas e beleza natural, é dos espaços mais procurados para todas as actividades supra citadas. Mais: é um grande sucesso, um verdadeiro acto de transformação dos hábitos sociais e desportivos dos habitantes que, morando perto, podem usufruir do espaço e transformar as suas vidas. Não apenas pela pista de corrida que oferece, mas também porque permite exercitar o olhar e a poesia.

Não se trata do único lugar. Alguns largos (por exemplo: na Samba) também são usados como local de lazer e zona de prática desportiva. Mas os poucos locais preparados para ‘servir a população’ acentuam a necessidade de muito melhor e maior planificação de uma cidade que cresceu em ritmo avassalador nos últimos anos. O que os jovens demonstram é uma apetência e aptidão para o desporto que pode e deve ser estimulada. Mas a sociedade parece, há anos, clamar por melhor organização do sector desportivo nacional, e isso tem de ser feito de modo a começar desde cedo dando sequência na formação desportiva como complemento à escolaridade ou, opcionalmente, como via profissional.

Do mesmo modo, há lugar (e creio que há a necessidade) do surgimento (e estímulo) de organizações de cariz organizacional sem conotações ou ligações políticas. Temos entre as mãos (e dentro do peito) um país cansado da guerra, dos nomes da guerra, dos rostos da guerra, e do modo como todos esses nomes e rostos se tocam e se confundem com as organizações políticas angolanas.

3.

Os ventos da pandemia tocaram todos os lugares do mundo. O que inclui África e Angola. Ao contrário das mais pessimistas previsões (habituais), o continente africano reagiu ao COVID_19 dentro das suas possibilidades. Esta ‘reação’ sucede, claro está, de acordo com a diversidade política do continente. E o continente não é um todo ‘uno’.

No caso de Angola, do ponto de vista institucional, as medidas foram tomadas com acertada prontidão. Uma vasta equipa multissectorial foi criada e tem cumprido a sua missão de modo muito correto. Esclarecimentos diários, pontualização de dados e informações, diálogo com os jornalistas e até com a sociedade civil. Um exemplo, como se ouve nos canais internacionais e, se comparado ao Brasil, um exemplo de altíssima qualidade.

Uma das mais ‘curiosas’ implicações surgiu, contudo, da própria sociedade civil. Se há dinheiro, mobilização política e financeira, recursos, para lidar com uma grave crise mundial, porque será que outras (mais antigas) maleitas não recebem a devida atenção? A malária, por exemplo. As questões de saúde pública. Até mesmo a insuficiente distribuição de água potável.

Em ‘novos mapas de expressão social’, como por exemplo o (coletivo) ‘canal nacional’ designado por “whatsapp”, onde a informação circula quase à velocidade da luz, as ‘indagações paralelas’ (ao sistema oficial) acontecem, reproduzem-se, instigam o questionamento e a imaginação angolana. E, curiosamente, neste novo tempo da democracia (?) angolana, estas indagações muito paralelas geram reação de fontes oficiais do governo; geram ‘sérios rumores’ que chegam à alta esfera de governação; originam até, por vezes, respostas oficiais para questões que, digamos assim, aparecem colocadas de forma oficiosa. Eis os ‘novos poderes’ da comunicação e da sociedade angolana.

Foto: 10padronizada

Como ressalva, importa destacar duas questões: as ‘vias rápidas da informação’ são de acesso muito limitado, se quisermos falar do todo da população angolana, estando reservadas a quem elas têm acesso ou delas tem conhecimento. Por outro lado, Luanda, a gigantesca capital angolana, embora pareça já ter um quarto da população do país, não é, esperamos todos, “o país”; é apenas uma das suas províncias. Relevante, sem dúvida; porta de entrada da modernidade e dos vírus contemporâneos.

4.

Outras movimentações, interessantes, louváveis, continuam a brotar na esfera pública mas através da iniciativa de movimentos cívicos. Não governamentais. Não oficiais. Não dependentes de vontades e ou orientações políticas.

Gostaria de citar o exemplo de uma biblioteca comunitária, designada “10padronizada”(2), portanto querendo salientar o “não padrão”, o “des-padrão”, o “sem padrão”, no sentido em que foi criada por jovens, em local aberto, num absoluto espaço público. Esta biblioteca existe, literalmente, ‘apoiando-se’ nas estruturas de uma ponte para pedestres, em Viana, populoso bairro da cidade de Luanda. Local de passagem, de vendas, de espera de transportes públicos, cuidado por um grupo de jovens, rapidamente ganhou nome nas redes sociais e foi ‘apadrinhada’ por muitos cidadãos anónimos ou não. As pessoas doam livros, doam atenção, são feitas conversas e lançamentos de livros naquele espaço. O próprio espaço, pela sua qualidade e arrojo, demandou a visita de governantes locais, municipais, uma visita não oficial de mais do que um ministro. Inédito, pode ser dito, em terras angolanas. Belo, também pode ser dito.

Esta iniciativa deu origem ao surgimento de outros projetos comunitários semelhantes. Serve de exemplo, cria novos espaços de uma concreta utopia: livros na rua, livros perto as pessoas, livros livres do controlo das autoridades. E ninguém danifica ou rouba o espaço. Ao contrário do que geralmente se crê. Mais a Sul, na província do Namibe, fica um espaço chamado Mbanje do Livro(3). Criado por uma jovem e professora de escolas públicas, o projecto aproveitou um espaço abandonado, recuperou o espaço com apoios da sociedade civil, e hoje funciona recebendo jovens e crianças que se sentam ali ‘apenas’ para ler. Este último projecto foi pensado, dinamizado e concluído em tempos de pandemia. Sem o apoio oficial do Estado.

5.

As conclusões apontam para a necessidade de um diálogo mais franco, aberto e adaptado com ‘quem governa’. Novas participações, novas propostas sociais, novos ‘caminhos’ têm surgido desse lado da trincheira a que chamamos ‘esfera pública’. Sobretudo, em Angola, numa triangulação entre ONG’s, jovens e livres pensadores da sociedade civil.

Reitero este factor da ‘adaptação’, no sentido social de pôr em prática uma sensibilidade que dá origem à eficácia dos projectos: conhecer a realidade local; estudar as necessidades; auscultar o público alvo; ser parte integrante do público alvo; estar aberto e apto para cumprir com as necessidades colectivas de determinado grupo, num determinado contexto geográfico e etnográfico.

A sociedade angolana, sobretudo o extracto que é constituído pelos mais jovens, investe na ‘performance’ (social?) como instrumento de sobrevivência e de afirmação. É preciso que as instituições governamentais se interessem por entender e respeitar aqueles que fazem hoje o caminho que é o futuro do país. As expressões colectivas devem ser estudadas e ‘aproveitadas’. Urge aumentar as linhas de diálogo, por um lado e, por outro, a qualidade do diálogo entre esferas de poder e esferas cívicas.

A sociedade já demanda que a planificação do destino do país seja elaborada para o/ um longo prazo, com pré-estudos, com controlo de qualidade e com a respectiva responsabilização de quem executa tais tarefas. Angola precisa de contar com canais de reivindicação que não passem, sempre, pela manifestação e pela violência. E precisa, igualmente, que a manifestação da ordem e do poder, não passe, sempre ou quase sempre, pela manifestação de um poder violento.

Angola exige e pode em breve estar preparada para uma mais criativa e adaptada democracia participativa.

 

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(1) Ver o filme “Oxalá cresçam pitangas: estórias de Luanda”, 2006, de Kiluanje Liberdade & Ondjaki
(2) https://www.instagram.com/10padronizada/?hl=en
(3) https://www.instagram.com/mbanjedolivro/?hl=en