No final da Avenida Domingos Ramos, no centro de Bissau, há um mercado diário a céu aberto. Na esquina com a rua Vitorino Costa, a mulher de lenço roxo no cabelo está a vender castanha de cajú, jacatus, grãos que parecem veludo vermelho, fole, mariscos e cabaceira. A maioria que aqui está são mulheres. Chegaram antes das 7h30. Algumas têm filhos ao colo, outras nas costas.
Em dezembro de 2021, quando estive na capital guineense para uma formação, observava esta dinâmica diariamente: De onde vêm? Como chegam aos produtos? Cultivam? Como vivem? O que as preocupa? Só que a urgência da reportagem, nem sempre se alinha com o tempo dilatado necessário da escuta dos lugares e suas gentes.
É premissa da agenda global que as mulheres e as raparigas são dos grupos mais afetados pelas alterações climáticas e é prioridade integrá-las na construção e na implementação das ações sobre o clima. Além disso, sugere-nos um relatório de 2019 da ONU, quer a nível local, quer a nível regional, “a participação das mulheres na gestão dos recursos naturais está relacionada com uma melhor governação e com uma mais eficiente conservação de recursos”.
Eis alguns factos relevantes sobre o assunto na Guiné-Bissau. Por um lado, nas comunidades rurais são as mulheres que asseguram a produção alimentar e, por isso, quem mais investe em segurança alimentar e nutricional das famílias. Além disso, são guardiãs na valorização dos produtos e saberes da biodiversidade. Contudo, o seu direito à terra é limitado devido a leis e práticas consuetudinárias que as discriminam.
Depois, são também elas e as meninas que garantem o fornecimento de água e energia doméstica às famílias. Só que o acesso a esses recursos são extremamente limitados, aumentando as suas cargas laborais não remuneradas, relativamente aos homens, impactando no insucesso escolar.
Neste contexto, a organização não governamental (ONG) guineense Tiniguena tem um trabalho comprometido com estas mulheres, tentando contribuir para alterar esse cenário, apostando na capacitação e incidido na agroecologia, introduzindo novas técnicas, face a novas problemáticas como a questão das mudanças climáticas.
Por isso, a primeira mensagem que enviei foi para o Miguel de Barros, atual diretor executivo dessa ONG. Ele envia-me os contactos de Erikson Mendonça, coordenador da área de direitos comunitários e de Nélson Tavares, engenheiro agrónomo e coordenador do projeto de compras locais e resiliência agrícola. “Vai haver uma formação para mulheres em Fulacunda este fim de semana e podes viajar com o Edivaldo que vai levar uma das formadoras”, indica Nélson Tavares já no final da entrevista.
Trata-se da ação “Mulheres Rurais, Garantes da Produção, Segura nos Direitos e Consolidação da Paz”, que começou como projeto-piloto em 2018 em Cacheu, Bafatá e Oio, a partir de um estudo de base e diagnóstico participativo nas comunidades de leste e norte da Guiné-Bissau. A problemática transversal é: por razões culturais de opressão patriarcal, há dificuldades de as mulheres participarem nos processos de decisão nas tabancas, a nível doméstico e nacional.
No passado, este projeto apoiado pelo Programa Alimentar Mundial e pelo Fundo de Consolidação da Paz das nações unidas, formou já 2 mil mulheres dessas 3 regiões, capacitando para uma maior participação no processo decisório e na consolidação da paz, através de temas como direito e acesso à justiça; gestão económica de recursos; organização e liderança feminina; gestão de conflitos e mobilização e advocacia. Mais recentemente, estendeu-se para as regiões de Quinara, Tombali e Bolama-Bijagós, envolvendo mais 3 mil mulheres.
Saímos de carro às 6h de Bissau no dia 11 de dezembro em direção a sul. São cerca de 5h até Buba, capital da região de Quinara, onde pernoitamos. No dia seguinte, às 7h30, estamos já no mercado de Buba. As dezenas de vendedoras são todas mulheres. Têm filhos ao colo. Há filhos a ajudar a vender. Vende-se peixe seco, batata, inhame, limões, tomates.
Uma hora depois, entramos na estrada de terra batida, com textura seca cor-de-tijolo, contemplando “o sereno” a nublar o horizonte e a banhar a vegetação cerrada. Passam meninas e mulheres a carregar água. Há crianças a brincar no meio da vegetação. Passamos por várias tabancas. Cerca de duas horas depois, alcançamos N’bassa, perto de Fulacunda.
À chegada, algumas mulheres recebem-nos antes de a formação começar. Dançam e cantam. Desafiam a dançar e desafiam a cantar. Sentam-se depois em círculo. Conto cerca de cem. Todas trabalham a terra: há viúvas, solteiras, mas quase todas estão casadas.
Lá no meio, está a formadora Sábado Vaz, assistente de reforço de capacidade de género da Tiniguena e, atualmente, mobilizadora de coletivos das mulheres rurais para salvaguarda dos seus direitos. Fala crioulo, fula, mandinga e biafada. Ao fim de 30 anos engajada nos processos de governança participativa, está otimista com as respostas das mulheres sobre o impacto do projeto.
Ao todo, serão cerca de 7 mil mulheres capacitadas. Num país com cerca de 2 milhões de habitantes, é uma semente importante de mudança social e que emerge de dentro das comunidades. Por isso, Sábado acredita que está em curso uma mobilização rural pelos direitos das mulheres inédita, porque já vê alterações nos discursos e ações de algumas mulheres.
Acautela que as mudanças demoram tempo, que são “parte de um processo”. Mas sublinha, entusiasticamente: “É como uma pequena revolução que elas estão a fazer nas suas tabancas e agora já não há forma de nos pararem”.