No tempo da(s) imagem(ns) 10 Propostas para a mudança na comunicação das ONG com a sociedade

Fátima Proença - ACEP

Presidente da ACEP, intervém desde a década de 80 na cooperação não governamental para o desenvolvimento, em particular com organizações dos países de língua oficial portuguesa. Tem dinamizado processos de investigação/acção em África e de advocacia na sociedade portuguesa, em colaboração com pessoas e organizações da sociedade civil europeias e africanas.

1. A recusa da despolitização da política
Comecemos pelos conteúdos, antes de abordar as formas de os comunicar. A despolitização da política é um traço crescente da intervenção de muitas organizações que actuam no espaço não governamental e mesmo no espaço cívico mais amplo. Isso é tanto mais contraditório quando mesmo nos sectores tradicionais da chamada acção humanitária vêm surgindo vozes críticas aos conceitos de neutralidade, imparcialidade e independência de que essas organizações se reclamam. Um exemplo é o debate em curso no Groupe URD (Urgence-Réhabilitation-Développment), “think-thank” sobre ajuda. “Chegou o fim da inocência política”, como afirmou recentemente o cineasta do Haiti Raoul Peck. Tratar, por exemplo, manifestações da desigualdade, da escala local à escala global, sem analisar, questionar e afrontar as suas raízes (nomeadamente as políticas que as propiciam) é um tapar de sol com uma peneira, que contribui de facto para perpetuar os problemas e para a descredibilização de um sector que se quer transformador. Torna-se por isso imperativo (o dever e o direito) de intervir criticamente sobre as políticas relacionadas com o desenvolvimento – e em particular as geradoras de desigualdade – ou influenciar as que a podem combater. A comunicação (para o desenvolvimento, pelos direitos, ou cidadã, como se queira categorizá-la) tornou-se uma ferramenta indispensável, na relação com a sociedade e na recuperação da ideia de missão, sob o risco de o debate ficar em circuito fechado de “entendidos” ou converter-se na impossibilidade de “organizações apolíticas”.

2. A armadilha da simplificação
Talvez mais do que as palavras, as imagens podem contribuir para a construção da história única, de que nos fala a nigeriana Chimamanda Adichie. Em algumas reportagens fotográficas, publicadas em grandes media internacionais, podemos, por exemplo, ver um país reduzido à imagem do “cocaine country”, ou de “o primeiro narco-Estado do mundo”. Não será precisa muita imaginação para saber qual a história única apreendida pelo leitor do Japão da edição em japonês da Newsweek, sobre um pequeno país, lá na costa ocidental de África, de que nada mais sabe, a não ser o que lhe é transmitido por aquelas imagens do “cocaine country”. Esta imagem única, superficial, na maior parte das vezes “chocante”, estereotipa realidades bem mais complexas, provocando preconceitos, ideias feitas, exclusões. Internamente
àquelas realidades os protagonistas não se reconhecem nas imagens que deles são feitas, mas elas consomem as energias e a auto-confiança necessárias à auto-construção de imagens alternativas. Este “modelo” é tão mais perigoso quando ele consegue exercer um efeito mimético sobre não profissionais do jornalismo ou da comunicação, quando se trata de recorrer às imagens como “prova de verdade”. “Se na maneira moderna de saber, tem de haver imagens para que uma coisa se torne real” (Susan Sontag), o inverso – ou seja – tudo o que nos chega sob a forma de imagens obtidas através de uma câmara adquire automaticamente o estatuto de “real” e, por analogia, passa à categoria de “verdade”. Esta não é uma questão que se coloque por especulação intelectual, mas sim porque estes fragmentos de “real”, de “verdade”, que nos chegam pelas imagens, passam a ser, instantaneamente, e sem que de nós exijam um especial esforço de concentração, elementos constitutivos do que “sabemos” dos outros e de outras paragens: pessoas, sítios, culturas, países, de um continente. E cada organização, cada interveniente no processo comunicacional, à sua escala, pode contribuir – consciente ou inconscientemente – com alguns fragmentos.

3. O outro como objecto ou a negação da humanidade
Em 1994, um fotógrafo ganhou um Prémio Pulitzer com uma fotografia de uma criança literalmente a morrer de fome, com um abutre pousado ali à espera, no Sudão. A
pouco mais de um km de distância as Nações Unidas tinham um campo de ajuda alimentar. O debate sobre ética que se seguiu, entre a escolha do “profissional” que optou por fazer a fotografia e virar costas e a do “ser humano” que tinha acesso aos meios para salvara criança e não o fez, foi durante muitos anos citado nas escolas de jornalismo. Assim mesmo, nos últimos 30 anos o debate sobre a ética do olhar o sofrimento dos outros não terminou com o suicídio daquele fotógrafo. Este continua claramente a ser um debate dos nossos dias, já que ciclicamente assistimos à utilização de imagens-objecto, num mercado do espectáculo do sofrimento. Uma lógica de objectificação está aliás muitas vezes presente na comunicação de organizações, aquando de campanhas de angariação de fundos, sem grande preocupação com as pessoas ou as realidades retratadas, “justificadas” com o apoio às organizações e à sua causa.

4. Atenção aos fins e aos meios
Os fins não justificam os meios. De facto, no tema das imagens do sofrimento, uma das questões que se pode colocar é a de saber se é moralmente aceitável utilizar imagens como algumas das que vemos em campanhas ou em operações de “visibilidade da ajuda”, (nos media portugueses, também, incluindo nos de serviço público) com mais frequência do que seria imaginável, para gerar sentimentos e reacções de compaixão ou de espontânea e momentânea solidariedade. A adesão efémera à campanha que nos é proposta ou o apoio a determinado projecto é feita à custa de uma desumanização de quem é retratado, tornando fácil o posterior alheamento e o cansaço, ou, mais recentemente, o auto-centramento nas nossas dificuldades, dentro do pequeno mundo que nos sentimos parte. Fica assim a pergunta: vamos continuar a olhar com complacência a clonagem de técnicas de informação (Natalie Fenton), de publicidade e de marketing por parte de organizações humanitárias, só porque os fins são, em teoria, benévolos? Precisamos, por isso, lembrar o testemunho pessoal de Simone Weil, de recusa de usar imagem da violência de qualquer tipo para combater a violência. Porque, diz-nos ela, “a violência transforma em coisa quem quer que lhe seja submetido”!

 

5. O risco da estetização da comunicação
A questão da estetização do sofrimento, a sua passagem à categoria de obra de arte, tornando-o mais acético, passando para a categoria do “belo”, foi há tempos colocada por Augusto M Seabra, numa reflexão no jornal Público, sobre o que chamou “a questão fulcral da ética do olhar e o abuso do real, uma insustentável beleza da dor e dos desastres da humanidade”. Partindo do prémio World Press Photo de 2012, a chamada “madona Árabe”, AMS propõe-nos uma reflexão sobre o papel destes prémios, os contextos em que as fotos~são apresentadas e os limites da estetização do real doloroso. Voltamos por isso ao início: comecemos pelo conteúdo, antes de abordar as formas de o comunicar. Será a natureza e a importância desse conteúdo que ajudará a relativizar a importância da forma de o comunicar, para que a forma não se transforme no centro da comunicação.

6. O dever de testemunho
A imagem como testemunho do sofrimento e de denúncia da violência surge como uma faca de dois gumes, exigindo prudência, sabedoria e profunda auto-exigência
moral: durante a “marcha verde” pelas areias do Sahara, conduzida pelo rei Hassan de Marrocos, para demonstrar que a resistência saharaoui não existia, a Frente Polisário decidiu criar um museu da guerra, para provar o contrário. No meio das areias do mesmo deserto surgiu um espaço, com caixas de madeira de velhas munições. Dentro dessas caixas passaram a ser guardadas as fotos de todos os soldados marroquinos mortos ou presos, as fotos que transportavam consigo para o campo de batalha, fotos da família, de um casamento, do cartão de identidade. Patrizio Esposito, fotógrafo italiano, em missão de apoio aos refugiados saharaouis,
conheceu as caixas e pediu para reproduzir o seu conteúdo. O seu projecto consistiu em fazer um livro, dúzia e meia de exemplares, de forma a que cada exemplar fosse entregue a alguém que em alguma parte do mundo fosse responsável por mostrar aquele testemunho.

7. A recusa do papel de espectadores
Acontece seguramente com muita frequência a necessidade de não olhar para o lado. E colocar muitas interrogações, interpelações, incomodidades. Tomar a sério o provérbio dos Índios Aimarás, dos Andes, “quando tínhamos as respostas, mudaram as perguntas”. Por vezes este papel de espectadores deriva da fuga à tomada de posições, perante temas ou situações “incómodas”, o que nos remete provavelmente para a primeira questão, a da despolitização. Participar em iniciativas de questionamento de políticas (por exemplo, de política externa) ou de condenação de violações de direitos como sejam o da autodeterminação dos povos, é visto por muitas organizações como algo que não está na sua “missão”. É uma “cultura de abstenção” que em Portugal é ainda comum, com raízes num tempo de opressão, de que a maior parte das pessoas que hoje constituem as ONG não têm memória própria vivida, mas têm uma cultura herdada. Esta cultura herdada encontramo-la também frequentemente “do outro lado”, do lado governamental, contribuindo para um mimetismo de posicionamentos em que uns abdicam de direitos e os outros se escusam a deveres.

8. Marketing não é comunicação
“Comunicar é hoje o novo entretenimento de todos”, constata a criadora da grande plataforma de informação e debate na internet, o Huffington Post. Neste entretenimento é fácil criar imagens fortes, apelos ao consumo de mais imagens. O que começou por ser comunicação rapidamente se transformou em marketing – de um projecto, de uma organização. Esta facilidade traduz-se por vezes numa linguagem de superioridade (moral, cultural), em que está subjacente uma relação de poder, que vai perpetuar as armadilhas quotidianos dos sensos comuns, e a impossibilidade de estabelecermos relações de igual para igual, no conhecimento das nossas diferenças. Por isso, é importante não confundir comunicação com marketing e daí tirar as consequências na relação das organizações com a(s) sociedade(s). Implica um sentido crítico que distinga o que são iniciativas de “venda de imagem” das organizações, em detrimento de comunicar sobre.

9. A recusa da visibilidade como distorção
E neste desfilar de boas vontades desinteressadas, que acodem ao desastre, assistimos ao recurso a personalidades públicas, profissionais do entretenimento, e onde permanece uma zona cinzenta, em que não são claras as fronteiras entre informação, comunicação, entretenimento, marketing ou publicidade pura e dura. Em anos recentes, as teorias do “cansaço da ajuda” vêm gerando discurso justificativo, para legitimar o recurso a esse tipo de informação/comunicação junto das opiniões públicas.~Tratar-se-á de convencer os contribuintes de que devem continuar a “ajudar”, sem preocupação sobre a imagem que lhes comunicamos de quem está do outro lado e sem lhes referir que estamos perante processos de benefício nos dois sentidos. Nesse discurso “ajuda” substituiu “cooperação”, retirando a esta a etimologia de raiz – a colaboração. E surge como dominante o conformismo com uma perspectiva de apoio à “protecção aos mais fracos”, que substitui o imperativo de construção de sociedades mais justas e equitativas, culturalmente múltiplas, humanamente seguras. E onde se perde o sentido do que se faz, porque se faz e o “Outro” não tem identidade e existência própria, reduzido a uma logica unívoca de objecto (de ajuda).

10. Ética e estética com a função de desocultar
Claro que a tecnologia criou mais espaço para divulgar propostas do que poderíamos chamar de “narrativas alternativas”, feitas com mais tempo, mais proximidade. Elas tornaram-se possíveis, por exemplo, a partir de um capital social construído nessa proximidade e no seu reconhecimento por outros. A aventura inicial da ACEP neste domínio, com o Pedro Rosa Mendes, o Alain Corbel e tantos parceiros africanos (“Ilhas de Fogo” 2002) tem essa marca. Mas essa possibilidade de acontecer significa que ficam automaticamente garantidas as balizas de uma ética de informação e da comunicação, tanto ao nível dos meios como dos fins? Voltamos a Susan Sontag e ao facto de que as imagens realizadas com as câmaras são a entrada principal para as realidades de que não temos vivência directa; e a Guy Debord, que pouco tempo antes alertava para o facto de o espectáculo não ser um conjunto de imagens, mas sim uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens. Que podemos, pois, esperar de percepções construídas com a contribuição de imagens fragmentárias, de aparências, que fornecem repetidamente visões simplistas, desconexas, da realidade de pessoas, à margem da sua história e dos seus contextos? Estaremos a abrir de uma caixa de Pandora, incontrolável, mas inevitável, numa sociedade deficitária do capital cultural de que falava Bourdieu? Ou estamos “simplesmente” perante um problema deontológico, no plano das responsabilidades social, moral, ética e política, exigível às organizações da sociedade civil e em particular às ONGD, sempre que assumem o papel de mediadoras e comunicadoras? Este é um debate que terá que ter por finalidade a criação de condições de novas narrativas, novas informações, eticamente balizadas e profissionalmente competentes. Narrativas que desocultem realidades complexas, em contextos de mudanças desafiantes, através de processos de aprendizagem e (re)conhecimento mútuo e que sejam alavancas
da mudança necessária.

Texto a partir de Proença, Fátima: “De que áfrica(s) nos falam as imagens?”, Próximo Futuro, FCG, e “Entre o
entretenimento e a assistência: “comunicação” e “ajuda” como contributos para a fragilização e a dependência”, ACEP