Uma terceira via das representações

Paulo Mendes

Nasceu na ilha de Santiago (Cabo Verde) e vive desde 1997 nos Açores. É licenciado em Sociologia, Pós-Graduado em Ciências Sociais pela Universidade dos Açores e Doutorando em Sociologia pela ISCTE. Tem-se destacado na criação/co-criação e liderança de micro-empresas. Foi Vereador da Câmara Municipal de Ponta Delgada nas áreas Desenvolvimento Social, Cultura, Empreendedorismo e Inovação, Turismo e Juventude.

Quantos de nós não ouvimos com muita regularidade as seguintes frases: “A colonização portuguesa é que foi; não teve nada a ver com a colonização inglesa, que só quis explorar as suas colónias”. “Os portugueses gostam de mistura, até dormiam com as pretas”. “Portugal não é um país racista”.

Os portugueses gostam da ideia de que a colonização portuguesa foi mais suave e menos horrível do que as outras colonizações. Esta convicção sossega a alma colectiva e os humanos gostam de narrativas. No limite, as narrativas ajudam-nos no processo colectivo de representações, um dos suportes essenciais para a compreensão da realidade. As representações não são neutras, pois quem as concebe, mesmo que de forma subtil, está lá o seu olhar, as suas limitações, as suas potencialidades e os seus medos. No fundo as representações são a(s) janela(s) pela quais nós olhamos para o mundo à nossa volta.

Um dos temas que quero partilhar tem a ver com a relação de Portugal com as antigas colónias e, consequentemente, a dimensão do racismo em Portugal.

Toda a História, ou pelo menos, a esmagadora maioria da narrativa histórica sobre o passado colonial português, é construída a partir do olhar de Portugal, ou seja, de quem foi o colonizador, sendo que as frases partilhadas no início deste artigo, estão suportadas, em larga escala, por estas narrativas.

Por razões óbvias e da própria salvaguarda do interesse de Portugal esta narrativa é parcial – como qualquer outra – e pretende propositadamente enfeitar um fenómeno que, por definição – tanto na sua génese como na sua evolução, é trágico. Não consigo encontrar nenhuma virtude no processo de colonização.

Nós, os colonizados, ainda não conseguimos criar a nossa própria narrativa sobre o passado colonial; quando a criamos temos imensas dificuldades em ter espaço para a partilhar e confrontá-la com a narrativa do colonizador.

Uma das minhas últimas leituras foi um livro de José Vicente Lopes sobre a fome em Cabo Verde intitulado Cabo Verde: Um corpo que se recusa a morrer – 70 anos contra a fome, e constitui um exemplo muito interessante de uma narrativa construída a partir de factos e provas, mas de um olhar do sul.

Um livro duríssimo e que conta a história da luta contra a fome em Cabo Verde desde o Desastre da Assistência que, em 1949, matou, oficialmente, 232 pessoas quando um muro se abateu sobre centenas de pessoas que se encontravam concentradas para receber ajuda alimentar. O livro mostra como era viver em Cabo Verde até 1949, e que nas palavras do autor “por incompetência, por incúria, por falta de vontade política do poder político português e por outras razões, nomeadamente a própria forma como o Estado português estava organizado”, muitos cabo-verdianos morreram à fome no arquipélago.

Não tenho a pretensão de dizer que narrativa dos colonizados é mais verdadeira e imparcial do que a do colonizador. O que defendo é a urgência de um confronto entre as duas narrativas, permitindo-nos criar uma narrativa alternativa colectiva ou, se quisermos, uma terceira via nesta narrativa.

Esta ausência de uma terceira via desta narrativa em torno das questões da colonização tem trazido enormes problemas.

Em primeiro, tem influenciado negativamente a forma como Portugal se relaciona como as antigas colónias, alternando entre um sentimento de culpa e de uma atitude de não querer ser interpretado como um acto para uma nova colonização.

Em segundo lugar, tem tido consequências na forma como lidamos e interpretamos o racismo em Portugal. Dito de outro modo, esta ausência de confronto de narrativas sobre o passado tem tido reflexos no debate sobre a questão do racismo, nomeadamente no racismo estrutural, que tende a agravar-se nos próximos tempos. Este aumento do racismo em Portugal é suportado, em larga medida, pelo maior peso e visibilidade política de um partido de extrema direita que, no fundo, cria uma legitimação e normalização do racismo em Portugal.

É muito chato falar, nos dias de hoje, sobre o racismo, tendo em conta que a base da discriminação racial é muito primária. Acreditar que a cor da pele de um indivíduo deverá condicionar o seu lugar na sociedade, é entre outras aberrações, burrice. No entanto, o racismo existe e quando assumimos este facto não estamos a dizer que toda a sociedade portuguesa é racista.

Em terceiro lugar, tem permitido a emergência de atitudes extremistas de ambos os lados, anulando, muitas vezes, as possibilidades de pontes entre as várias narrativas. O exemplo mais imediato que me ocorre é a vandalização das estátuas coloniais portuguesas e a necessidade de Portugal ter um outro hino.

Pessoalmente, entendo que a História foi o que foi. A História não é neutra e reflecte “um olhar” e não “o olhar” sobre os factos. Mais do que entrarmos numa luta para derrubar os símbolos e representações sobre o passado colonial em Portugal, parece-me mais inteligente criarmos uma narrativa própria dos colonizados e de espaços para sua visibilidade para, no limite, criarmos entre nós, os colonizadores e os colonizados, uma terceira via da narrativa sobre a colonização.

Mas esta criação de uma narrativa alternativa pode e deve ser acompanhada por outras acções e iniciativas por parte da comunidade migrante em Portugal.

Em primeiro lugar, é necessário um maior envolvimento da elite migrante. Tenho a ideia de que os migrantes mais bem posicionados não se envolvem, sua larga maioria, no activismo, na tomada de posição e/ou no processo de visibilidade dos migrantes e dos seus descendentes em Portugal.

Em segundo lugar, é imprescindível uma abordagem mais política – no sentido lato do termo – das várias organizações representativas dos migrantes em Portugal. A larga maioria destas organizações desenvolve um trabalho social notável no apoio às comunidades de imigrantes, funcionado como que uma mão invisível no processo de integração dos migrantes. Devemos ambicionar uma intervenção mais política o que pressupõe dois níveis: um trabalho em rede mais afinado e uma intervenção pública mais consistente.

Em terceiro lugar, é necessário pressionar para uma maior visibilidade dos migrantes nos espaços públicos. Sendo certo que, neste aspecto, já houve algumas melhorias, prevalece, todavia, uma preocupante invisibilidade dos migrantes em Portugal.

Em quarto lugar e numa convergência com os pontos anteriores, é crucial a criação de pontes com a sociedade portuguesa, no sentido de fazer com que esta mudança possa acontecer de forma mais célere e sem extremar posições.

Acredito firmemente na ideia de que nós devemos ser agentes activos desta mudança, assente num Portugal plural, diverso e inclusivo.