O tempo e o corpo

André Cunha

É jornalista desde 1998. Cresceu para o ofício na redacção e nos estúdios da Telefonia Sem Fios. Foi correspondente da rádio, nos Balcãs, de 2004 a 2010. Hoje é freelancer à procura de um fio. Um dos seus últimos trabalhos foi sobre as rádios comunitárias na Guiné-Bissau. Também é programador cultural. Foi director do Centro de Língua Portuguesa de Belgrado e co-fundou a Terra do Som, festival de rádio.

Grazie Carola, per aver messo il tuo corpo in questa battaglia di civiltà.

Roberto Saviano, em mensagem à capitã do Sea-Watch 3

 

 

1.
– Como te chamas?
– Laovo Cande.
– Bem-vindo à Europa!
Esta história deveria ter sido assim.

Mas não estava nenhuma Carola Rackete suficientemente perto, algures no Atlântico, entre a costa africana e as Canárias, naqueles dias de 2006 quando Laovo Cande, num ‘cayuco’ de nada, se fez ao horizonte. No momento em que a equipa de socorro espanhola chegou à piroga, Laovo já estaria morto.

Em ilha firme, dias mais tarde, um experimentado repórter do ‘La Vanguardia’ relata os passos de Umaro Cande à procura do corpo do seu irmão. Umaro – já emigrado em Bilbao cinco anos antes – prometera à sua mãe, Adama, fazer o impossível para devolver Laovo à tabanca onde nascera, ao ‘tchon’ da Guiné onde crescera, à sombra da mangueira onde já estava enterrado seu pai. Só que do doloroso labirinto necrológico, saíram apenas cinzas, mesmo se Umaro chegou a encontrar e identificar o irmão. Missão incompleta, pois, por decisão judicial, foi entretanto decretada a solução: o corpo em pó. Laovo Cande nem pôde viver nem pôde sequer morrer livremente na sonhada Europa. “A incineração é um segredo que Umaro guarda consigo”, escreveria mais tarde o repórter, “porque os muçulmanos não aceitam outra forma de exumação que não seja o enterro.” O corpo do mártir Laovo vai faltar para sempre no cemitério de Candemba-Uri, como muitos outros faltarão em milhares de tabancas africanas ou em aldeias de um dos tantos orientes.

No início de Julho, no que já carregamos de 2019, a plataforma ‘Missing Migrants Project’ da OIM registava 54 mortos na faixa atlântica entre o continente e as Canárias, onde morreu o irmão de Umaro, há mais de uma década. Um pouco mais a norte, e apenas desde 2014, pelo menos 10963 pessoas – e mais enquanto escrevo – perderam a vida em todo o Mediterrâneo, o mar-fronteira onde mais se desaparece do mundo  1. Tantos corpos, ou cinzas, sem nome; e tantos nomes sem corpo: o Mediterrâneo é uma Srebrenica em câmara lenta. Com a Europa a ver em directo, o corpo refastelado no sofá.
Outra vez.

2.
– Como é que bô mansi?
– Mansi bê, mansi bê!
– Bom dia!
– Bom dia, sou o Pepe, bem-vindos à Rádio Mulher de Bafatá! E eis que logo houve ali bancada de recepção, com sumo e bolo incluídos, antes de entrarmos no estúdio…

Naquela época, e hoje, o jornalismo limita-se a contar o número de mortos, o número de chegadas, mas muito pouco ou nada se fala do lado humano da tragédia, da morte de um imigrante num ‘cayuco’.

Voz-off: quando Umaro Cande veio de visita a Candemba-Uri, Bafatá, em Janeiro de 2007, sem o corpo de Laovo, trazia com ele um outro corpo, vivo. Era José Bejarano – que todos tratam por Pepe – o mesmo jornalista do La Vanguardia que depois de ter seguido Umaro nas Canárias, meses antes, em busca do irmão perdido, fazia agora o caminho até à nascente da família Cande.

– Eu vim até aqui, há doze anos, fazer uma série de cinco reportagens e no regresso perguntei a alguns companheiros e amigos se queriam estender a mão a esta comunidade. É essa a origem do ‘Laovo Cande’, um projecto de cooperação internacional dos ‘Periodistas Solidarios’ da Associação de Imprensa de Sevilha, assim nomeado em homenagem a Laovo e a todas as vítimas da imigração. Um não-corpo reencarnando em tanto corpo: Criámos duas escolas onde temos noventa crianças, um centro de saúde, uma quinta, uma cooperativa de mulheres agricultoras e, nessa mesma linha, a rádio…

– Fazer o que a Europa não está fazendo?

– Nós, os jornalistas, damos poucas coisas como certas porque, digamos, não falamos de cátedra. Mas está claro para nós que, primeiro, o jornalismo tem de ser comprometido, não pode ser um jornalismo mero notário do que ocorre, com o jornalista no papel de burocrata de serviço. O jornalismo tem de tomar partido pelos mais desfavorecidos, pelos mais frágeis. Em segundo lugar, este nosso projecto pretende ajudar (…) esta aldeia, trabalhando sobre o terreno, que é aquilo que os governos do mundo e a União Europeia não fazem e que é ajudar na origem, onde está a raiz do problema. Eles limitam-se a levantar barreiras, fronteiras, polícias, que não servem para mais nada além de provocar mais mortes. O nosso compromisso é ajudar estas pessoas para que não tenham de arriscar a vida emigrando. Por outro lado, queremos contar às pessoas na Europa que a imigração é uma tragédia; não é só um dado estatístico das pessoas que chegam. Se chegam. Atrás disso, há seres humanos que sofrem, que choram, que têm filhos. Então, esta é uma forma de comprometer o jornalismo que fazemos, comprometendo-nos a nós mesmos, tomando posição e ajudando. Comprometendo-nos.

3.
A árvore que Pepe & Companhia desenvolveram (eis quando a palavra ‘desenvolvimento’ faz sentido) agiganta-se como uma Calabaceira, o nome guineense do Embondeiro. Rasgando o ar desde 2018, o seu último ramo – muito provavelmente único em África e quase único no mundo – é a antena de uma rádio comunitária feita exclusivamente por mulheres, para toda a cidade: a Rádio Mulher de Bafatá. Porque se África “é um continente levado sobre as cabeças pelas mulheres africanas”, tal como Pepe e muitos outros ilustramos repetidamente, isso significa que África também pode ser o mundo na voz e nos dedos dessas grandes mulheres. Lolita, Mariama, Fatumata, Marsato, Rugui, Uri, Ussai, Monde e… Blimunda. É que numa das salas da rádio vai nascer mais um rebento, a futura biblioteca Blimunda, com essa memorial ‘Mindjer Garandi’ vestindo um novo corpo ao sul, fruto de uma colaboração do projecto ‘Laovo Cande’ com a Fundação José Saramago.

4.
Tudo o que vem acontecendo até aqui, e tudo o que virá nas próximas estações, é o tempo e o modo de Pepe dar o seu corpo a esta batalha civilizacional: jornalismo consciente contra a banalidade do mundo; pensamento e acção para uma escala justa – agricultura, saúde e escola (e escola na forma de escola, mais escola feita vida na forma de rádio-biblioteca). Pepe vai lá, ao princípio, à terra mãe, ajudar Carola Rackete antes de chegar, em alto mar, a hora dela. Para que a hora dela deixe de ser urgente e Carola possa regressar ao Árctico, onde antes estava, na linha da frente das alterações climáticas, sempre corpo-a-corpo contra o tempo. E então, voltar a ser história em 98.0 FM, Rádio Mulher de Bafatá.

Bafatá, Lisboa/Belgrado; Janeiro, Junho/Julho de 2019

 

PS: este texto é dedicado a Borka Pavićević (1947 – 2019), dramaturga, brechtiana, directora do Centro de Descontaminação Cultural de Belgrado, resistente civil e activista pela paz, que partilhou a sua vida por um mundo crítico, por um mundo melhor – com o corpo todo reunido no seu punho cerrado, um punho como aquele que a ‘sua’ Jugoslávia ofereceu à Guiné-Bissau e que ali permanece, junto ao porto de Bissau-Velho, nada longe do busto de Amílcar Cabral. Escrevo nas horas em que escolheste ser cremada, Borka, mas porque a memória é um espelho em perpétuo movimento, sobre as tuas cinzas ondeia a tua coragem de ‘Mindjer Garandi’, aquele teu modo de seres Mãe do mundo.

1 Para o período referido, segundo o Alto Comissariado da ONU para os Refugiados, que utiliza o critério de contabilizar em conjunto mortos e desaparecidos, o total seria superior a 18 mil pessoas, ou seja, cerca de duas vezes as vítimas mortais do massacre de Srebrenica – considerado o maior crime contra a humanidade na Europa, depois da Segunda Guerra Mundial.