O terceiro pulmão de Bagdade

Afonso Cruz

Nasceu em 1971, na Figueira da Foz e, além de escritor, é também ilustrador, músico e cineasta. Desde 2008, ano em que se iniciou na escrita, publicou cerca de trinta livros, entre romances, teatro, não-ficção, álbuns ilustrados, novelas juvenis e ainda uma enciclopédia inventada. Recebeu vários prémios pelos seus livros, cujos direitos estão vendidos para vinte línguas.

Os jornais iraquianos anunciaram recentemente que a feira do livro de Bagdade deste ano (2019) teve mais de um milhão de visitantes. Um número superior, a ser exacto, ao de várias feiras reconhecidas como sendo as maiores ou mais importantes do mundo. Mas muito mais relevante do que a quantidade é o significado dessa quantidade. A confiança depositada nos livros e na leitura, que noutras geografias é desvalorizada como ingénua ou quixotesca, em Bagdade é uma declaração de Guerra às consequências da guerra. A literatura é vista como uma possibilidade de convalescência, de pacificação e de entendimento, de aproximação social e de reconstrução.

A história de Bagdade, dos poemas e dos poetas, dos homens de ciência, dervixes e mil e uma noites, inclui também uma camada de violência cujos contornos recentes, do século passado e início deste, se manifestam de várias formas e, evidentemente, contagiam a literatura, que reflecte a crueza destes últimos anos. Ahmed Saadawi escreveu recentemente um romance chamado Frankenstein em Bagdade, em que um homem reúne dos escombros das explosões partes de um cadáver, cosendo-as, para que fique completo e tenha um funeral digno. Há muitos outros exemplos deste tipo, em que a literatura reverbera a algozaria e a vergonhosa desumanidade da guerra, como os livros de contos de Hassan Blasim, titulado O Cristo Iraquiano, numa tentativa de purga ou expiação das experiências vividas.

Um espaço privilegiado para encontros de leitores e escritores, o café Shahbandar, numa esquina da rua Al-Mutanabbi: o dono perdeu três dos seus filhos no atentado de 5 de março de 2007.

 

Na margem do rio Tigre (onde um dos mais famosos místicos muçulmanos, al-Hallaj, foi executado, talvez pela sua forma de teose), a rua al-Mutanabbi é um soberano exemplo da confiança depositada nas ideias, na literatura. Nesta artéria feita de livros, que deve o seu nome a um dos mais importantes poetas árabes, um número impressionante de livrarias e alfarrabistas preenchem os dois lados da rua, que tem sido desde há séculos refúgio e lugar de encontro para artistas dos mais variados credos e origens. À sexta-feira, os livreiros fecham as portas e colocam os livros no chão, criando uma espécie de biblioteca ao ar livre e, ao mesmo tempo, uma celebração da literatura, onde se oferecem livros, se trocam livros, se vendem livros, onde leitores e escritores partilham experiências e leituras, onde se dizem poemas.

Por tudo isto, a rua Al-Mutanabbi é conhecida como o terceiro pulmão de Bagdade. A cidade respira porque há livros a serem abertos.

No dia 5 de Março de 2007, um bombista suicida fez-se explodir nesta rua, matando trinta e oito pessoas e ferindo mais de cem.

Menos de vinte e quatro horas depois do ataque, o poeta iraquiano Abdul-Zehra Zeki, sobre os escombros da explosão, leu O Manifesto dos Poetas de Bagdade, texto da sua autoria, que aqui reproduzo uma parte:

​“É aqui, entre os destroços do ataque bombista à rua Al-Mutanabbi,

Junto ao cheiro a queimado dos tesouros das livrarias de Bagdade,

junto aos cadáveres de quem amamos, enterrados sob a devastação das bombas, 

é aqui que se encontram hoje, os poetas de uma Bagdade em sofrimento; 

abalados e assombrados entre os ecos da destruição,

entre o fumo, 

entre o pó e as cinzas,
ouvindo tiros de um lado e explosões do outro, 

é aqui que os poetas se encontram para ler poemas de vida e de morte.
Sem surpresa, eles são os filhos de Bagdade que salvaguardam a sua imortalidade.
O corpo de Bagdade foi de repente atingido pela morte;

mas a sua alma emerge com vida e esperança das suas garras.
(…) 

​Aqui estamos hoje, junto aos destroços da rua Al-Mutanabbi, a sublinhar o significado desta rua para a cultura árabe. Também sabemos que os terroristas estão cientes desse significado.Por isso a atacaram.

Aqui, não há polícias, nem governos, nem invasores. Esta é uma rua habitada por livros de diferentes facções, livros que, tais como os seus livreiros e leitores, expressam ideias, diferenças e opiniões.

Atacar a rua Al-Mutanabbi é atacar a essência da cultura iraquiana, que abraça todas as diferenças.” 

Sophia de Mello Breyner escreveu que “Este é o tempo / Da selva mais obscura // Até o ar azul se tornou grades / E a luz do sol se tornou impura // Esta é a noite / Densa de chacais / Pesada de amargura”. Sophia terminou o poema com o seguinte verso: “Este é o tempo em que os homens renunciam.”

Hoje, doze anos depois do ataque de 2007, a feira do livro de Bagdade nunca teve tantos visitantes e a rua Al-Mutanabbi continua a fazer respirar a cidade, os livros continuam a ser abertos. Creio que este é o tempo de quem ainda não renunciou.

Na margem do rio Tigre, onde começou a civilização, começa também a rua que simbolicamente a mantém: o terceiro pulmão de Bagdade.