Palavras mágicas para viajar

Sofia Guedes Vaz

Directora de S.714 – Sustentabilidade e Ética e investigadora no IFILNOVA, FCSH. Trinta anos de experiência em diversos organismos, públicos e privados, nacionais e internacionais na área do ambiente. Gosta de comunicar e de experiências que enriquecem o seu portfolio de narrativas ambientais. É actualmente presidente da Sociedade de Ética Ambiental.

Fui a Glasgow, à COP 26, de bicicleta em outubro de 2021. Não porque seja uma grande ciclista, mas porque adoro aventuras e pedalar até uma conferência sobre alterações climáticas é um privilégio. Foi uma viagem interior, cénica e de endurance. Gosto disso. Comecei em Vilar Formoso e fui até Santander onde apanhei um ferry para Portsmouth, depois foi continuar a pedalar até Glasgow, ou quase.

1. Liberdade – Quase no início, tirei um tempo para ver Salamanca. Passeei pela grandiosa arquitetura medieval e religiosa, muitas pessoas nas ruas, muitos cafés e bares. Era tudo uma agitação. Apercebi-me que tudo o que eu queria era voltar para o horizonte das estradas sem fim.

2. Humildade – Pedalei 9 horas para chegar a Tordesilhas, aquele nome que ouvimos desde sempre. O tratado desta pequena cidade banhada pelo Douro dividia o mundo. Podemos dividir o mundo? O que nos passou pela cabeça?

3. Mar – Cheguei num ferry a Portsmouth e fiquei num Airbnb cuja dona era uma winter swimmer. Fiz-me convidada e vi o primeiro dia inglês nascer dentro de uma água gelada sem ondas numa praia de pedras. Há mar e mar.

4. Diáspora – Marcava sempre o hotel ou hostel ou Airbnb de véspera. Num dia chuvoso que se foi transformando num lindo dia cinzento cheguei já tarde, e o gerente do hotel, quando entrei com a bicicleta disse: “Sofia de Oeiras? Bem-vinda. Escolhi-lhe um quarto, afastei a mobília, e a bicicleta pode ficar consigo”. Era o Celso de Vila Franca de Xira, a diáspora a funcionar à escala humana.

5. Sorte – Num dia, a certa altura vi este sinal e praguejei. Passado um pouco, parei, olhei para o mapa e vendo as milhas a mais que pedalaria, voltei para trás ignorando o sinal. Lindo caminho, só para mim durante mais de uma hora, um luxo. Imaginei diálogos difíceis, mas quando cheguei às obras perguntei se podia passar. “Claro”, disseram os senhores.

Foto de Sofia Guedes Vaz

6. Chuva – Começou uma chuvinha que evoluiu para chuva, logo temporal com trovoada, e acabou com granizo, pedrinhas pequenas a cair, a cair. Ainda pedalei duas horas encharcada e molhada e gelada, mas vi uma estação e apanhei um comboio para Birmingham, e esses últimos 30 minutos pouparam-me a entrada numa grande cidade. Para secar os sapatos comprei o jornal mais barato, o Daily Mail mas nem o abri, foi diretamente para dentro dos sapatos.

 

Foto de Sofia Guedes Vaz

 

7. Medo – Num trilho junto aos canais, perdi-me, não parava de chover, o caminho passou a lama. Parei para me orientar, o vento atirou a luva para o canal, o mapa não ajudou. Continuei a pedalar apesar do medo, com medo, parecia que a qualquer momento escorregava, caía e ia parar ao canal. Cheguei dez horas depois a Manchester.

8. Poesia – Pela primeira vez na vida remendei um furo, mas no conforto dum quarto. O dia começou tarde, e cheguei a Hebdenstall, no altíssimo de uma montanha já à noitinha. De manhã visitei a campa de Sylvia Plath, que tem um lugar no meu imaginário de poesia. O Ted insistiu em pôr o seu nome, mas ainda hoje há pessoas que tentam apagar o Hughes. A zona era linda e passei a manhã a falar com ovelhas.

9. Horizonte – Dormi e tomei um English breakfast num pub com 400 anos e viajei no tempo antes de começar o dia. Fui por uma linda estrada num planalto acidentado e pensei que nem só o mar nos dá horizonte. O verde dos campos e o azul do céu misturam-se nos dias cinzentos e a paisagem fica mágica.

10. Objectivo – Não vejo o país num ecrã, mas num companheiro papel, já gasto de tanto olhar, planear, dobrar e desdobrar ao vento e, às vezes, à chuva. Vejo as cidades e as estradas onde vou e não vou, vejo a topografia e a toponímia coloridas e esperava ansiosamente por este dia: virei o mapa, já fiz metade do país.

11. Endurance – Quando penso que já testei a minha endurance, vem um dia ainda mais difícil. Horas a pedalar e andar e pedalar e andar debaixo de chuva imparável, vento e nevoeiro ficaram registadas no meu logbook. Numa paragem de autocarro lá no cimo da montanha troquei para roupa seca, a única vez que parei, que pude parar. Cheguei molhada e fui procurar uma lavandaria.

12. Gratidão – Entrei na Escócia. Foi uma emoção. Chorei. E depois fiquei molhada até aos ossos, pois não parou de chover nem um segundo até chegar ao hotel. Foram 7 horas de chuva contínua. As cheias na Escócia na véspera da COP apareceram nas notícias. As alterações climáticas não são apenas um tema de discussão, também molham aqui e secam acoli.

13. Humor – Acabei de forma caricata. No penúltimo dia, não encontrei hotel. A COP esgotou Glasgow e arredores. Vi os comboios, mas todos estavam cancelados, excepto um às 7 da manhã, numa cidade a 8 milhas do hotel. Era uma desilusão chegar assim a Glasgow, mas era o mais sensato e comprei o bilhete. Madrugo, chego à estação e o comboio também foi cancelado, as linhas estavam submersas, foi um erro do sistema eu ter conseguido comprar o bilhete. Preparei-me mentalmente para fazer os últimos 100 km em mais um dia chuvoso. Era cedo, tinha tempo, seria o teste final. Fui à bilheteira para me devolverem o dinheiro, e diz a senhora: “Não, vendemos-lhe o bilhete, por isso vamos levá-la a Glasgow. O táxi está lá fora para a levar”. Cheguei a Glasgow pela autoestrada, numa carrinha, numa fila de trânsito matinal inacreditável. É a vida a troçar de mim?

No fim, tudo se resume a gratidão, pela vida, pela viagem, pelo privilégio, pelo crescimento, pela liberdade (de espaço e tempo – sentir os elementos, ver paisagens, livre de horários e obrigações), pela família, pelos amigos, pelo silêncio. De resto, foi só pedalar.