Fui a Glasgow, à COP 26, de bicicleta em outubro de 2021. Não porque seja uma grande ciclista, mas porque adoro aventuras e pedalar até uma conferência sobre alterações climáticas é um privilégio. Foi uma viagem interior, cénica e de endurance. Gosto disso. Comecei em Vilar Formoso e fui até Santander onde apanhei um ferry para Portsmouth, depois foi continuar a pedalar até Glasgow, ou quase.
1. Liberdade – Quase no início, tirei um tempo para ver Salamanca. Passeei pela grandiosa arquitetura medieval e religiosa, muitas pessoas nas ruas, muitos cafés e bares. Era tudo uma agitação. Apercebi-me que tudo o que eu queria era voltar para o horizonte das estradas sem fim.
2. Humildade – Pedalei 9 horas para chegar a Tordesilhas, aquele nome que ouvimos desde sempre. O tratado desta pequena cidade banhada pelo Douro dividia o mundo. Podemos dividir o mundo? O que nos passou pela cabeça?
3. Mar – Cheguei num ferry a Portsmouth e fiquei num Airbnb cuja dona era uma winter swimmer. Fiz-me convidada e vi o primeiro dia inglês nascer dentro de uma água gelada sem ondas numa praia de pedras. Há mar e mar.
4. Diáspora – Marcava sempre o hotel ou hostel ou Airbnb de véspera. Num dia chuvoso que se foi transformando num lindo dia cinzento cheguei já tarde, e o gerente do hotel, quando entrei com a bicicleta disse: “Sofia de Oeiras? Bem-vinda. Escolhi-lhe um quarto, afastei a mobília, e a bicicleta pode ficar consigo”. Era o Celso de Vila Franca de Xira, a diáspora a funcionar à escala humana.
5. Sorte – Num dia, a certa altura vi este sinal e praguejei. Passado um pouco, parei, olhei para o mapa e vendo as milhas a mais que pedalaria, voltei para trás ignorando o sinal. Lindo caminho, só para mim durante mais de uma hora, um luxo. Imaginei diálogos difíceis, mas quando cheguei às obras perguntei se podia passar. “Claro”, disseram os senhores.
6. Chuva – Começou uma chuvinha que evoluiu para chuva, logo temporal com trovoada, e acabou com granizo, pedrinhas pequenas a cair, a cair. Ainda pedalei duas horas encharcada e molhada e gelada, mas vi uma estação e apanhei um comboio para Birmingham, e esses últimos 30 minutos pouparam-me a entrada numa grande cidade. Para secar os sapatos comprei o jornal mais barato, o Daily Mail mas nem o abri, foi diretamente para dentro dos sapatos.
7. Medo – Num trilho junto aos canais, perdi-me, não parava de chover, o caminho passou a lama. Parei para me orientar, o vento atirou a luva para o canal, o mapa não ajudou. Continuei a pedalar apesar do medo, com medo, parecia que a qualquer momento escorregava, caía e ia parar ao canal. Cheguei dez horas depois a Manchester.
8. Poesia – Pela primeira vez na vida remendei um furo, mas no conforto dum quarto. O dia começou tarde, e cheguei a Hebdenstall, no altíssimo de uma montanha já à noitinha. De manhã visitei a campa de Sylvia Plath, que tem um lugar no meu imaginário de poesia. O Ted insistiu em pôr o seu nome, mas ainda hoje há pessoas que tentam apagar o Hughes. A zona era linda e passei a manhã a falar com ovelhas.
9. Horizonte – Dormi e tomei um English breakfast num pub com 400 anos e viajei no tempo antes de começar o dia. Fui por uma linda estrada num planalto acidentado e pensei que nem só o mar nos dá horizonte. O verde dos campos e o azul do céu misturam-se nos dias cinzentos e a paisagem fica mágica.
10. Objectivo – Não vejo o país num ecrã, mas num companheiro papel, já gasto de tanto olhar, planear, dobrar e desdobrar ao vento e, às vezes, à chuva. Vejo as cidades e as estradas onde vou e não vou, vejo a topografia e a toponímia coloridas e esperava ansiosamente por este dia: virei o mapa, já fiz metade do país.
11. Endurance – Quando penso que já testei a minha endurance, vem um dia ainda mais difícil. Horas a pedalar e andar e pedalar e andar debaixo de chuva imparável, vento e nevoeiro ficaram registadas no meu logbook. Numa paragem de autocarro lá no cimo da montanha troquei para roupa seca, a única vez que parei, que pude parar. Cheguei molhada e fui procurar uma lavandaria.
12. Gratidão – Entrei na Escócia. Foi uma emoção. Chorei. E depois fiquei molhada até aos ossos, pois não parou de chover nem um segundo até chegar ao hotel. Foram 7 horas de chuva contínua. As cheias na Escócia na véspera da COP apareceram nas notícias. As alterações climáticas não são apenas um tema de discussão, também molham aqui e secam acoli.
13. Humor – Acabei de forma caricata. No penúltimo dia, não encontrei hotel. A COP esgotou Glasgow e arredores. Vi os comboios, mas todos estavam cancelados, excepto um às 7 da manhã, numa cidade a 8 milhas do hotel. Era uma desilusão chegar assim a Glasgow, mas era o mais sensato e comprei o bilhete. Madrugo, chego à estação e o comboio também foi cancelado, as linhas estavam submersas, foi um erro do sistema eu ter conseguido comprar o bilhete. Preparei-me mentalmente para fazer os últimos 100 km em mais um dia chuvoso. Era cedo, tinha tempo, seria o teste final. Fui à bilheteira para me devolverem o dinheiro, e diz a senhora: “Não, vendemos-lhe o bilhete, por isso vamos levá-la a Glasgow. O táxi está lá fora para a levar”. Cheguei a Glasgow pela autoestrada, numa carrinha, numa fila de trânsito matinal inacreditável. É a vida a troçar de mim?
No fim, tudo se resume a gratidão, pela vida, pela viagem, pelo privilégio, pelo crescimento, pela liberdade (de espaço e tempo – sentir os elementos, ver paisagens, livre de horários e obrigações), pela família, pelos amigos, pelo silêncio. De resto, foi só pedalar.