Para além dos Acordos Verdes: a injustiça climática entre a Europa e África

Romy Chevallier

É investigadora em Governança de Recursos em África no South African Institute of International Affairs (SAIIA). É mestre em Relações Internacionais na Universidade de Witwatersrand. No SAIIA tem trabalhado sobre o engajamento estratégico da UE com África e África do Sul, o papel das potências emergentes nas alterações geopolíticas, alterações climáticas e sustentabilidade. Trabalha também como consultora.

Alex Benkenstein

Coordena o Programa do Clima e Recursos Naturais no South African Institute of International Affairs, um think tank de referência em África. O seu trabalho abrange uma série de temas, incluindo alterações climáticas, economia azul, governação das indústrias extractivas e sistemas sócio-ecológicos.

É uma infeliz ironia da emergência climática que os países mais vulneráveis aos impactos das alterações climáticas tenham contribuído menos para
as emissões históricas de gases com efeito de estufa. Isto é certamente verdade em África.

A Cimeira UE-UA A realiza-se este ano (1) enquanto África aguarda a realização da vigésima sétima sessão da Conferência das Partes (COP27) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas, em Novembro de 2022. Já baptizada como a “COP África”, a região espera assegurar progressos significativos no que diz respeito ao clima e à sua agenda de desenvolvimento resiliente. A região africana procurará alavancar as suas parcerias e desenvolver os compromissos assumidos no ano passado na COP26. Embora a COP26 tenha ficado aquém em muitas frentes, foram tomadas algumas medidas significativas que podem servir de base para o avanço que se pretende alcançar este ano.

África não guarda segredo sobre as suas prioridades climáticas. A região insiste que a acção climática deve apoiar as suas ambições de desenvolvimento e de industrialização. Para o conseguir será necessário o desenvolvimento de competências e capacidades, a transferência de tecnologia, a geração de empregos verdes, e um investimento significativo. O progresso nestas frentes não só ajudará a enfrentar os desafios climáticos, mas também poderá revitalizar uma economia regional marcada pelas desigualdades e pela pandemia da COVID-19, bem como apoiar a região na criação de oportunidades para os mais jovens, para as populações em crescimento e em processo de urbanização e posicionar África estrategicamente no contexto das transições económicas e tecnológicas globais emergentes.

Existe uma longa história de colaboração em investimentos de energias renováveis entre África e a Europa, e a transição energética irá sem dúvida ocupar um lugar proeminente nas discussões da Cimeira. O acesso à electricidade permanece baixo e pouco fiável em grande parte do continente; a abordagem desta questão será fundamental para apoiar o crescimento e o desenvolvimento na região. Mas a região não está apenas à procura de investimento – está perfeitamente consciente de que a transição para um futuro com baixo nível de carbono acarreta riscos potencialmente elevados para o emprego e para o sector industriam de elevada intensidade de carbono. A África procura, portanto, apoio, tanto financeiro como técnico, para assegurar uma transição justa. Na COP26, para dar início a esta dinâmica, a UE e outros parceiros propuseram uma parceria com a África do Sul para apoiar na transição justa para um futuro com baixas emissões de carbono.

 

Evitar onde possível, adaptar se necessário

É uma infeliz ironia da emergência climática que os países mais vulneráveis aos impactos das alterações climáticas tenham contribuído menos para as emissões históricas de gases com efeito de estufa. Isto é certamente verdade em África. Embora os esforços para reduzir as emissões de carbono continuem a ser essenciais para a resposta climática global, é evidente a partir de numerosos relatórios científicos (como o sexto relatório de avaliação do IPCC), e de experiências no terreno, que pelo menos algum nível de alteração climática já está a ocorrer. Isto continuará a ter um impacto negativo nas sociedades, economias e meios de subsistência no futuro. Dada a vulnerabilidade acrescida de África, os desafios de desenvolvimento e os constrangimentos fiscais, há muito que se dá ênfase à necessidade de os países desenvolvidos ajudarem África a adaptar-se aos riscos climáticos inevitáveis e a responder às questões da injustiça climática. O financiamento e, no contexto das negociações climáticas globais, o apoio diplomático à adaptação serão elementos importantes nas discussões na Cimeira UE-UA. De facto, o financiamento numa série de áreas relacionadas com o clima é uma prioridade para África, não só em termos de quantum, mas também para assegurar que as barreiras de acesso ao financiamento disponível são reduzidas. Além disso, os países africanos estão unidos no seu apelo aos países desenvolvidos, incluindo aos países membros da UE, para que demonstrem maior urgência e ambição na redução das emissões de carbono. Isto inclui assegurar que os países traduzam globalmente os compromissos no âmbito das suas Contribuições Determinadas a nível Nacional (CND, na sigla em inglês) em acções urgentes em matéria de clima.

Um aspecto importante da agenda de adaptação na região de África prende-se com a questão de como a protecção e restauração dos ecossistemas pode ajudar a região a construir a sua resiliência e capacidade adaptativa. Enquadradas como soluções baseadas na natureza ou adaptação baseada nos ecossistemas, estas prioridades reflectem-se numa série de documentos políticos, incluindo a Estratégia da Economia Azul de África e o projecto de Estratégia da União Africana sobre Alterações Climáticas e Desenvolvimento Resiliente (2022-2032), bem como se reflectem em iniciativas regionais, como a iniciativa da Grande Muralha Verde e a mais recente iniciativa da Grande Muralha Azul. Tais soluções baseadas na natureza são uma oportunidade para alinhar as agendas de biodiversidade, desenvolvimento e clima de África.

 

Cumprindo o acordo verde

Felizmente, existe um alinhamento relativamente forte entre as prioridades declaradas pelo continente africano e os elementos do Acordo Verde Europeu, bem como com o projecto da Europa para uma estratégia conjunta com África (a Comissão da União Europeia e a Comunicação Conjunta do Serviço Europeu para a Acção Externa “Para uma Estratégia Global com África”). O Acordo Verde (Green Deal) salienta que as questões climáticas e ambientais serão vertentes fundamentais na colaboração entre Europa e África, ao mesmo tempo que enfatiza a colaboração em questões de economia verde e circular, incluindo energia sustentável e sistemas alimentares, bem como cidades inteligentes. A biodiversidade e as ligações climáticas são igualmente salientadas, ao mesmo tempo que se reconhece explicitamente que os desafios climáticos e ambientais globais são um importante multiplicador de ameaças e uma fonte de instabilidade.

ACEP

Embora reconhecendo a necessidade de transição para fontes de energia renováveis, muitos Estados africanos já estão a beneficiar de, ou têm planos para desenvolver, reservas de combustíveis fósseis.

Isto não significa que não existam potenciais pontos de contacto. No Acordo Verde é claro que a UE está disposta a utilizar “instrumentos diplomáticos e financeiros”, incluindo política comercial e apoio ao desenvolvimento, para avançar com a “diplomacia do acordo verde”. Os stakeholders africanos estarão muito atentos à forma como isto poderá funcionar em termos práticos. Particularmente preocupante é a evolução para um mecanismo de ajustamento das fronteiras de carbono para fazer face à “fuga de carbono”, e as implicações que isto pode ter nas exportações africanas para a Europa. A Europa também reconhece que o acesso a matérias-primas estratégicas é fundamental para a produção de tecnologias verdes, incluindo infra-estruturas de energias renováveis. Declarou explicitamente que irá trabalhar com parceiros globais para garantir a segurança dos recursos da Europa e o acesso fiável a matérias-primas estratégicas; no entanto, África, que possui grandes reservas destas matérias-primas, procurará acrescentar valor a estes materiais a nível interno e utilizá-los para apoiar o desenvolvimento de indústrias verdes e o crescimento de empregos verdes, a nível local. Outra preocupação em torno da “diplomacia do acordo verde” é a medida em que isto irá condicionar a região a beneficiar das suas reservas de combustíveis fósseis. Embora reconhecendo a necessidade de transição para fontes de energia renováveis, muitos Estados africanos já estão a beneficiar de, ou têm planos para desenvolver, reservas de combustíveis fósseis. O Quénia é um exemplo ilustrativo: mesmo quando estava a construir o maior parque eólico em África, perto do Lago Turkana, estava a desenvolver campos petrolíferos na mesma região. Moçambique e Tanzânia estão a avançar com o desenvolvimento das suas significativas reservas de gás offshore, a África do Sul parece apostada em desenvolver reservas de petróleo e gás offshore, e a Refinaria Dangote da Nigéria, a maior de África com capacidade de processamento de 650.000 barris de petróleo por dia, está a começar a operar este ano. Os prazos para a transição dos combustíveis fósseis, e as especificidades das “políticas-cenoura” que a Europa estaria disposta a utilizar para acelerar a transição energética nas suas negociações com África, irão sem dúvida resultar em algumas negociações duras em torno da Cimeira e para além dela.


(1) Artigo escrito a 16 de Fevereiro de 2022, antes da Cimeira UE-UA, disponível no original em https://saiia.org.za/research/the-eu-au-summit-considering-africas-climate-priorities/